A casa a arder [1]

 

O Senhor [Buda] respondeu ao Venerável Sariputra:

"Numa certa aldeia, vila, cidade, distrito, província, reino ou capital vivia um homem idoso, decrépito, de saúde débil e fraco, mas rico e abastado. A sua casa era grande, em superfície e em altura, e era velha, tendo sido construída há muito tempo. Era habitada por muitos seres vivos, alguns duzentos, trezentos, quatrocentos ou quinhentos. Tinha apenas uma porta. O telhado era de palha, os terraços tinham caído, as fundações estavam podres, as paredes, os tabiques e o reboco encontravam-se num adiantado estado de degradação. De súbito deflagrou um grande incêndio e toda a casa começou a arder. E esse homem, que tinha muitos filhos pequenos, cinco, dez ou vinte, fugiu de casa.

"Quando o homem viu a casa em chamas, ficou com medo e tremeu, o seu espírito agitou-se e pensou consigo mesmo: 'É verdade que eu fui suficientemente capaz de sair pela porta e fugir da minha casa em chamas, de uma forma rápida e segura, sem ser atingido, nem sequer ao de leve, por aquela grande massa de fogo. Mas os meus filhos, os meus rapazinhos, os meus filhinhos? Ali, naquela casa em chamas, brincam e divertem-se com toda a espécie de jogos. Não sabem que a habitação está a arder, não compreendem isso, não se apercebem disso, não dão atenção a isso, e, assim, não sentem qualquer agitação. Embora ameaçados por este grande [incêndio], embora em tão estreito contacto com tão grande calamidade, não ligam ao perigo e não tentam escapar'."

Extraído de The Saddharmapundarika, in Buddhist Scriptures, Edward Conze, ed. (Harmondsworth, Middlesex, England: Penguin Books, 1959).

Uma das razões pelas quais é tão interessante escrever para a revista Parade são as reacções que isso desperta. Com 80 milhões de leitores, podemos ter uma verdadeira amostra da opinião dos cidadãos dos Estados Unidos. Podemos compreender como as pessoas pensam, quais as suas ansiedades e esperanças e mesmo talvez onde nos perdemos no caminho.

Uma versão abreviada do capítulo anterior, que se debruçava sobre o desempenho de alunos e professores, foi publicada na Parade. Fiquei submergido de correspondência. Algumas pessoas negaram que isso fosse um problema; outras disseram que os Americanos estavam a perder inteligência e capacidades. Alguns consideravam que a solução era fácil; outros que os problemas eram demasiado profundos para terem remédio. Muitas opiniões constituíram uma surpresa para mim.

Um professor do 10.º ano, do Minesota, distribuiu cópias do artigo e pediu aos seus alunos que me dissessem o que pensavam. Eis, pois, o que escreveram alguns alunos americanos do ensino secundário[2]:

  • Americanos não são estúpidos, só são maus na escola.

  • Talvez seja bom não sermos tão espertos como os outros países. Assim podemos importar todos os nossos produtos, pelo que não teremos de gastar todo o nosso dinheiro com as peças para as mercadorias.

  • E, se os outros países estão a fazer melhor, o que interessa isso, já que, de qualquer maneira, é muito provável que eles vão passar à frente dos EUA?

  • A nossa sociedade está a sair se muito bem com as descobertas que estamos a fazer. As coisas avançam devagar, mas a cura para o cancro está próxima.

  • Os EUA têm o seu próprio sistema de aprendizagem, que pode não ser tão avançado como os deles, mas que é igualmente bom. Além disso, penso que o seu artigo é muito educativo.

  • Nem um aluno desta escola gosta de ciência. Não percebi qual era o objectivo do artigo. Penso que era muito maçador. Não estou virado para nada desse género.

  • Estou a estudar para vir a ser advogado e francamente concordo com os meus pais quando me dizem que tenho um preconceito contra a ciência.

  • É verdade que alguns miúdos americanos não se esforçam, mas, se quiséssemos, podíamos ser mais espertos do que qualquer outro país.

