O Nascimento de Baco

Cadmo e o Oráculo

O rei de Tiro, Agenor, não encontrando sua filha Europa, que Júpiter mandara fosse levada para Creta, ordenou ao filho Cadmo que percorresse a terra até descobrir o paradeiro da irmã, e proibiu-lhe voltar à Fenícia sem ela. Cadmo, após buscá-la em vão, foi consultar o oráculo de Apolo para saber o que devia fazer, e dele recebeu a seguinte resposta: "Encontrarás num campo deserto uma novilha que ainda não suportou jugo nem puxou arado; segue-a, e ergue uma cidade no pasto em que ela se detiver. Darás ao lugar o nome de Beócia." Mal Cadmo saiu do antro de Apolo, viu uma vaca que ninguém vigiava e que caminhava lentamente; não lhe notou no cangote sinal nenhum de jugo; por conseguinte, seguiu-a, adorando em respeitoso silêncio o deus que lhe servia de guia. Passara o rio Cefisa e atravessara os campos de Panope, quando a novilha se deteve e, erguendo a cabeça, mugiu. Em seguida, olhou para os que a tinham seguido, e deitou-se sobre a relva.

 

Os Companheiros de Cadmo

Cadmo, após beijar a terra estrangeira e dirigir votos às montanhas e às planícies do país, resolveu oferecer um sacrifício a Júpiter, e ordenou aos companheiros que fossem buscar água. Havia nas proximidades uma antiga floresta que o ferro jamais tocara, no meio da qual existia uma gruta coberta de espinheiros; a entrada era baixíssima; e dela jorrava água em abundância. Tratava-se do retiro do dragão de Marte: o monstro era horrível, tinha a cabeça coberta de escamas amarelas, que brilhavam como ouro, dos olhos saia-lhe fogo e o corpo parecia inchado pelo veneno que continha. Exibia três fileiras de aguçadíssimos dentes e três línguas dotadas de movimentos incrivelmente rápidos.

Mal os companheiros de Cadmo entraram no antro do dragão, com a intenção de tirar água, o ruído que fizeram despertou o monstro, o qual começou a salivar; os infelizes fenícios foram todos mortos pelo dragão que a uns dilacerava com os dentes, a outros sufocava, enrodilhando-se-lhes em torno, ou envenenava com o hálito.

O Dragão de Marte

Entretanto Cadmo, espantado por notar que os companheiros não regressavam, tratou de procurá-los. Cobrindo-se da pele de um leão, empunhou a lança e o dardo, e entrou na floresta onde imediatamente percebeu o dragão de Marte, deitado sobre o corpo dos fiéis companheiros, sugando-lhes o sangue. Pegou, então, uma pedra de enorme tamanho, e atirou-a contra o monstro com tal impetuosidade que até as mais fortes muralhas e torres houveram estremecido.

Enquanto o herói contemplava o enorme tamanho do dragão abatido, ouve a voz de Palas que lhe ordenava semeasse os dentes do animal nos sulcos que trataria de abrir na terra. Cadmo obedece à ordem da deusa; imediatamente os torrões começaram a mover-se, e deles saiu uma safra de combatentes. Em primeiro lugar saíram lanças, depois os capacetes ornados de penas; em seguida perceberam-se os ombros, o peito e os braços armados dos novos homens, que começaram a lutar uns contra os outros, mal viram a luz. Igual fúria animou o bando inteiro; os infortunados irmãos encharcaram com o sangue a terra que os formara, e mataram-se a ponto de só restarem cinco. Estes passaram a ser companheiros de Cadmo, que os empregou na construção da cidade de Tebas, ordenada pelo oráculo. (Ovídio).

