Não há perguntas estúpidas

 

          E assim continuamos a perguntar e a perguntar
           Até que uma mão-cheia de terra
           Faça calar as nossas bocas ―
           Mas será isso uma resposta?

                             HEINRICH HEINE, "Lazarus" (1854)

Na África oriental, nos registos das rochas que datam de há cerca de 2 milhões de anos, podemos encontrar uma sequência de instrumentos trabalhados que os nossos antepassados concebiam e executavam. A sua vida dependia da manufactura e do uso destes instrumentos. Esta era, evidentemente, a tecnologia do paleolítico. Com o decorrer do tempo foram sendo utilizadas pedras especialmente talhadas para perfurar, lascar, cortar e entalhar. Embora haja muitas maneiras de fazer instrumentos de pedra, o que é notável é que, num dado local, e durante enormes períodos de tempo, os instrumentos eram feitos da mesma maneira ― o que significa que tem de ter havido instituições educacionais há centenas de milhares de anos, ainda que se tratasse sobretudo de um sistema de aprendizagem através da prática. Embora seja fácil exagerar as semelhanças, também é fácil imaginar os equivalentes de professores e estudantes de tanga, cursos laboratoriais, exames, más classificações, cerimónias de graduação e pós-graduações.

Quando a formação permanece sem alterações durante períodos de tempo muito grandes, as tradições passam intactas de geração em geração. Mas, quando o que é necessário aprender muda rapidamente, especialmente no decurso de uma só geração, torna-se muito mais difícil saber o que deve ser ensinado e como deve ser ensinado. Assim, os estudantes queixam-se da falta de pertinência do que aprendem; o respeito pelos mais velhos diminui. Os professores desesperam com a deterioração do nível educacional e com a apatia dos alunos. Num mundo em transição, os estudantes e os professores necessitam de aprender a ensinar a si próprios uma aptidão essencial ― aprender a aprender.

Com excepção das crianças (que não sabem o suficiente para não fazerem as perguntas relevantes), poucas pessoas passam muito tempo a perguntar-se por que razão a natureza é como é; de onde surgiu o cosmo, ou se sempre existiu; se um dia o tempo não andará para trás, com os efeitos a precederem as causas; ou se há limites para o conhecimento humano. Existem mesmo crianças, e eu conheci algumas, que pretendem saber qual o aspecto de um buraco negro, qual o pedaço mais pequeno de matéria que existe, por que razão recordamos o passado e não o futuro e porque há um universo.

De vez em quando gosto de ensinar num jardim infantil ou na instrução primária. Muitas destas crianças são cientistas natos ― embora mais propensas para se maravilharem do que para o cepticismo. Têm curiosidade e vigor intelectual. Delas surgem constantemente perguntas provocadoras e penetrantes. manifestam um entusiasmo enorme. Fazem-me mais perguntas para esclarecer respostas que não as satisfizeram. Nunca ouviram falar de "perguntas estúpidas.

Mas, quando falo para alunos do ensino secundário, o que vejo é algo de diferente. Eles memorizam "factos". No entanto, em termos gerais, a alegria da descoberta, a vida por detrás desses factos, desapareceu. Perderam grande parte da capacidade se de maravilharem e ganharam muito pouco cepticismo. Têm medo de fazer perguntas "estúpidas", aceitam respostas deficientes, não colocam outras perguntas para esclarecer uma resposta que não os satisfaça; a sala está cheia de olhares de esguelha para avaliar, momento a momento, a aprovação dos seus pares. Vêm para a aula com perguntas escritas em papelinhos, que espreitam sub-repticiamente enquanto esperam a sua vez, alheando-se de qualquer debate em que os seus pares nesse momento participem.

Alguma coisa aconteceu entre o 5.° e o 12.° ano, e não foi apenas a puberdade. Penso que, em parte, se trata de uma pressão dos colegas para não sobressaírem (ao contrário do que acontece no desporto), em parte do facto de a sociedade ensinar a gratificação a curto prazo, em parte da impressão de que a ciência ou a matemática não lhes vai permitir comprar um carro de desporto, em parte da circunstância de se esperar tão pouco dos estudantes e em parte do facto de haver poucas recompensas e poucos modelos para uma discussão inteligente da ciência e da tecnologia ― ou mesmo para aprender pelo gosto de aprender. Os poucos que se mantêm interessados são apelidados de "palermas", "maníacos" ou "marrões".

Mas ainda há outra coisa: verifico que muitos adultos ficam incomodados quando as crianças fazem perguntas científicas. Porque é a Lua redonda?, interrogam as crianças. Porque é a erva verde? O que é um sonho? Com que profundidade se consegue cavar um buraco? Quando é o aniversário do mundo? Porque temos dedos grandes do pé? Há demasiados professores e pais que respondem com irritação ou com troça, ou então mudam de assunto: "Como querias que fosse a Lua, quadrada?" As crianças aprendem rapidamente que, de algum modo, este tipo de perguntas aborrece os adultos. Mais uns episódios como este e teremos mais uma criança perdida para a ciência. Nunca compreenderei por que razão os adultos pretendem passar por omniscientes diante de crianças de 6 anos. Qual o problema em admitirmos que não sabemos alguma coisa? A nossa auto-estima é assim tão frágil?

