Uma educação liberal

 

E. O. Wilson, A Criação

A vastidão da biologia abre o caminho a uma educação liberal, que se disponha a desenvolver seres humanos que saibam não apenas factos, mas também conceitos, que compreendam como se aprende e que sejam capazes de pensar por si próprios, e estejam motivados para o fazer.

De que melhor forma pode a biologia tornar-se parte de uma educação liberal? Creio que posso fornecer uma resposta. Durante a maior parte dos quarenta e um anos em que fui professor em Harvard tive o privilégio de ensinar fundamentos de biologia, principalmente em disciplinas opcionais para alunos do programa de artes liberais (ou que, pelo menos, tinha essa aparência). O meu enfoque era ao nível dos organismos e dos ecossistemas. Com os meus alunos explorei também a fundo o processo evolutivo. De qualquer forma, o meu esforço era muito popular: as minhas avaliações pelos meus alunos eram elevadas e recebi ambos os prémios para professores atribuídos pela universidade. Estou convencido de que os princípios que aprendi sobre ensino ao longo dos anos, tanto por aquilo que ouvi de grandes oradores em Harvard como pelas minhas próprias tentativas e erros, se podem aplicar, tanto em programas de licenciatura como em cursos de mestrado e doutoramento em qualquer lugar, como aos cursos escolares do secundário a um nível mais avançado. A relevância dos princípios foi confirmada durante palestras e discussões que tive em muitas universidades e escolas superiores de artes liberais nos Estados Unidos e no estrangeiro.

O primeiro princípio é:

Ensinar top-down (do geral para o particular). Se aprendi alguma coisa em quatro décadas de experiência, é que a melhor forma de transmitir conhecimentos e de estimular o raciocínio é ensinar cada assunto do geral para o específico. Abordar uma questão genérica, à partida interessante para os estudantes e relevante para as suas vidas, depois descascar camadas de causalidade, de acordo com o conhecimento corrente e com detalhe técnico e argumentação filosófica crescentes, para ensinar e provocar. Explicar, por exemplo, o envelhecimento e a morte o melhor possível com o conhecimento adquirido pela evolução, pela genética e pela fisiologia e depois explorar as consequências para a demografia, as políticas públicas e a filosofia. Finalmente, se o desejarmos, avançar lateralmente, para as consequências do fenómeno na história, religião, ética e nas artes criativas. Não ensinar do particular para o geral, com uma introdução do tipo «primeiro vamos aprender um bocadinho disto e um bocadinho daquilo e depois vamos juntar tudo o que aprendemos para termos o quadro todo». Não pinte o quadro em manchas pontilhadas para alunos que facilmente se aborrecem. Ao invés, exponha-o inteiro assim que possível e mostre-lhes porque é importante para eles e porque continuará a sê-lo ao longo das suas vidas. Depois disseque o conjunto até às suas bases.

Tomemos, por exemplo, o sexo. Não a anatomia e a prática do mesmo, nem a fisiologia, a fertilidade ou a contracepção. Ao invés, pergunte: antes de mais, porque existe o sexo? Como é que o biólogo encara o assunto por oposição, por exemplo, ao filósofo, ao teólogo ou ao romancista? Porque não se limitam as pessoas ― as mulheres, para ser mais exacto ― a praticar a partenogénese, desenvolvendo embriões a partir de óvulos não fertilizados? Esta prática assexuada é generalizada no reino animal. Então para que servem os machos e o esperma? As respostas a estas questões pouco familiares, se, na procura da causa última, não ficarmos por Adão, Eva e pela vontade de Deus, leva-nos ao tema da variedade genética. Ter dois códigos genéticos dá a cada pessoa flexibilidade para lidar com um ambiente em constante mudança. Para ilustrar com o exemplo clássico, na maior parte da África subsariana, receber de um dos pais um gene para a anemia falciforme protege a pessoa da malária maligna, ao mesmo tempo que o gene correspondente normal reduz suficientemente o efeito do gene falciforme para evitar que a pessoa morra de anemia. O resultado é que a característica falciforme está difundida nas áreas em que a malária maligna é comum, mas nunca substitui o gene normal.