 

Núpcias de Cadmo e Harmonia

Harmonia, filha de Vênus e de Marte, foi a esposa que Júpiter destinava a Cadmo, e todos os deuses quiseram assistir às suas núpcias, realizadas na cidade recém-fundada. Cada um deles levou um presente a Harmonia, e Vênus entregou-lhe, entre outras coisas, um colar que se tornou famoso nas lendas tebanas. Segundo certas tradições, Júpiter teria dado Harmonia a Cadmo, para recompensar o herói pelos serviços recebidos na luta contra Tifão, que descobrira o raio do rei dos deuses e conseguira apoderar-se dele.

 

Júpiter e Semele

Cadmo teve do seu casamento com Harmonia um filho, Polidoro, e quatro filhas, Autonoe, Ino, Semele e Agave. Semele foi amada de Júpiter e tornou-se mãe de Baco; mas a nova paixão do senhor dos deuses não podia ficar por muito tempo oculta a Juno, que resolveu vingar-se antes do nascimento da criança trazida por Semele no seio. "A implacável deusa, resolvida a perder a rival, revestiu-se do aspecto de Beroé, a velha nutriz de Semele, e indo visitar a jovem, fez habilmente com que a conversação recaísse sobre Júpiter. Prouvera ao céu, disse à filha de Cadmo que seja o próprio Júpiter quem te ama! Mas eu temo por ti: quantas moças não foram iludidas por simples mortais que se diziam um deus qualquer! Se aquele de quem me falas for verdadeiramente Júpiter, ele saberá dar-te provas certas, vindo visitar-te com a majestade que o acompanha, quando se aproxima de Juno." Enganada por tão artificiosas palavras, a filha de Cadmo pediu a Júpiter que lhe concedesse uma graça, sem especificar qual, e o pai dos deuses e dos homens jurou pelo Estige que a concederia. Descontente e inquieto com o que ela lhe pedira, mas não podendo retirar um juramento pelo Estige, reuniu os trovões e os raios e foi visitar Semele. Mas a habitação de um mortal não poderia resistir àquilo, e mal o deus se aproximou do palácio de Semele o incêndio se generalizou. A filha de Cadmo ficou reduzida a cinzas, e Júpiter mal teve tempo para retirar-lhe do seio o menino que ela ia dar à luz e encerrá-lo na sua coxa, onde ficou até o dia designado para o nascimento". (Ovídio).

Esse menino foi Dionísos, chamado pelos latinos Baco, ou Líber, que assim nasceu duas vezes e foi educado pelas ninfas de Nisa.

 

A Coxa de Júpiter

O poeta Nonnos assim narra o nascimento de Baco, ao sair da coxa de Júpiter: "Entretanto, ao vê-lo sair de Semele já queimada, Júpiter acolheu Baco semiformado, fruto de tal nascimento produzido pelo raio, encerrou-o na coxa, e aguardou o curso da lua que traria a maturidade. Dali a pouco a rotundidade amoleceu sob as dores do parto, e o menino, que passara do regaço feminino ao regaço masculino, nasceu sem deixar uma mãe, pois a mão do filho de Saturno, presidindo pessoalmente o parto, destruiu os obstáculos e soltou os fios que cosiam a coxa geradora. Mal se livrou do divino parto, as Horas, que lhe haviam estipulado o tempo, coroaram Baco de grinaldas de hera como presságio do futuro. Cingiram-lhe a cabeça carregada de flores e ornada dos chifres de touro (alusão a Baco-Hébon). Depois, tirando-o da colina da Dracônia que o vira nascer, Mercúrio, filho de Maia, voou, segurando-o, e foi o primeiro em chamá-lo de Dionisos, como lembrança de sua origem paterna. Com efeito, na língua de Siracusa, Niso quer dizer coxo, e Júpiter caminhava coxeando quando trazia na coxa o peso do filho. Chamaram-no igualmente Erafriotes, deus cosido, por ter estado cosido na coxa do próprio pai. (Nonnos).