Além do mais, muitas destas perguntas têm a ver com questões profundas da ciência, algumas das quais ainda não estão plenamente resolvidas. A Lua é redonda devido ao facto de a gravidade ser uma força que atrai os corpos para o centro de qualquer planeta e ao de as rochas serem tão resistentes. A erva é verde devido a um pigmento, a clorofila ― como nos meteram à força na cabeça, na escola secundária ―, mas por que razão as plantas têm clorofila? Parece disparatado, dado que o Sol emite o seu máximo de energia nas regiões amarela e verde do espectro. Por que motivo as plantas de todo o mundo rejeitam a luz solar nos seus comprimentos de onda mais abundantes? Talvez isto tenha a ver com um acidente congelado proveniente da história antiga da vida na Terra. Mas ainda não compreendemos completamente por que razão a erva é verde.

Existem muitas respostas que são melhores do que fazer a criança sentir que fazer perguntas profundas constitui um acto socialmente condenável. Se tivermos uma ideia da resposta, podemos tentar explicar. Uma tentativa, ainda que incompleta, pode ser uma atitude encorajadora. Se não tivermos nenhuma ideia da resposta, podemos consultar uma enciclopédia. Se não tivermos uma enciclopédia, podemos levar a criança a uma biblioteca. Ou podemos dizer: "Não sei a resposta. Talvez ninguém saiba. Pode ser que, quando cresceres, venhas a ser a primeira pessoa a descobrir."

Há perguntas ingénuas, perguntas enfadonhas, perguntas mal formuladas, perguntas feitas sem pensar. Mas todas elas representam uma vontade de compreender o mundo. [38] Não há perguntas estúpidas.

"É oficial", lê-se no cabeçalho de um jornal: "Somos uma lástima em ciência". Em testes efectuados por jovens de 17 anos em muitas regiões do globo, os americanos ficaram em último em álgebra. Em testes idênticos, os jovens americanos tiveram, em média, 43 %, enquanto o resultado dos japoneses foi de 78 %. Segundo os meus critérios, 78 % é muito bom e 43 % não satisfaz. Num teste de química, só os alunos de dois países, num total de 13, fizeram pior do que os americanos. A Grã-Bretanha, Singapura e Hong Kong tiveram resultados tão elevados que quase rebentaram a escala, e 25 % dos canadianos de 18 anos sabiam tanta química como a elite de 1 % dos alunos das escolas secundárias americanas (no seu 2.° ano de Química e, a maioria deles, colocados em programas "avançados"). As melhores turmas do 5.° ano, de um total de 20, de Mineápolis foram suplantadas pelas 20 turmas de Sendai, no Japão, e por 19, em 20, de Taipé, em Taiwan. Os estudantes sul-coreanos estavam muito à frente dos estudantes americanos em todos os aspectos de Matemática e Ciências e os jovens de 13 anos da Colúmbia Britânica (no Canadá ocidental) superaram sistematicamente os americanos (nalgumas áreas foram superiores aos coreanos). Dos jovens americanos, 22 % afirmam que não gostam da escola, opinião que é partilhada por apenas 8 % dos coreanos. No entanto dois terços dos americanos, contra apenas um quarto dos coreanos, afirmam serem "bons em Matemática".

Estas tendências desoladoras relativas ao estudante médio nos Estados Unidos são ocasionalmente compensadas pelo desempenho de alunos excepcionais. Em 1994, os americanos que participaram nas Olimpíadas Internacionais de Matemática, em Hong Kong, obtiveram um resultado sem precedentes ― vencendo 360 outros estudantes de 68 nações em Álgebra, Geometria e Teoria dos Números. Um deles, Jeremy Bem, de 17 anos, comentou: "Os problemas de Matemática são quebra-cabeças lógicos. Não existe rotina ― é tudo muito criativo e artístico". Mas o que me interessa aqui não é produzir uma nova geração de cientistas e matemáticos de primeira qualidade, mas sim um público cientificamente alfabetizado.

63 % dos Americanos não sabem que o último dinossauro morreu antes do aparecimento do homem; 75 % desconhecem que os antibióticos matam as bactérias, mas não os vírus; 57 % não sabem que "os electrões são mais pequenos do que os átomos". As sondagens mostram que cerca de metade dos americanos adultos não sabe que a Terra gira em torno do Sol e que leva um ano para dar uma volta. Nas minhas turmas de estudantes de licenciatura, na Universidade de Cornell, encontro alunos brilhantes que não sabem que as estrelas nascem e têm ocaso à noite, ou mesmo que o Sol é uma estrela.

Em virtude da ficção científica, do sistema educativo, da NASA e do papel que a ciência desempenha na sociedade, os Americanos têm muito mais contacto com a perspectiva coperniciana do que a maioria dos homens do planeta. Uma sondagem de 1993, efectuada pela Associação Chinesa de Ciência e Tecnologia, mostra que, tal como na América, apenas metade das pessoas na China sabe que a Tetra dá uma volta ao Sol em cada ano. Assim, pode muito bem acontecer que, mais de quatro séculos e meio depois de Copérnico, a maioria das pessoas da Terra ainda pense, lá bem no fundo, que o nosso planeta se encontra imóvel no centro do universo, e que somos profundamente "especiais".