  • Em vez de fazer os trabalhos de casa, os miúdos vêem televisão. Tenho de confessar que é isso que faço. Reduzi o meu tempo de TV para menos de quatro horas por dia.

  • Não acredito que a culpa seja do sistema de ensino, mas que é o país todo que não se empenha o suficiente na escola. Sei que a minha mãe gostava mais de me estar a ver jogar basquetebol ou futebol do que a ajudar-me com um trabalho de casa. A maioria dos miúdos que conheço não se preocupam em fazer os trabalhos como deve ser.

  • Acho que os miúdos americanos não são estúpidos. Só que não estudam o suficiente porque a maioria deles trabalha ... Muitas pessoas dizem que os Asiáticos são mais espertos do que os Americanos e que são bons em tudo, mas não é verdade. Não são bons em desporto. Não têm tempo para praticar desporto.

  • Eu gosto de desporto e sinto que os miúdos da minha equipa incitam mais os colegas a serem bons no desporto do que na escola.

  • Se queremos ser os melhores, podemos passar o dia na escola e não ter vida social.

  • Compreendo por que motivo muitos professores de Ciências ficam furiosos connosco por não respeitarmos o seu trabalho.

  • Talvez se os professores fossem mais interessantes, os alunos quisessem aprender ... Se a ciência fosse ensinada de uma maneira divertida, os alunos queriam aprender. Para conseguir isso, tem de se começar cedo, e não apenas ensiná-ala como factos e números.

  • Acho difícil acreditar nesses factos sobre a ciência nos EUA. Se estamos tão atrasados, por que razão Michael Gorbatchov veio ao Minesota e a Montaria, à Control Data, para ver como trabalhamos com os nossos computadores?

  • Cerca de 33 horas para alunos do 5.º ano! Em minha opinião, isso é de mais, são quase tantas horas como num emprego a tempo completo. Em vez de trabalhos de casa podemos estar a fazer dinheiro.

  • Quando escreve sobre o nosso atraso em Ciências e Matemática, por que razão não tenta dizer nos isso de uma maneira um pouco mais simpática? ... Tenha mais orgulho no seu país e nas suas potencialidades.

  • Acho os factos que apresenta inconclusivos e as provas muito ténues. Globalmente, levantou uma questão interessante.

Globalmente, estes alunos consideram que o problema não é grave; e, se for, não se pode fazer grande coisa para o resolver. Muitos também se queixaram de que as aulas expositivas, os debates na sala de aula e os trabalhos de casa eram "maçadores". Especialmente para uma geração do MTV, afectada por perturbações da atenção com vários graus de gravidade, a escola é maçadora. Mas passar três ou quatro anos lectivos a repetir a adição, a subtracção, a multiplicação e a divisão de fracções seria maçador para qualquer pessoa ― e a tragédia é que, por exemplo, a teoria das probabilidades, numa forma elementar, está ao alcance destes alunos. E o mesmo se passa com os tipos de plantas e de animais apresentados sem evolução; a história apresentada na forma de guerras, datas e reis, sem o papel da obediência à autoridade, da ambição, da incompetência e da ignorância; o Inglês sem as novas palavras que entraram na língua e sem o desaparecimento das antigas; e a Química sem saber de onde vêm os elementos. Os meios de despertar estes estudantes estão ao nosso alcance e são ignorados. Uma vez que a maioria dos alunos sai apenas com uma fracção minúscula do que lhe ensinaram gravada d e forma perene na memória a longo prazo, não será essencial transmitir-lhes coisas que não sejam maçadoras ... e que despertem o seu entusiasmo pela aprendizagem? A maioria dos adultos que escreveu considera que existe um problema grave. Recebi cartas de pais a falar de crianças cheias de curiosidade, dispostas a trabalhar, apaixonadas pela ciência, mas sem terem à sua disposição, ao nível da comunidade ou da escola, os recursos necessários para satisfazer o seu interesse. Outras cartas referiram pais que não sabem nada de ciência, mas que fizeram sacrifícios pessoais para que os filhos pudessem ter livros de ciência, microscópios, telescópios, computadores ou conjuntos de química; pais que ensinam aos seus filhos que o trabalho árduo os tirará da pobreza; uma avó que leva um chá a um estudante que ainda está a fazer os trabalhos de casa a uma hora adiantada da noite; alunos que sofrem a pressão dos seus companheiros para não se distinguirem na escola, pois "isso faria os outros parecerem maus".