Cita Diodoro de Sicília algumas das explicações dadas no seu tempo sobre o segundo nascimento ou encarnação de Baco. Segundo uns, tendo a vinha desaparecido pelo dilúvio de Deucalião, reapareceu na terra, quando as chuvas cessaram. Ora, a vinha nada mais é do que Baco que se mostrou aos homens pela segunda vez, após ter sido conservado por algum tempo na coxa de Júpiter, segundo a fórmula mitológica. Diziam outros que Baco nascia realmente duas vezes, contando como primeiro nascimento a germinação da planta, e como segundo a época em que a vinha dá uvas. Enfim, os que acreditavam na realidade histórica da personagem sustentavam que havia vários Bacos, reunidos pela credulidade popular num único.

É assim, diz Nonnos, que em conseqüência desses partos sobrenaturais, Mercúrio, seu aliado, leva nos braços o menino já semelhante à lua e que não verte uma lágrima. Incumbiu ele as ninfas, filhas do rio Lamos, de cuidar do enjeitado de Júpiter, de cabeleira ornada de cachos de uvas. Elas o acolheram nos braços e cada uma ofereceu o leite do seu seio. Deitado nos joelhos delas, e jamais dormitando, o deus lançava constantemente o olhar para o céu, e divertia-se batendo o ar com os pés. À vista do pólo, novo para ele, observava com estupefação a rotundidade dos astros da pátria, e sorria.

 

A Nutriz de Baco

"Mas em breve, diz Nonnos, a esposa de Júpiter notou o filho divino, e zangou-se. Por efeito da sua terrível cólera, as filhas de Lamos enfureceram-se sob a vergasta da péssima divindade. Em suas casas, precipitavam-se contra os que as seguissem; nas encruzilhadas, degolavam os viajantes. Lançavam gritos horríveis, e no meio de violentas convulsões, os seus esgares lhes desfiguravam o rosto; corriam de um lado a outro, entregues ao frenesi, umas vezes girando e saltando, outras fazendo esvoaçar ao vento a cabeleira. Os véus açafroados do peito tornavam-se brancos sob a espuma que lhes caía da boca. Na sua demência, teriam despedaçado o próprio Baco, ainda menino, se Mercúrio, deslizando passo a passo e em silêncio, não o tivesse raptado segunda vez para depô-lo na casa de Ino, que havia pouco dera à luz. Acabava ela de dar à luz o filho Melicerte, e estava a acalentá-lo; o seio regurgitava-lhe de leite. O deus falou-lhe com voz afetuosa: "Mulher, eis aqui um menino; recebe-o. É o filho de tua irmã Semele. Os raios do quarto nupcial não o atingiram, e as faíscas que perderam sua mãe o pouparam. Deixa-o ficar ao pé de ti, oculto, e cuida de que nem o olho do Sol, durante o dia, nem o da Lua, durante a noite, o vejam fora do teu palácio. Senão, Juno será capaz de o descobrir." Assim falando, Mercúrio, agitando nos ares as ágeis asas talares, voa e desaparece nos céus. Ino obedece; e ternamente abraça Baco, privado de mãe, e oferece o seio a ele e ao filho."

"Ino confiou Baco à particular vigilância da ninfa Místis, a de luxuosa cabeleira, que Cadmo criara, desde a infância, para o serviço íntimo de Ino. Ela é que tirava o menino do seio onde se alimentava, e o encerrava em tenebroso esconderijo. Mas a resplendente luz da testa anunciava, por si, o enjeitado de Júpiter: os muros mais sombrios do palácio se iluminavam, e o esplendor do invisível Baco dissipava todas as trevas. Ino, durante toda a noite, assistia aos folguedos do menino; e muitas vezes Melicerte, inseguro, engatinhava em direção a Baco, que balbuciava o grito de Evoé, e ia sugar com os lábios rivais o seio vizinho. Após o leite da ama, Místis dava ao jovem deus os demais alimentos e vigiava-o sem nunca adormecer. Hábil no seu inteligente zelo, e exercitada na arte mística cujo nome trazia, foi ela que instituiu as festas noturnas de Baco; foi ela que, para expulsar das iniciações o sono, inventou o tamborim, o guizos ruidosos e o duplo bronze dos ensurdecedores címbalos. Foi a primeira em acender os archotes para iluminar as danças da noite, e fez ressoar Evoé em honra de Baco amigo da insônia. Foi também a primeira, curvando as hastes das flores em grinalda, a cingir a cabeleira de uma faixa de pâmpanos, e teceu a hera em torno do tirso; depois, ocultou-lhe a ponta de ferro sob as folhas, para que o deus se não ferisse. Quis que os falos de bronze fossem presos aos seios nus das mulheres, e aos seus quadris as peles de cervos; inventou o rito do cesto místico, todo repleto dos instrumentos da divina iniciação, brinquedos da infância de Baco, e foi a primeira em prender em volta do corpo essas correias entrelaçadas, de répteis." (Nonnos).