Em termos gerais, ter dois códigos genéticos também permite que os progenitores tenham descendência com mais variedade genética entre si, para que pelo menos um ou alguns dos descendentes sobrevivam num ambiente constantemente em mudança. No entanto, a variedade genética como causa última do sexo é apenas uma teoria. De que forma poderiam os biólogos testar esta teoria? Já foi comprovada? (Na realidade, é fortemente suportada, mas ainda não definitivamente provada pelos factos).

Desta forma, provocar os estudantes, dar-lhes uma nova perspectiva, desafiar os confortáveis pressupostos e crenças que traziam com eles, fazer deles nossos colegas, mandá-los em buscas intelectuais e espirituais próprias, prepara-os correctamente para entrarem, como se diz na bênção inicial em Harvard, na congregação de homens e mulheres instruídos.

Como qualquer professor de ciências, deparou-se-me um grande obstáculo, a fobia da matemática, a maldição pandémica do Homo sapiens na aprendizagem. Tenho a certeza que muitos dos alunos em Harvard preferiram licenciar-se nas Humanidades e enfrentar os rigores, diferentes e mais verbais, desse domínio, ou, pelo menos, ter tão poucas aulas de Ciências quanto possível, porque estavam convencidos de que não tinham capacidades para a matemática. As temáticas da ciência poderiam até fasciná-los ― a origem do universo, a natureza das alterações climáticas, a evolução da vida e, claro, o significado do sexo ―, mas a parte obrigatória de um modo de pensar «quantitativo» parecia demasiado assustadora.

Os que têm fobia da matemática estão enganados! A matemática é apenas uma linguagem e a linguagem é apenas um hábito de raciocínio. Os ideogramas chineses e as expressões matemáticas são tão crípticas para os não-iniciados como familiares para aqueles que cedo as aprenderam. A partir do momento em que os símbolos e as operações normais da matemática sejam aprendidos e usados repetidamente até se tornarem numa segunda natureza, ler uma equação não é muito diferente de ler uma passagem de um livro. Um texto sobre dinâmica populacional pode ser menos desconcertante do que o Ulisses e muito mais simples do que o Beowulf não traduzido.

A melhor maneira de lá levar aqueles que evitaram a linguagem da matemática é usar uma abordagem do geral para o particular para algum problema importante e interessante da vida real. Eis um dos meus exemplos preferidos. Poucos assuntos preocupam mais as pessoas do que as doenças hereditárias ou a predisposição para certas doenças. Em todas as populações humanas ocorrem genes defeituosos que se manifestam virtualmente em todos os tipos de doenças, desde as comezinhas às fatais, desde o aborto espontâneo e a mortalidade infantil até centenas de distúrbios nas crianças e nos adultos. Entre as mais familiares contam-se a hemofilia, a anemia falciforme, a fibrose quística, a coreia ou doença de Huntington e formas individuais de daltonismo. A que ponto estes genes e os sintomas que causam são comuns?

Seja paciente comigo e acompanhe-me ao longo dos dois próximos parágrafos, enquanto percorro a explicação dada às minhas congregações anuais de fóbicos da matemática em Harvard. Depois de o aluno ter aprendido os princípios elementares da hereditariedade mendeliana, que são, na verdade, fórmulas matemáticas sem as notações matemáticas abstractas, está pronto para a equação de Hardy-Weinberg, um marco da genética de populações e da teoria evolutiva. A equação diz o seguinte: considere que cada pessoa tem dois cromossomas do mesmo tipo e que numa dada posição dos cromossomas há um gene que pode diferir (ou não diferir) de um cromossoma para o outro. Numa população de pessoas, conte o número de genes de cada tipo (lembre-se de que, por pessoa, há dois genes na mesma posição do cromossoma, um de cada progenitor e, como tal, existem duas vezes mais genes nessa posição do que pessoas). Tome-se a percentagem de genes do primeiro tipo na posição seleccionada, por exemplo, 80 por cento (uma frequência de 0,8) e 20 por cento (uma frequência de 0,2) do outro tipo. A equação de Hardy-Weinberg diz que a frequência de organismos (pessoas, neste caso) na população que têm duas vezes o gene do primeiro tipo na posição seleccionada é o quadrado da frequência desse gene, ou seja 0,8 x 0,8 = 0,64; e a frequência de organismos na população com dois genes do segundo tipo é o quadrado da frequência desse gene, isto é 0,2 x 0,2 = 0,04. Finalmente, a percentagem de organismos na população com os dois tipos de genes é o múltiplo das frequências dos dois genes vezes 2; neste exemplo, 0,8 x 0,2 x 2 = 0,32. A soma das três frequências tem de ser igual a 1,0 ou 100 por cento e é-o realmente: 0,64 + 0,04 + 0,32 = 1,0.