Apresenta-se aqui uma amostra ― não uma sondagem, mas um comentário representativo ― de outras respostas enviadas por pais:

  • Os pais compreendem que não se pode ser um ser humano completo se for ignorante? Há livros em casa? E uma lupa? Uma enciclopédia? Estimulam os filhos para aprender?

  • Os pais têm de ensinar a paciência e a perseverança. O presente mais importante que podem dar aos filhos é a valorização do trabalho árduo. Mas isto não pode ser feito só com palavras. As crianças que aprendem a trabalhar bem são as que vêem os pais trabalhar bem sem nunca desistir.

  • A minha filha está fascinada pela ciência, mas não aprende nada sobre ciência na escola nem na televisão.

  • A minha filha foi identificada como sobredotada, mas a escola não tem nenhum programa de enriquecimento no campo da ciência. O orientador disse-me que a enviasse para uma escola privada, mas nós não podemos pagar isso.

  • Há uma pressão enorme dos colegas; as crianças tímidas não querem "tornar-se notadas" com bons resultados em Ciência. Quando a minha filha atingiu os 13 ou 14 anos, foi como se o interesse que sempre manifestara pela Ciência tivesse desaparecido.

Os pais também tinham muito a dizer sobre os professores e alguns dos comentários feitos por professores foram reproduzidos pelos pais. Por exemplo, as pessoas queixaram-se de que os professores aprendem como ensinar, mas não o que ensinar; que um grande número de professores de Física e de Química não têm um grau académico em Física ou Química e "não se sentem à vontade e são incompetentes" no ensino das Ciências; que os próprios professores se sentem inseguros relativamente às Ciências e à Matemática; que eles não gostam que lhes façam perguntas, ou então respondem: "Vai ver ao livro." Alguns queixaram-se de que o professor de Biologia era um "criacionista"; outros queixaram-se de que não era. Eis outros comentários feitos por professores ou acerca de professores:

  • Estamos a formar um conjunto de imbecis.

  • É mais fácil memorizar do que pensar. Os miúdos têm de ser ensinados a pensar.

  • Os professores e os programas estão a ser "reduzidos" ao menor divisor comum.

  • Porque está o treinador de basquetebol a ensinar Química?

  • Fazem perder muito tempo aos professores com questões de disciplina e com "currículos de carácter social". Não há incentivo para usar o nosso discernimento. Estão sempre a controlar-nos.

  • Eliminem o estatuto de efectivo nas escolas e nas universidades. Livrem-se dos inúteis. Dêem aos directores e aos reitores o direito de contratar e despedir.

  • O meu prazer de ensinar foi sempre anulado por directores autoritários.

  • Os professores deviam ganhar consoante o desempenho ― especialmente o desempenho dos alunos em testes ao nível nacional e a melhoria do desempenho dos alunos nestes testes de um ano para o outro. Os professores estão a atrofiar a mente dos nossos filhos ao estarem-lhes sempre a dizer que eles não são suficientemente inteligentes ― por exemplo, para prosseguirem estudos em Física. Porque não dar aos alunos uma oportunidade de fazerem o curso?

  • O meu filho passou de ano, embora se encontre pelo menos dois anos atrasado relativamente ao resto da turma. A razão dada foi de carácter social, e não educacional. Ele nunca conseguirá recuperar se não ficar retido.

  • As Ciências deviam ser obrigatórias em todos os curricula escolares (especialmente no ensino secundário). E deviam ser cuidadosamente coordenadas com a Matemática que os alunos estudam ao mesmo tempo.