"Foi ali, sob a guarda e sob os numerosos ferrolhos da discreta Místis, num canto do palácio, que os olhares infalíveis da desconfiadíssima Juno descobriram Baco. Jurou ela, então, pela onda infernal e vingadora do Estige, que inundaria de desventuras a casa de Ino; e sem dúvida teria exterminado o próprio filho de Júpiter, se Mercúrio, prevenido, o não tivesse imediatamente levado às alturas da floresta de Cíbele; Juno para lá correu com toda a velocidade dos seus pés. Mas Mercúrio chegou antes, e levou o deus chifrudo à deusa." (Nonnos).

 

Ino e Palemon

Entretanto Juno, que não conseguira atingir Baco, perseguiu com a sua cólera so que estavam ligados ao deus.

A morte de Semele, mãe de Baco, não lhe bastava. Quis ela ainda golpear Ino, irmã de Semele, que servira de nutriz a Baco. Ino orgulhava-se de ser filha de Cadmo e mulher de Atamas, rei de Tebas, a quem dera vários filhos. Juno desceu aos infernos em busca de Tisífona, uma das Fúrias, e ordenou-lhe que afligisse de loucura furiosa Atamas e Ino. A serva de Juno mal entra no palácio faz com que, tanto o rei como a rainha, sintam os terríveis efeitos da sua presença. Atamas, acometido de súbita fúria, corre pelo palácio, gritando: "Coragem, companheiros, estendei as redes nesta floresta; acabo de perceber uma leoa com dois leõezinhos." Põe-se, então, a perseguir a rainha que ele supõe ser um animal feroz, arranca-lhe dos braços o jovem Learco, seu filho, o qual, divertindo-se com o arrebatamento do pai, lhe estendia os braços, e, fazendo-o girar duas ou três vezes, atira-o contra uma parede, esmagando-o. Depois, ateia fogo ao palácio. Ino, tomada de semelhante furor, por efeito da dor que lhe causara a morte do filhinho, ou pelo fatal veneno espalhado sobre ela por Tisífona, dá gritos horríveis, trazendo ao colo Melicerte, e dizendo: Evoé, Baco! Juno sorri quando ouve pronunciar o nome desse deus. "Que teu filho, diz-lhe ela, te auxilie a passar o tempo nesse fúria que te possui."

À margem do mar, encontra-se um rochedo escarpado, cujo fundo serve de refúgio às águas que o cavaram; o alto está eriçado de pontas e avança bastante para o mar; Ino, a quem o furor dava novas forças, monta sobre esse rochedo e se precipita com Melicerte: as ondas que a recebem se cobrem de espuma e a sorvem. (Ovídio).

Vênus, que era aliada da família de Cadmo por sua filha Harmonia, foi ao encontro de Netuno e, mediante os cuidados de ambos, Ino e Melicerte, perdendo o que tinham de mortal, tornaram-se divindades marinhas. Ino tomou, então, o nome de Leucotéia e Melicerte o de Palemon.