Estas são perguntas típicas em "literacia científica". Os resultados são terríveis. Mas o que traduzem eles? A memorização de afirmações autoritárias. O que deviam perguntar é como sabemos que os antibióticos distinguem os micróbios, que os electrões são "mais pequenos" do que os átomos, que o Sol é uma estrela em torno da qual a Terra efectua uma órbita em cada ano. Estas perguntas são uma tradução muito mais verdadeira da compreensão da ciência por parte da população e os resultados destes testes seriam sem dúvida ainda mais confrangedores.

Se aceitarmos a verdade literal de todas as palavras da Bíblia, a Terra tem de ser plana. O mesmo se passa como o Alcorão. Afirmar que a Terra é redonda significa então que somos uns ateus. Em 1993, a suprema autoridade religiosa da Arábia Saudita, o xeque Abdel-Aziz Ibn Baaz, publicou um edicto, uma fatwa, declarando que a Terra é plana. Qualquer pessoa que esteja convencida de que ela é redonda não crê em Deus e deve ser castigada. Uma das muitas ironias destas coisas é que os indícios de que a Terra é uma esfera, acumulados pelo astrónomo greco-egípcio, do século II, Cláudio Ptolomeu, foram transmitidos ao Ocidente por astrónomos muçulmanos e árabes. No século IX chamaram ao livro de Ptolomeu em que é demonstrada a esfericidade da Terra o Almagesto, "O Maior".

Conheço muita gente escandalizada com a teoria da evolução, que prefere ser uma obra pessoal de Deus do que fruto do lodo, por acção de forças cegas, físicas e químicas, ao longo dos tempos. Além disso, são mais do que relutantes em tomarem conhecimento dos factos. Os factos têm pouco a ver com isso: o que eles querem que seja verdade, acreditam que é verdade. Apenas 9 % dos Americanos aceita a descoberta fundamental da biologia moderna, de que os seres humanos (e todas as outras espécies) evoluíram lentamente, por processos naturais, a partir de uma sucessão de seres mais antigos, sem que fosse necessária a intervenção divina. (Quando se lhes pergunta se aceitam a evolução, 45 % dos Americanos respondem afirmativamente. Na China, este número é de 70 %). Quando o filme Parque Jurássico foi exibido em Israel, foi condenado por alguns rabis ortodoxos porque aceitava a evolução e porque ensinava que os dinossauros viveram há 100 milhões de anos ― quando, como é afirmado claramente em todas as Rosh Hashonah e em todas as cerimónias nupciais judaicas, o universo tem menos de 6000 anos de idade. A prova mais clara da nossa evolução reside nos genes. Mas, ironicamente, a evolução continua a ser combatida por aqueles cujo ADN a proclama ― nas escolas, nos tribunais, nas editoras de manuais escolares e no que toca à questão de saber quanta dor conseguimos infligir aos outros animais sem transpor algum limiar ético.

Durante a Grande Depressão, os professores gozavam de segurança no trabalho, bons salários, respeitabilidade. Ensinar era uma profissão admirada, em parte porque a aprendizagem era considerada o caminho para sair da pobreza. Hoje em dia, as coisas são diferentes. Assim, o ensino da Ciência (e de outras matérias) é ministrado demasiadas vezes de uma forma incompetente e pouco motivadora e os seus agentes, surpreendentemente, têm pouca ou nenhuma formação sobre o que estão a ensinar, não despendem tempo com o método e vão logo directamente às descobertas da ciência ― e, por vezes, são eles próprios incapazes de distinguir a ciência da pseudociência. Os que têm formação optam frequentemente por outros empregos mais bem pagos.

As crianças precisam de se familiarizar na prática com o método experimental, e não apenas de ler coisas sobre ciência num livro. Podem-nos falar da oxidação da cera como explicação para a chama de uma vela. Mas teremos uma percepção muito mais viva do que se passa se testemunharmos a vela a arder numa redoma de vidro até o dióxido de carbono produzido envolver o pavio e bloquear o acesso de oxigénio, acabando a chama por vacilar e morrer. Podem-nos falar das mitocôndrias nas células, como intervêm na oxidação dos alimentos como a chama que queima a cera, mas será completamente diferente vê-las ao microscópio. Podem-nos dizer que o oxigénio é necessário à vida de alguns organismos e não à de outros. Mas começaremos realmente a compreender isso quando confirmarmos a afirmação numa campânula de onde se retirou todo o oxigénio. O que faz o oxigénio por nós? Porque morremos sem ele? De onde vem o oxigénio do ar? Em que medida o seu fornecimento é seguro?

A experiência e o método científico podem ser ensinados em muitas matérias além da ciência. Daniel Kunitz é um amigo meu desde a universidade. Tem sido um professor inovador de Ciências Sociais do ensino secundário. Queremos que os alunos compreendam a Constituição dos Estados Unidos? Podemos mandá-la ler, artigo por artigo, e depois analisá-la na aula ― mas, infelizmente, isso iria pôr a maior parte dos alunos a dormir. Ou então podemos tentar o método de Kunitz: proibir os alunos de ler a Constituição, e, em vez disso, incumbi-los da tarefa de, em grupos de dois, representarem cada um dos estados numa convenção constitucional. Explicamos em detalhe, a cada uma das treze equipas, os interesses particulares do seu estado e região. Por exemplo, à delegação da Carolina do Sul falaríamos do primado do algodão, da necessidade e da moralidade do tráfico de escravos, do perigo que representa o Norte industrial e assim por diante. As treze delegações reúnem-se e, com uma pequena orientação do professor, mas fundamentalmente por si próprias, escrevem uma Constituição ao longo de algumas semanas. Depois lêem a verdadeira constituição. Os alunos tinham reservado para o presidente o poder de declarar a guerra. Os delegados de 1787 atribuíram-no ao Congresso. Porquê? Os estudantes tinham libertado os escravos. A Convenção Constitucional original não o fez. Porquê? Isto exige uma maior preparação por parte dos professores e mais trabalho dos alunos, mas a experiência é inesquecível. É difícil não pensar que as nações da Terra estariam em melhor situação se todos os cidadãos passassem por uma experiência semelhante.