Aí está. É só isto. Agora pode-se escrever o princípio sob a forma de uma equação matemática: p2 + 2pq + q2 = 1,0. Convertida para números, a equação passa a ser (0,8 x 0,8) + (2 x 0,8 x 0,2) + (0,2 x 0,2) = 1,0. Também podemos derivar a equação de Hardy-Weinberg a partir dos primeiros princípios da hereditariedade mendeliana, da mesma forma que Godfrey H. Hardy e Wilhelm Weinberg o fizeram há um século, na parte de trás de um envelope.

Porque é importante a equação de Hardy-Weinberg? Comecemos com genes comuns que podem ser facilmente detectados, muitos dos quais são recessivos (os seus efeitos são bloqueados pela presença do gene dominante), mas que se expressam quando ocorrem em dose dupla. Exemplos que os alunos, sentados na aula, podem verificar na sua própria pessoa, são se o lóbulo da orelha é colado à cabeça ou se é pendurado, a incapacidade de enrolar a língua em tubo, se a margem da frente do cabelo faz um bico ou não, se conseguem dobrar o polegar bem para trás. A partir daqui, estimamos imediatamente as frequências dos genes na população, bem como a frequência de indivíduos com doses duplas e os que têm meias doses dos genes dominantes. Neste ponto, um professor precisa apenas de salientar que ao passo que o bico de cabelo ou os lóbulos agarrados não causam dano aparente, a mesma equação de Hardy-Weinberg é válida para genes causadores de doenças. Os princípios são, por isso, uma parte importante da medicina moderna. Quase todos os estudantes conhecem alguém, muitas vezes um parente, portador de um desses genes defeituosos.

O segundo princípio é:

Ir além da biologia. O contínuo crescimento explosivo do conhecimento, especialmente nas ciências, resultou numa convergência de disciplinas e criou a realidade, e não apenas a retórica, dos estudos interdisciplinares. A biologia, por exemplo, é actualmente um caleidoscópio, em rápida evolução, de subdisciplinas híbridas. As revistas científicas e os currículos das universidades estão pejados de nomes como «genética molecular», «neuroendocrinologia», «ecologia do comportamento» e «sociobiologia».

A biologia expandiu-se também para as fronteiras das ciências sociais e das humanidades e estas aproximaram-se daquela. Consequentemente, aquilo que foi em tempos entendido como uma divisão epistemológica entre os grandes ramos do ensino está agora a emergir do nevoeiro académico como algo de muito diferente e de muito mais interessante: um amplo domínio intermédio de fenómenos ainda maioritariamente inexplorados, aberto a uma abordagem cooperativa de ambos os lados da antiga barricada. Há já disciplinas de um dos lados deste domínio intermédio ― por exemplo, a neurociência e a biologia evolutiva ― que se ligaram aos seus vizinhos mais próximos do outro lado, a psicologia e a antropologia.

O domínio intermédio é uma região de progresso intelectual excepcionalmente rápido. Além do mais, aborda assuntos em que os estudantes (e as restantes pessoas) estão mais interessados: a natureza e a origem da vida, o significado do sexo, a base da natureza humana, a origem e a evolução da vida, porque temos de morrer, as origens da religião e da ética, as causas da resposta estética, o papel do ambiente na evolução genética e cultural humana e muito mais.