Mal a notícia de tais fatos se espalhou pela cidade, as damas tebanas correram à margem do mar em busca da rainha e, seguindo-lhe as pegadas, chegaram ao rochedo de onde ela se havia atirado. Na aflição que lhes causa tão trágico desfecho, rasgam as vestes, arrancam os cabelos, e deploram as desventuras da infeliz casa de Cadmo, zangam-se com Juno, e censuram-lhe a injustiça e crueldade.

A deusa, ofendida com as suas queixas, diz-lhes: "Ides ser vós outras os mais terríveis exemplos dessa crueldade que tanto me censurais." O efeito segue-se à ameaça. A que mais afeiçoada fora a Ino, prestes a lançar-se ao mar, imobiliza-se e vê-se presa ao rochedo. Outra, enquanto fere o próprio seio, sente os braços tornarem-se duros e inflexíveis. Outra, com os braços estendidos para o mar, não mais consegue movê-los. E mais outra, que estava arrancando os cabelos com as mãos, sente que estas, e os cabelos se transformaram em pedra. A maioria sofre mudanças análoga e fica na mesma atitude em que estavam no momento da metamorfose. As demais companheiras da rainha, transformadas em aves, desde então esvoaçam no mesmo lugar e roçam as ondas com a ponta das asas. (Ovídio).

 

Baco na Corte de Cíbele

Vimos que o jovem deus, após inúmeras peripécias, acabou por ser conduzido a Cíbele.

Segundo outra tradição, Baco teria ido procurar Cíbele sem outro auxílio, a não ser o dele próprio. Juno, que não conseguia perdoar-lhe ser filho de Júpiter, feriu-o de loucura na infância, e o jovem deus quis, para curar-se, ir consultar o oráculo de Dodona, mas um lago formado subitamente lhe obstaculou a passagem. Logrou, contudo, atravessar, graças ao burro no qual estava montado, e em breve soube que Cíbele lhe devolveria a saúde, iniciando-o nos seus mistérios. Após errar por algum tempo presa ao delírio, chegou à Frígia, onde Cíbele o curou realmente, ensinando-lhe o seu culto. O uso dos címbalos, dos archotes, dos animais ferozes para conduzir o deus, provém com efeito dos cultos orientais.

 

A Infância de Baco

Nonnos, a quem é preciso sempre recorrer, quando se trata de Baco, assim narra a maneira pela qual se passaram os anos da sua infância: "A deusa criou-o, e, bem mocinho ainda, o fez montar no carro puxado por ferozes leões... Aos nove anos, já possuído da paixão da caça, ultrapassa na corrida as lebres; com a sua mãozinha, dominava o vigor dos veados malhados; trazia sobre o ombro o tigre intrépido de pele malhada, livre de qualquer laço, e mostrava a Réa nas mãos os filhotes que acabara de arrancar ao leite abundante da mãe; depois, arrastava terríveis leões vivos; e, fechando-lhes entre os punhos os pés reunidos, dava-os de presente à mãe dos deuses, a fim de que ela os mandasse atrelar ao seu carro. Réa observava sorrindo e admirava tal coragem e tais feitos do jovem deus, ao passo que à vista do filho vencedor de formidáveis leões, os olhos paternais de Júpiter irradiavam maior alegria ainda. Baco, mal ultrapassou o limite da infância, revestiu-se de suaves peles, e ornou os ombros com o envoltório malhado de um veado, imitando as variadas manchas da esfera celeste. Reuniu linces nos seus estábulos da planície da Frígia, e atrelou ao seu carro panteras, honrando a imagem cintilante da morada dos seus maiores. Foi assim que, desde cedo, desenvolveu o gosto montanhês ao pé de Réa, amiga das elevadas colinas; nos picos, os pãs rodeiam nos seus giros o jovem deus, também hábil dançarino; atravessam barrancos com os seus pés peludos, e, celebrando Baco nos seus tremendos saltos, fazem ressoar o chão debaixo dos seus pés de bode." (Nonnos).