Precisamos de mais dinheiro para a formação e para os salários dos professores, bem como para laboratórios. Mas, em toda a América, os apoios relativos à escola são normalmente rejeitados. Ninguém sugere que os impostos sobre a propriedade sejam utilizados no orçamento das forças armadas, ou em subsídios para a agricultura, ou na limpeza de lixos tóxicos. Porquê apenas a educação? Porque não apoiá-la com fundos provenientes dos impostos gerais ao nível local e estadual? E porque não uma taxa especial de educação para as indústrias com necessidades particulares de trabalhadores com formação técnica?

Os alunos americanos não trabalham o suficiente na escola. O ano lectivo-padrão nos Estados Unidos tem 180 dias, em comparação com 220 na Coreia do Sul, cerca de 230 na Alemanha e 243 no Japão. Nalguns destes países, as crianças vão à escola ao sábado. O aluno americano médio do ensino secundário despende 3,5 horas por semana com trabalhos de casa. O tempo total dedicado aos estudos, dentro e fora da sala de aula, é de cerca de 20 horas por semana. A média para os alunos japoneses do 5.° ano de escolaridade é de 33 horas por semana. O Japão, com metade da população dos Estados Unidos, produz em cada ano duas vezes mais cientistas e engenheiros com graus avançados.

Durante quatro anos de ensino secundário, os estudantes americanos despendem menos de 1500 horas em assuntos como a Matemática, a Ciência e a História. Para os alunos japoneses, franceses e alemães, este tempo é mais do dobro. Um relatório, de 1994, encomendado pelo Departamento de Educação dos EUA, refere o seguinte:

O dia escolar tradicional tem agora de abarcar uma série de exigências para aquilo a que se chamou "o novo trabalho das escolas" ― educação sobre segurança pessoal, assuntos de consumo, SIDA, preservação do meio ambiente e energia, vida familiar e código da estrada.

Assim, em virtude das deficiências da sociedade e da educação no lar, despendem-se no ensino secundário apenas 3 horas por dia nas matérias académicas centrais.

Existe a ideia generalizada de que a ciência é "demasiado difícil" para as pessoas vulgares. Podemos ver isto reflectido numa estatística que mostra que apenas cerca de 10 % dos estudantes americanos das escolas secundárias optam por um curso de Física. O que torna a ciência subitamente "demasiado difícil"? Por que razão não é ela demasiado difícil para os cidadãos de todos os outros países que estão a ultrapassar os Estados Unidos? Que é feito do génio americano para a ciência, para a inovação técnica e para o trabalho árduo? Outrora, os Americanos orgulhavam-se dos seus inventores, que foram os pioneiros do telégrafo, do telefone, da luz eléctrica, do fonógrafo, do automóvel e do avião. Com excepção dos computadores, tudo isto parece uma coisa do passado. Para onde foi todo esse "engenho ianque"?

A maioria das crianças americanas não é estúpida. Em parte, a razão pela qual não estuda muito é que recebe poucas recompensas tangíveis quando o faz. Nos nossos dias, a competência (ou seja, conhecer efectivamente a matéria) em aptidões verbais, matemática, ciência e história não aumenta os ganhos monetários médios dos homens americanos jovens nos primeiros oito anos depois de saírem do ensino secundário ― muitos dos quais obtêm emprego nos serviços, e não na indústria.

Porém, nos sectores produtivos da economia, a história é frequentemente diferente. Existem fábricas de mobiliário, por exemplo, que estão em perigo de encerrar as suas portas, não porque não haja clientes, mas porque o número de trabalhadores principiantes capaz de fazer cálculos aritméticos simples é extremamente reduzido. Uma grande companhia de electrónica refere que 80 % das pessoas que concorrem para um emprego na firma não conseguem passar num teste de Matemática do 5.° ano de escolaridade. Os Estados Unidos estão já a perder cerca de 40 000 milhões de dólares por ano (sobretudo em perda de produtividade e em custos de cursos de remediação) porque os trabalhadores, num grau demasiado elevado, não sabem ler, nem escrever, nem contar, nem pensar.

Um estudo, efectuado pelo Conselho de Ciência Nacional dos EUA, de 139 companhias de alta tecnologia do país revela que as principais causas do declínio da investigação e do desenvolvimento atribuíveis à política nacional eram 1) ausência de uma estratégia a longo prazo para enfrentar o problema; 2) pouco interesse na formação de futuros cientistas e engenheiros; 3) investimento demasiado na "defesa" e insuficiente na investigação e desenvolvimento civis; e 4) pouca atenção dada à educação pré-escolar. A ignorância alimenta a ignorância. A fobia da ciência é contagiosa.