  • A maioria dos trabalhos de casa é para manter o aluno ocupado, e não para o fazer pensar.

  • Acho que o que Diane Ravitch diz [New Republic de 6 de Março de 1989] é a realidade: "Como aluna da Escola Secundária Hunter, em Nova lorque, 'tive sempre óptimas notas, mas nunca falei nisso ... é fixe ter más notas. Se estamos interessados na escola e o mostramos, somos uns palermas' ... A cultura popular ― através da televisão, do cinema, das revistas e dos vídeos ― martela incessantemente a mensagem de que é mais importante as jovens serem populares, atraentes e 'fixes' do que serem inteligentes, sentirem-se realizadas ou serem frontais ... Em 1986, um estudo detectou um espírito antiacadémico semelhante entre os alunos e alunas do ensino secundário em Washington, D. C. O estudo concluiu que os alunos sentem uma grande pressão dos seus colegas para terem um mau desempenho na escola. Se têm boas notas, podem ser acusados de 'se estarem a armar em brancos'."

  • As escolas podiam muito bem dar recompensas maiores aos alunos que se destacam em Ciências e em Matemática. Porque não o fazem? Porque não blusões especiais com as insígnias da escola? Referências em reuniões da escola, no jornal da escola e na imprensa local? Prémios especiais conferidos pela indústria e por organizações sociais ao nível local? Isto custa muito pouco e podia vencer a pressão dos colegas para não ter boas classificações.

  • O Headstart é o programa mais eficaz para melhorar a compreensão das crianças das questões científicas e de tudo o mais.

Expressaram-se também muitas opiniões apaixonadas e altamente controversas que, no mínimo, dão uma ideia de como as pessoas sentem profundamente o problema. Eis aqui algumas:

  • Hoje em dia, todos os miúdos espertos querem dinheiro rápido, pelo que preferem ser advogados, e não cientistas.

  • Não quero que melhore a educação. De outro modo deixaria de haver pessoas para guiar os táxis.

  • O problema do ensino das Ciências é que Deus não é suficientemente glorificado.

  • O preceito fundamentalista de que a Ciência é "humanismo" e que devemos desconfiar dela é a razão pela qual ninguém sabe nada de Ciência. As religiões temem o pensamento céptico que está no cerne da Ciência. Os estudantes sofrem uma lavagem ao cérebro para não aceitarem o pensamento científico muito antes de irem para a universidade.

  • A Ciência desacreditou-se a si mesma. Ela trabalha para os políticos. Fabrica armas, mente quanto aos "riscos" da mariguana, ignora os perigos do agente laranja, etc.

  • As escolas públicas não funcionam. Livremo-nos delas. Vamos ter apenas escolas privadas.

  • Deixámos os defensores da permissividade, do pensamento obscuro e do socialismo destruírem o que foi outrora um grande sistema educativo.

  • O sistema educativo tem dinheiro suficiente. O problema é que os brancos do sexo masculino, geralmente treinadores, que dirigem as escolas nunca contratam (repito, nunca) um intelectual ... Dão mais importância à equipa de futebol do que ao currículo e só admitem autómatos medíocres, patriotas fanáticos e amantes a Deus para ensinar. Que tipo de estudantes pode sair de escolas que oprimem, castigam e desdenham do pensamento lógico?

  • Libertem as escolas do garrote da ACLU [União das Liberdades Civis Americanas], da NEA [Associação da Educação Nacional] e outros empenhados na quebra da disciplina e da competência nas escolas.

  • Receio bem que não compreenda o país em que vive. As pessoas são incrivelmente ignorantes e medrosas. Não toleram ouvir nenhuma ideia [nova] ... Não percebe? O sistema apenas sobrevive porque tem uma população ignorante e temente a Deus. É por isso que há tantos [indivíduos com formação] que se encontram desempregados.

  • Por vezes pedem me que explique questões tecnológicas a pessoal do Congresso. Acredite, há um problema de ensino da Ciência neste país.