 

Baco e Ampelos

Quando Baco estava na Ásia Menor, banhando-se com os sátiros nas águas do Pactolo e brincando com eles nas costas da Frígia, ligou-se da mais estreita amizade com um jovem sátiro chamado Ampelos. Em breve, tornaram-se inseparáveis; mas um touro furioso matou um dia o infeliz Ampelos, e Baco, não podendo consolar-se, derramou ambrósia nos ferimentos do amigo que foi metamorfoseado em vinha, e é precisamente esse divino suco que deu à uva a qualidade embriagadora. (Nonnos).

Baco, realmente, colheu um cacho de uvas e, espremendo o suco, disse: "Amigo, a partir deste instante serás o remédio mais poderoso contra as dores humanas."

Foi então que Baco começou a percorrer o Oriente: no Egito, vemo-lo em relação a Proteu; na Síria, luta contra Damasco, que se opõe à introdução da cultura da vinha. Vencedor, continua a viagem, atravessa os rios sobre um tigre, lança uma ponte sobre o Eufrates, e empreende a gigantesca expedição contra os indianos.

 

A Conquista da Índia

A lenda heróica de Baco parece ser apenas a história da plantação da vinha, e a narração dos efeitos produzidos pela embriaguez, desde que o vinho se tornou conhecido. O temor desses terríveis efeitos explica naturalmente a oposição que se lhe depara por toda parte, quando ensina aos homens o uso do vinho por ele personificado.

O culto de Baco apresenta grandes relações com o de Cíbele, e o caráter ruidoso das suas orgias relembra a algazarra que se fazia em homenagem à deusa. Mas a história da conquista da Índia dá às tradições em torno de Baco um caráter especialíssimo. Segundo vários mitólogos, as narrações que a isso se prendem só se teriam popularizado após a conquista de Alexandre. Creuzer considera, pelo contrário, essa história bastante antiga.

Nessa expedição memorável, as ninfas, os rios e Sileno, sempre montado no seu burro, formavam o cortejo particular do deus, mas o cortejo era engrossado por numeroso bando de pãs, de faunos, de sátiros, de Curetes e de seres estranhos, dos quais nos dá Nonnos uma nomenclatura pormenorizada no seu poema das Dionisíacas. Toda essa narração apresenta caráter fantástico e maravilhoso. Quando o rei da Índia, Deríades, quis atirar-se contra Baco, uns pâmpanos que brotavam da terra lhe enlaçaram subitamente os membros e lhe paralisaram os esforços: quando o exército do deus se encontra nas margens de um rio, o rio se transforma em vinho, a um sinal do deus, e os indianos sedentos que pretendem beber são imediatamente tomados por um delírio desconhecido.

"A voz do indiano, diz Nonnos, os seus negros compatriotas acorrem em multidão às margens do rio de suave perfume. Um, firmando ambos os pés no limo, mergulhado até o umbigo nas vagas que o banham por toda parte, se mostra semi-inclinado, peito recurvado sobre a corrente, e dali sorve, no oco das mãos, a água que destila o mel. Outro, perto da embocadura, possuído de ardente sede, mergulha a longa barba nas ondas purpurinas, e, estendendo-se sobre o chão da margem, aspira profundamente o orvalho de Baco. Este, debruçado, aproxima-se da fonte tão vizinha, apoia os braços na areia úmida, e recebe nos lábios sedentos o fluxo do licor que mais sede ainda lhe dá. Os que só tem à mão o fundo do pote quebrado, retiram o vinho com uma concha. Grande número bebe na torrente vermelha, e enche as taças rústicas dos pastores dos campos. Após assim sorverem o vinho à vontade, vêem as pedras duplicar-se, e julgam que a água se escoa por dois lados; entretanto, o rio continua a murmurar no seu curso e a fazer ferver uma à outra as vagas da deliciosa bebida. Uma torrente de embriaguez inunda o inimigo. Este extermina a raça dos bois, como se estivesse ceifando a geração dos sátiros. Aquele persegue os bandos de veados de cabeças alongadas, e julga-os, em virtude da sua pele simetricamente manchada, o bando dos bacantes, enganado pelas nébridas elegantes com que elas se adornam. Um guerreiro, dando altos brados, agarra-se a uma árvore que ele golpeia de todos os lados, e, percebendo que os ramos ondulam movidos pelo vento, abate as pontas dos ramos mais tenros, e fende assim a folhagem de copado carvalho, julgando estar a cortar com o gládio a intacta cabeleira de Baco. Luta contra a folhagem e não contra os sátiros; e na sua alegria imbecil, conquista contra a sombra uma sombra de vitória. Outros indianos, irresistivelmente transportados pelos vapores que entontecem o espírito, imitam com os gládios, as lanças e os capacetes, os júbilos guerreiros dos Coribantes, e na sua dança das armas batem em torno os escudos. Um se deixa levar pelos cantos da musa báquica, e salta como nos coros dos sátiros; outro se enternece com o som do tamborim, e no seu gosto impelido ao delírio pelo sonoro ruído, atira ao vento a aljava inútil."