Os que, na América, revelam uma opinião mais favorável da ciência são geralmente jovens brancos do sexo masculino, de classes abastadas e com formação universitária. Mas três quartos dos novos trabalhadores americanos na próxima década serão mulheres, não brancos e imigrantes. Não fazer nada para despertar o seu entusiasmo ― para já não falar da discriminação para com eles ― é não só injusto, como estúpido e contraproducente. Isso só vai privar a economia de trabalhadores especializados, que são absolutamente necessários.

Os estudantes afro-americanos e hispânicos obtêm agora resultados significativamente melhores em testes padronizados de ciência do que no final dos anos 60, mas são os únicos em que isso acontece. Nos EUA, a diferença média em aptidões matemáticas entre os Brancos e os Negros que completaram o ensino secundário é ainda enorme ― dois a três anos; mas a diferença entre os estudantes brancos americanos que completaram o ensino secundário e, por exemplo, os estudantes do Japão, do Canadá, da Grã-Bretanha ou da Finlândia é mais de duas vezes maior (com desvantagem para os americanos). Uma pessoa pouco motivada e com pouca instrução não sabe grande coisa ― a este respeito não há dúvidas. Os afro-americanos suburbanos com pais com formação universitária têm resultados tão bons na universidade como os brancos suburbanos com pais com formação universitária, Como mostram algumas estatísticas, inscrever uma criança pobre num programa Head Start duplica as suas probabilidades de vir a ter um emprego mais tarde; um jovem que complete um programa Upward Bound tem uma probabilidade quatro vezes maior de obter uma formação universitária. Se quisermos mesmo, sabemos o que temos a fazer.

E quanto à universidade? Há passos óbvios a dar: melhoria da situação com base no sucesso no ensino e promoções dos professores com base nos resultados dos seus alunos em testes padronizados e duplamente cegos; salários dos professores que se aproximem dos que poderiam obter na indústria; mais subsídios, mais bolsas e mais equipamento para os laboratórios; currículos imaginativos e estimulantes, e manuais nos quais os professores mais destacados tenham um papel predominante; exigência de disciplinas laboratoriais para quem queira obter uma licenciatura; e uma atenção especial para com aqueles que, tradicionalmente, são afastados da ciência. Devíamos também encorajar os melhores cientistas académicos a despender mais tempo com a educação do público ― manuais, conferências, artigos em jornais e revistas, participação em programas de televisão. E podia valer a pena tentar criar uma disciplina, nos dois primeiros anos universitários, de pensamento céptico e métodos da ciência.

O místico William Blake olhava para o Sol e via lá anjos, enquanto outros, mais terra-a-terra, "observavam apenas um objecto com o tamanho e a cor aproximados de um guinéu de ouro". William Blake viu de facto anjos no Sol, ou ter-se-á tratado de um erro de percepção ou cognitivo? Não conheço nenhuma fotografia do Sol em que se veja qualquer coisa desse tipo. Será que ele viu o que uma câmara fotográfica e o telescópio não conseguem ver? Ou a explicação reside muito mais na cabeça de Blake do que cá fora? E a verdadeira natureza do Sol, tal como nos é revelada pela ciência moderna, não é muito mais maravilhosa: não simples anjos ou moedas de ouro, mas uma enorme esfera que podia albergar 1 milhão de Terras, em cujo centro os núcleos ocultos dos átomos são comprimidos uns contra os outros, o hidrogénio é transfigurado em hélio e é libertada a energia latente no hidrogénio há milhões de anos, aquecendo e iluminando assim a Terna e os outros planetas, processo este que se repete 400 000 milhões de vezes em toda a galáxia da Via Láctea?

Os planos, as instruções detalhadas e as ordens necessárias para construir um homem a partir de um esboço encheriam cerca de 1000 volumes de enciclopédia se fossem escritos em inglês. No entanto, cada célula do nosso corpo tem um conjunto destas enciclopédias. Um quasar está tão longe que a luz que vemos dele começou a sua viagem intergaláctica antes de a Terra se ter formado. Todas as pessoas da Terra descendem dos mesmos antepassados, ainda não exactamente humanos, na África oriental há alguns milhões de anos, o que nos torna a todos primos.

Sempre que penso em qualquer destas descobertas, sinto um formigueiro de satisfação. O meu coração bate mais depressa. Não consigo evitá-lo. A ciência é um assombro e um prazer. Todas as vezes que uma nave espacial sobrevoa um mundo novo, fico espantado. Os cientistas planetários perguntam a si próprios: "Oh, é assim que as coisas são? Porque não pensei nisso?" Mas a natureza é sempre mais subtil, mais complexa, mais elegante do que somos capazes de imaginar. Dadas as nossas manifestas limitações humanas, o que é surpreendente é que tenhamos sido capazes de penetrar tão profundamente nos segredos da natureza.

Quase todos os cientistas experimentaram, num momento de descoberta ou de compreensão súbita, um misto de admiração e reverência. A ciência ― a ciência pura, e não para qualquer aplicação prática, mas por si própria ― é um assunto profundamente emocional para aqueles que a fazem, bem como para os não cientistas que de vez em quando lêem coisas sobre ciência para saber o que tem sido descoberto ultimamente. E, como num romance policial, é um prazer formular as perguntas-chave, analisar explicações alternativas e eventualmente mesmo fazer avançar o processo da descoberta científica. Vejam-se os seguintes exemplos, alguns muito simples, outros não, escolhidos mais ou menos ao acaso:

  • Pode haver um número inteiro, ainda não descoberto, entre 6 e 7?