O terceiro princípio é:

Centrar-se na resolução de problemas. Se a abordagem do geral para o particular funcionar, e funciona, e dada, além disso, a convergência e fusão de disciplinas, a melhor forma de abordar a educação geral no futuro seria ser menos orientada para as disciplinas e mais orientada para problemas. O problema (ou grande questão) abordado de forma isolada no âmbito de um curso do geral para o particular poderia ser do seguinte tipo: a natureza e as consequências da natureza humana, as bases do raciocínio moral, ou a crise do abastecimento global de água doce e a sua solução. Uma tal abordagem exigiria, da parte do instrutor, o domínio de uma grande variedade de temas, ou pelo menos que o ensino fosse feito em conjunto por um grupo de especialistas em áreas complementares.

Há, na minha opinião, uma inevitabilidade para a unidade do conhecimento. É o facto de reflectir a vida real. A trajectória de acontecimentos mundiais sugere que as pessoas instruídas deveriam estar mais bem equipadas do que antes para abordarem corajosa e analiticamente as grandes questões, empreendendo o estudo de disciplinas transversais. Estamos na era da síntese, com uma componente empírica real. Por isso, Sapere aude. Ousemos pensar por nós próprios.

O quarto princípio é:

Ir fundo e longe. Ao chegar ao segundo ano, todos os alunos do ensino superior deveriam ter começado a pensar estrategicamente sobre a sua própria educação. O melhor padrão a seguir tem a forma de um T. O eixo vertical representa o aprofundamento numa especialidade e a barra horizontal a variedade de experiências obtidas a partir de uma educação liberal. A especialização serve para um ofício ou como preparação para os estudos de pós-graduação. As artes liberais contribuem para a flexibilidade e a maturidade do intelecto. Naturalmente, esta é já a combinação pretendida pela maioria das instituições de ensino superior nos Estados Unidos. Espera-se dos alunos do segundo ano que escolham uma área principal como o Inglês, a Economia ou a Biologia e que, adicionalmente, optem por cadeiras seleccionadas distribuídas pela paisagem intelectual. Mas a maior parte dos estudantes tem de ser persuadida de que esta é a melhor estratégia.

Aos futuros biólogos, dou o mesmo conselho que dei a centenas de estudantes em Harvard, independentemente dos seus planos de carreira. Assim que se sentirem confortáveis para tal, escolham uma parte da biologia à qual se possam consagrar e encarem o resto da biologia como educação geral. Confiem nos vossos instintos, avancem na direcção da biologia molecular ou da biologia do comportamento ou da ecologia ou de qualquer outra disciplina ou combinação de disciplinas dentro do corpo geral das ciências biológicas. Experimentem diferentes possibilidades para localizarem mais precisamente a vossa futura «casa de partida»[*] intelectual.

Embora, como seria de esperar, a maior parte dos estudantes que me eram atribuídos, e que tinham a Biologia como área nuclear, estivesse a tentar ir para Medicina, um quarto deles, ou mais, queriam ser biólogos de campo. Optavam por essa via, embora houvesse sistematicamente poucas oportunidades de aí fazerem carreira. Nunca hesitei no meu conselho a estes biólogos em construção: sigam o vosso coração.

O quinto e último princípio é:

Dedicar-se. Voltando à paixão como motor da aprendizagem, a dedicação de um professor é mais eficaz quando manifestada tanto na arte de ensinar como na demonstração de amor pelo objecto em si mesmo. Os estudantes do secundário e do ensino superior procuram a sua identidade pessoal, mas anseiam também por uma causa maior do que eles próprios. De alguma forma, alcançarão ambas. estas marcas de maturidade, a um nível rudimentar ou elevado. De caminho, precisam de mentores em quem possam acreditar, heróis para emular e façanhas que sejam reais e que perdurem.

 

[*] No original, home base, referência à posição inicial no basebol. (N. da T.)

E. O. Wilson, A Criação: Um Apelo para Salvar a Vida na Terra, Gradiva, Lisboa, 2007, pp. 173-183

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