 

Baco em Tebas

Após percorrer a Ásia, Baco, que nascera em Tebas, quis também que esta cidade fosse a primeira da Grécia e conhecer-lhe o culto: disso é que lhe provém o nome de Baco tebano.

No começo da tragédia das bacantes, de Eurípedes, Baco dá a conhecer a sua encarnação e a sua chegada a Tebas. "Eis-me nesta terra dos tebanos, eu, Baco, gerado pela filha de Cadmo, Semele, após ser visitada pelo fogo dos raios; deixei a forma divina por outra mortal e venho visitar a fonte de Dirce e as águas de Ismenos. Vejo perto deste palácio o túmulo de minha mãe atingida pelo raio, e as ruínas fumegantes de sua morada, e a chama do fogo celeste ainda viva, eterna vingança de Juno contra minha mãe. Aprovo a piedade de Cadmo, que, tornando este lugar inacessível aos pés dos profanos, o consagrou à filha; e eu o sombreei por toda parte de pâmpanos verdejantes. Deixei os vales da Lídia, onde abunda o ouro, e os campos dos frígios; atravessei as planícies ardentes da Pérsia e as cidades da Bactriana, a Média coberta de pedras e a feliz Arábia, e a Ásia inteira, cujo mar salgado banha as margens cobertas de cidades florescentes, povoadas simultaneamente por uma mistura de gregos e de bárbaros, e é essa a primeira cidade grega em que entrei após ter conduzido para lá as danças sagradas e celebrado os meus mistérios, para manifestar a minha divindade aos mortais. Tebas é a primeira cidade da Grécia em que fiz ouvir os brados das bacantes cobertas de nébrida e armadas do tirso envolto em hera."

 

Baco e Licurgo

Baco, tendo levado o seu culto à Trácia, foi perseguido pelo rei do país, chamado Licurgo., o qual muito provavelmente assustado pelos efeitos da embriaguez, mandara fossem arrancadas todas as vinhas. Baco viu-se obrigado, para salvar-se, a atirar-se ao mar, onde foi acolhido por Tétis, a quem deu, como recompensa pela hospitalidade, uma taça de ouro feita por Vulcano. Todas as bacantes e os sátiros que o haviam acompanhado foram lançados à prisão. Foi por castigo a tal feito que a região se viu atingida de esterilidade, e Licurgo, enlouquecido, matou pessoalmente seu próprio filho Drias. Tendo o oráculo declarado que o país só recobraria a fertilidade, depois de morto o rei ímpio, os súditos o encadearam ao monte Pangeu, e ali o pisaram com os cavalos. As bacantes livres, ensinaram os mistérios do novo deus à Trácia. A luta entre Baco e Licurgo está representada com diversas variantes nos monumentos antigos.