  • Pode haver um elemento químico, ainda não descoberto, entre o número atómico 6 (que é o carbono) e o número atómico 7 (que é o nitrogénio)?

  • Sim, o novo conservante provoca cancro em ratazanas. Mas, e se tiver de dar a uma pessoa, que pesa muito mais do que uma ratazana, meio quilo por dia do produto para provocar o cancro? Nesse caso, talvez o novo conservante não seja perigoso. Poderá o benefício de poder conservar os alimentos durante longos períodos superar o pequeno risco adicional de cancro? Quem decide? De que dados precisamos para tomar uma decisão prudente?

  • Numa rocha com 3,8 mil milhões de anos descobrimos uma relação entre isótopos de carbono típica dos organismos vivos actuais e diferente da dos sedimentos inorgânicos. Iremos concluir daí que havia uma vida abundante na Terra há 3,8 mil milhões de anos? Ou é possível que resíduos químicos de organismos mais modernos se tenham infiltrado na rocha? Ou há uma maneira de os isótopos se separarem na rocha para além dos processos biológicos?

  • Medidas sensíveis das correntes eléctricas no cérebro humano mostram que, quando ocorrem certas recordações ou processos mentais, entram em acção regiões particulares do cérebro. Poderão todos os nossos pensamentos, recordações e paixões ser gerados por circuitos particulares dos neurónios cerebrais? Virá alguma vez a ser possível simular estes circuitos num robot? Será alguma vez realizável a inserção de novos circuitos ou a alteração de circuitos antigos no cérebro de forma a modificar opiniões, recordações, emoções, deduções lógicas? Estas intromissões em áreas proibidas serão insensatas e perigosas?

  • A nossa teoria sobre a origem do sistema solar prevê a existência de muitos discos achatados de gás e poeiras em toda a galáxia da Via Láctea. Olhamos pelo telescópio e vemos discos achatados em todo o lado. Concluímos alegremente que a nossa teoria se confirma. Mas depois verifica-se que os discos observados são galáxias espirais que se encontram muito para lá da Via Láctea, e que são demasiado grandes para poderem ser sistemas solares nascentes. Devemos abandonar a teoria? Ou devemos procurar um tipo de disco diferente? Ou abandonar uma hipótese desacreditada é apenas uma manifestação de má vontade?

  • Um cancro em desenvolvimento envia um alerta geral às células que revestem os vasos sanguíneos adjacentes: "Precisamos de sangue", diz a mensagem. Obedientemente, as células endoteliais constróem pontes de vasos sanguíneos para fornecer sangue às células cancerosas. Como se passa isto? Será possível interceptar ou cancelar a mensagem?

  • Misturamos tintas violeta, azul, verde, amarela, cor de laranja e vermelha e obtemos um castanho-escuro. Depois misturamos luz das mesmas cores e obtemos branco. O que se passa?

  • Nos genes dos seres humanos e de muitos outros animais existem sequências longas e repetitivas de informação hereditária. Algumas destas sequências provocam doenças genéticas. Será possível que segmentos de ADN sejam ácidos nucleicos patifes, que se reproduzem independentemente, que trabalham para si próprios e que não querem saber do bem-estar do organismo que habitam?

  • Muitos animais têm um comportamento estranho nos momentos que antecedem um tremor de terra. O que sabem eles que os sismólogos não sabem?

  • A palavra asteca antiga e a palavra grega antiga para "Deus" são quase iguais. Isto é um indício de um contacto ou de aspectos comuns entre as duas civilizações, ou será de esperar a ocorrência de coincidências ocasionais, e meramente por acaso, entre duas línguas completamente independentes? Ou será que, como pensava Platão noCrátilo, certas palavras estão dentro de nós desde o nascimento?

  • A segunda lei da termodinâmica afirma que no universo, como um todo, a entropia aumenta com o tempo. (É claro que, localmente, podem emergir mundos, a vida e a inteligência, à custa de uma diminuição da ordem noutros lugares do universo). Mas, se vivemos num universo em que a actual expansão do big bang se irá tornando mais lenta, até parar, sendo substituída por uma contracção, a segunda lei pode ser invertida? Os efeitos podem preceder as causas?

  • O corpo humano utiliza ácido clorídrico concentrado no estômago para dissolver os alimentos e ajudar a digestão. Por que razão o ácido clorídrico não dissolve o estômago?

  • No momento em que escrevo parece que as estrelas mais velhas são mais velhas do que o universo. Tal como uma mulher que pretende que os filhos são mais velhos do que ela, não é preciso saber muito para perceber que alguém cometeu um erro. Quem?

  • Existe actualmente tecnologia para deslocar átomos um a um, de tal modo que se podem escrever mensagens longas e complexas numa escala ultramicroscópica. Também é possível fazer máquinas do tamanho de moléculas. Encontram-se presentemente bem demonstrados exemplos destas "nanotecnologias". Onde nos vai conduzir isto dentro de algumas décadas?

  • Em diversos laboratórios diferentes descobriram-se moléculas complexas que, em condições adequadas, fazem cópias de si próprias em tubo de ensaio. Algumas destas moléculas são, tal como o ADN e o ARN, constituídas por nucleótidos; outras não. Algumas utilizam enzimas para acelerar a velocidade da química; outras não. Por vezes há um erro na cópia; a partir desse ponto, o erro é copiado durante sucessivas gerações de moléculas. Assim, passam a existir espécies ligeiramente diferentes de moléculas auto-replicantes, algumas das quais se reproduzem mais rapidamente ou mais eficientemente do que outras. São estas que se impõem. À medida que o tempo passa, as moléculas no tubo de ensaio tornam-se cada vez mais eficientes. Estamos a começar a testemunhar a evolução das moléculas. Em que contribui isto para compreender a origem da vida?

  • Por que motivo o gelo vulgar é branco, mas o gelo glaciário puro é azul?

  • Já foi encontrada vida a quilómetros de profundidade da superfície da Terra. Até onde existe vida?

  • Segundo um antropólogo francês, o povo Dogon, da República do Mali, tem uma lenda segundo a qual a estrela Sírio tem uma estrela companheira extremamente densa. De facto, Sírio tem essa companheira, embora seja necessária uma astronomia muito sofisticada para a detectar. Assim, 1) o povo Dogon descende de uma civilização esquecida que tinha poderosos telescópios ópticos e uma astrofísica teórica desenvolvida? Ou, 2) souberam disso por extraterrestres? Ou, 3) os Dogon ouviram falar de uma companheira anã branca de Sírio por um visitante europeu? Ou, 4) o antropólogo francês estava enganado e os Dogon nunca tiveram essa lenda?

Por que razão os cientistas haveriam de ter dificuldade em fazer compreender a ciência? Há cientistas ― incluindo alguns muito bons ― que me dizem que gostariam de divulgar a ciência, mas que sentem não ter talento para tal. Saber e explicar, dizem eles, não é o mesmo. Qual é o segredo?

Penso que o segredo é apenas um: não se deve falar para o público em geral como se fala para os nossos colegas cientistas. Existem termos que transmitem instantânea e adequadamente o que se pretende dizer a um especialista. Podemos usar estas frases todos o s dias no nosso trabalho profissional. Mas elas irão apenas confundir uma audiência de leigos. Devemos utilizar a linguagem mais simples possível. Sobretudo, lembremo-nos de como era quando nós próprios ainda não compreendíamos o que quer que estivéssemos a explicar. Tenhamos presentes as confusões em que estivemos prestes a cair e chamemos explicitamente a atenção para elas. Nunca nos devemos esquecer de que houve um tempo em que também não compreendíamos nada disto. Devemos recapitular os primeiros passos que nos conduziram da ignorância até ao conhecimento. Nunca devemos esquecer que a inteligência inata está amplamente distribuída na nossa espécie. Na realidade, isso é o segredo do nosso sucesso.

O esforço envolvido é pequeno, mas os benefícios são grandes. Entre os principais perigos que se nos deparam contam-se a simplificação excessiva, a necessidade de ser comedido com as qualificações (e as quantificações), o pouco crédito dado a muitos cientistas envolvidos e uma distinção pouco clara entre as analogias úteis e a realidade. Sem dúvida que terão de se fazer compromissos.

A prática ajuda muito a apurar o nosso trabalho. Processa-se uma selecção natural de metáforas, imagens, analogias, histórias. Ao fim de algum tempo sentimos que podemos ir a qualquer lado que queiramos, pisando caminhos de resultado comprovado. Podemos assim adequar a nossa exposição às necessidades de um determinado público.

Tal como alguns editores e produtores de televisão, alguns cientistas pensam que o público é demasiado ignorante ou demasiado estúpido para compreender a ciência, que a ideia da divulgação é fundamentalmente uma causa perdida, ou que representa mesmo uma confraternização, ou até uma coabitação ultrajante, com o inimigo. Uma das muitas críticas que se poderiam fazer a estas maneiras de pensar ― a par da sua intolerável arrogância e de ignorar muitos exemplos de divulgação da ciência que tiveram grande sucesso ― é que elas são inconsistentes. Além disso, para os cientistas envolvidos, são contraproducentes.

Com efeito, o apoio em grande escala à ciência por parte do governo é uma coisa bastante recente, que data apenas da segunda guerra mundial ― embora o patrocínio de alguns cientistas pelos ricos e poderosos seja muito mais antigo. Com o final da guerra fria, o trunfo da defesa nacional que justificava todos os tipos de ciência fundamental deixou virtualmente de funcionar. Apenas em parte por esta razão, a maioria dos cientistas, penso eu, aceita agora bem a ideia de divulgar a ciência. (Uma vez que quase todo o apoio para a ciência provém dos cofres públicos, se os cientistas se opusessem a esta divulgação, estariam a contribuir para o seu suicídio). O que o público compreende e aprecia será mais facilmente apoiado. Não me estou a referir a artigos, por exemplo, para a Scientific American, que são lidos por entusiastas da ciência e cientistas de outros campos. Estou a falar de ensinar cursos elementares para não licenciados. Estou a falar de esforços para comunicar a essência e a abordagem da ciência em jornais, em revistas, na rádio e na televisão, em conferências para o público em geral, e em manuais para o ensino básico e secundário.