 

Baco e Perseu

A lenda de Baco, atirado ao mar e recolhido por Tétis a quem oferece uma taça de ouro, prende-se, segundo Ateneu, ao fabrico do vinho e traduz mitologicamente o hábito existente em certas regiões de se servir da água do mar para acelerar a fermentação da uva.

Em Argos, onde Juno era especialmente honrada, o culto de Baco encontrou graves dificuldades para se estabelecer. Os habitantes recusaram-se a honrá-lo, e mataram as bacantes que o acompanhavam. O deus feriu de loucura furiosa as mães, que começaram a dilacerar os próprios filhos. O herói Perseu, protetor de Argos, decidiu então combater Baco, e segundo um vaso grego, em que a cena está figurada, não parece ter tido vantagem. Entretanto, segundo outras tradições, teria sido vencedor e teria até lançado Baco ao lago de Lerna. Pausânias diz simplesmente que, quando a disputa terminou, Baco foi honrado em Argos, onde se lhe ergueu um templo.

Cita Creuzer uma vaso cujo tema consagra a introdução da vinha na Etólia. "Vemos ali, diz ele, Altéia, mulher rei de Calidon, conversando com Dionisos por ela apaixonado, do alto de uma janela, onde também no-la mostra uma pintura que completa esta, e que oferece o deus adormecido diante da porta, cujo limiar acaba de ser cruzado pelo marido que lhe cede o lugar. Sabe-se que, como preço de tal complacência, recebeu o presente da vinha, e que Altéia teve de Baco a famosa Dejanira, esposa de Hércules, como teve de Marte o herói Meleagro."

 

Baco e Erígone

Foi no reinado de Padião, filho de Erecteu, rei de Atenas, que Baco, acompanhado de Ceres, visitou pela primeira vez a Ática. Esse incidente mitológico tem certa importância na história, para mostrar que na opinião dos atenienses o cultivo da vinha e do trigo foi precedido no país pelo da oliveira, que Minerva lhes ensinara no mesmo instante da fundação da cidade.

Baco, chegado, foi à casa de um ateniense chamado Icário, que o recebeu muito bem; como recompensa pela hospitalidade Baco lhe ensinou a maneira de fazer vinho. Icário, fazendo-o, quis que o provassem os camponeses da redondeza, que o acharam delicioso. Mas embriagaram-se completamente, e, julgando que Icário os havia envenenado, atiraram-no a um poço. A visita de Baco a Icário está figurada em vários baixos-relevos.

Tinha Icário uma filha de extrema beleza, chamada Erígone, por quem Baco se apaixonou. A fim de unir-se a ela, metamorfoseou-se em cachos de uvas, e quando a jovem o percebeu sob tal forma, apressou-se em colhê-lo e comê-lo; foi assim que se tornou esposa do deus, de quem teve um filho chamado Estáfilos, cujo nome significa uva. Foi ele que, mais tarde, ensinou aos homens que, misturando-se água ao divino licor, este não mais produzia a embriaguez.

Quando Icário foi morto, Erígone nada sabia do que se passara, mas inquieta por não o ver regressar, tratou de procurá-lo e não tardou em ser atraída pelos uivos da pequenina cachorra Moera, que chorava ao pé do poço a que Icário fora atirado. Quando Erígone soube o que sucedera ao infeliz pai, foi tal o seu desespero que se enforcou. Baco, encolerizado, enviou aos atenienses um delírio furioso que os levou a se enforcarem no mesmo lugar em que haviam morrido Icário e a filha. O oráculo, consultado, consultado, respondeu que o mal cessaria quando tivessem sido punidos os culpados e prestadas homenagens às vítimas. Júpiter colocou Icário entre os astros e dele fez a constelação de Bootes. Erígone tornou-se a da Virgem, e a cachorra Moera passou a ser a da Canícula. Todas essas tradições se prendem à introdução do cultivo da vinha na Ática, e aos efeitos imprevistos da embriaguez. O sono de Erígone foi freqüentemente representado; Girodet fez dele o tema de uma das suas composições mais graciosas.

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