É claro que, nesta tarefa da divulgação, há opções a fazer. É importante não entrar na mistificação nem no paternalismo. Na tentativa de captar o interesse do público, os cientistas foram por vezes longe de mais ― por exemplo, ao extraírem conclusões injustificadas de carácter religioso. O astrónomo George Smoot descreveu a sua descoberta de pequenas irregularidades na radiação rádio proveniente do big bang como "um encontro frente a frente com Deus". Leon Lederman, laureado com o Prémio Nobel, descreveu o bosão de Higgs, um hipotético bloco estrutural da matéria, como "a partícula de Deus", tendo dado esse título a um livro seu. (Em minha opinião, todas as partículas são partículas de Deus). Se o bosão de Higgs não existir, estará refutada a hipótese da existência de Deus? O físico Frank Tipler sugere que, num futuro remoto, serão os computadores a provar a existência de Deus e a operar a nossa ressurreição da carne.

Os periódicos e a televisão podem lançar faíscas quando nos dão um lampejo da ciência, e isto é muito importante. Mas ― com excepção do sistema do aprendizado ou de aulas e seminários bem estruturados ― a melhor maneira de popularizar a ciência é através de manuais, livros de divulgação, CD-ROM e discos de laser. Assim, poder-se-á reflectir sobre as questões, avançar ao ritmo próprio de cada um, rever as partes mais difíceis, comparar textos, aprofundar as coisas. No entanto, isto tem de ser feito como deve ser, e geralmente não o é, em particular nas escolas. Aqui, como refere o filósofo John Passmore, a ciência é muitas vezes apresentada

como uma questão de aprender princípios e de os aplicar por meio de técnicas rotineiras. É aprendida em manuais, e não pela leitura de obras de grandes cientistas ou mesmo de contribuições quotidianas para a literatura científica... O cientista principiante, ao contrário do humanista principiante, não tem um contacto imediato com o génio. Na realidade ... os cursos escolares podem atrair o tipo de pessoas errado para a ciência rapazes e raparigas sem imaginação, que gostam da rotina.

Defendo a ideia de que a divulgação científica terá êxito se, de início, se limitar a suscitar a sensação de deslumbramento. Para isso é suficiente dar uma ideia geral das descobertas da ciência sem explicar pormenorizadamente como se chegou a essas descobertas. É mais fácil descrever o destino do que a viagem. Mas, sempre que possível, os divulgadores devem tentar contar a história de alguns dos erros, de falsas partidas, de becos sem saída e da confusão aparentemente irremediável que se verificou ao longo do caminho. Pelo menos, de vez em quando devemos fornecer os dados e deixar o leitor tirar as suas conclusões. Isto transforma a assimilação obediente de novos conhecimentos numa descoberta pessoal. Quando é a própria pessoa a fazer a descoberta ― ainda que seja a última pessoa da Terra a ver a luz ― ela nunca a esquecerá.

Quando era jovem, fui inspirado por livros e artigos de divulgação científica de George Gatnow, James Jeans, Arthur Eddington, J. B. S. Haldane, Julian Huxley, Rachel Carson, e Arthur C. Clark ― todos eles com formação científica e, na sua maioria, trabalhadores destacados da ciência. A popularidade de livros sobre ciência bem escritos, bem explicados e profundamente imaginativos, que tocam os nossos corações, bem como os nossos cérebros, parece ser maior nos últimos vinte anos do que nunca e o número e a diversidade disciplinar dos cientistas que escrevem estes livros também não têm precedentes. Entre os melhores divulgadores da ciência contemporâneos refiro os nomes de Stephen Jay Gould, E. O. Wilson, Lewis Thomas e Richard Dawkins, na biologia; Steven Weinberg, Alan Lightman e Kip Thoine, na física; Roald Hoffman, na química; e as primeiras obras de Fred Hoyle, na astronomia. Isaac Asimov escreveu com competência sobre tudo. (E, embora já envolva cálculos matemáticos, o livro de divulgação científica mais interessante, provocador e inspirador das últimas décadas, parece-me ser o volume I da obra Introductory Lectures on Physics [Lições Elementares de Física], de Richard Feynman. No entanto, estes esforços estão longe de serem reconhecidos como um bem público. E, é claro, se não soubermos ler, não podemos beneficiar dessas obras, por mais inspiradoras que sejam.

Quero que salvemos o Sr. "Buckley" e os milhões como ele. Quero parar a produção de alunos do ensino secundário amorfos, sem curiosidade, sem espírito crítico e falhos de imaginação. A nossa espécie necessita de, e merece, uma cidadania com espíritos bem despertos e uma compreensão básica do modo corno o mundo funciona.

A ciência, continuo a dizer, constitui um instrumento absolutamente essencial para qualquer sociedade que queira ter esperança em transitar para o próximo século com os seus valores fundamentais intactos ― não apenas a ciência tal como é feita pelos cientistas, mas a ciência compreendida e acolhida por toda a comunidade humana. E, se não forem os cientistas a fazê-lo, quem o fará?

[38] Estou a excluir a chuva de "porquês" com que as crianças de 2 anos por vezes bombardeiam os pais ― talvez na tentativa de controlar o comportamento adulto.

Carl Sagan, Um Mundo Infestado de Demónios, Gradiva, Lisboa, 1998, pp. 321-338

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