Não há uma solução única para o problema da iliteracia na Ciência ― ou na Matemática, na História, no Inglês, na Geografia, ou em muitas outras aptidões de que a nossa sociedade necessita. As responsabilidades encontram-se amplamente compartilhadas ― pais, eleitores, conselhos locais de educação, meios de comunicação social, professores, administradores, governos locais, estaduais e federal, para além, é claro, dos próprios estudantes. Os professores de todos os níveis queixam-se de que o problema vem de trás. E os professores do 1.° ano do ensino básico só se podem desesperar com o facto de ensinarem crianças com dificuldades de aprendizagem devidas a má nutrição, à ausência de livros em casa, ou a uma cultura de violência em que não existe tempo disponível para pensar. Sei muito bem, por experiência própria, quanto uma criança pode beneficiar com o facto de os pais terem alguma formação e serem capazes de a transmitir. Quaisquer melhorias, por pequenas que sejam, na formação, nas capacidades de comunicação e na paixão por aprender em uma geração podem dar origem a melhorias muito mais acentuadas na geração seguinte. Tenho isto sempre em mente de cada vez que ouço queixas de que o "nível" nas escolas e nas universidades está a descer, ou que ter o ensino secundário completo já não "significa" o que significava antes.

Dorothy Rich, uma professora inovadora de Yonkers, no estado de Nova Iorque, acredita que, muito mais importante do que o ministrar de conteúdos escolares específicos, é o desenvolvimento de aptidões fundamentais, nomeadamente "a confiança, a perseverança, a responsabilidade, o trabalho em equipa, o senso comum e a resolução de problemas". Às quais eu acrescentaria o pensamento céptico e a capacidade de deslumbramento.

Ao mesmo tempo, as crianças que têm capacidades e aptidões especiais precisam de ser estimuladas e encorajadas. Elas constituem um tesouro nacional. A existência de programas estimulantes para os "sobredotados" é por vezes criticada como uma manifestação de "elitismo". Por que razão as sessões de treino intensivo para os membros das equipas principais de futebol, basebol e basquetebol das escolas e universidades e a competição interescolas não são consideradas também uma manifestação de elitismo? Afinal, só os atletas mais dotados participam. Há aqui dois pesos e duas medidas, e isto a nível nacional.

Os problemas do ensino público das ciências e de outras matérias são tão profundos que é fácil desesperarmos e concluirmos que já não há remédio. E, no entanto, existem instituições obscuras nas grandes cidades e nas pequenas localidades que nos dão razões para ter esperança, lugares que acendem uma centelha, despertam curiosidades adormecidas e fazem desabrochar o cientista que há em todos nós:

  • O enorme meteorito metálico está à sua frente, completamente esburacado como um queijo suíço. Cautelosamente, estende uma mão para lhe tocar e verifica que é liso e frio. Passa-lhe pela cabeça que se pode encontrar perante um bocado de outro planeta. Como é que ele chegou à Terra? O que aconteceu no espaço para ficar com aquela forma tão irregular?...

  • A imagem mostra mapas da cidade de Londres no século XVIII e a disseminação de uma terrível epidemia de cólera. As pessoas de uma casa transmitem a doença aos vizinhos. Seguindo a pista da infecção, consegue determinar onde ela começou. É um trabalho de detective. Quando localiza a origem, verifica que é uma zona de esgotos a céu aberto. Ocorre-lhe que o facto de as cidades modernas terem saneamento básico é uma questão de vida ou de morte. Pensa em todas as cidades, vilas e aldeias por esse mundo fora que ainda não o têm. Começa a imaginar que talvez haja uma maneira mais simples e mais barata de o fazer...

  • Percorre, a rastejar, um túnel longo e escuro como breu. Há curvas, subidas e descidas que surgem repentinamente. Atravessa uma floresta de coisas penugentas, coisas que parecem contas, grandes coisas redondas e sólidas. Imagina como seria se fosse cego. Apercebe-se de como utilizamos pouco o nosso sentido do tacto. No escuro e no silêncio, encontra se sozinho com os seus pensamentos. A experiência é inebriante ...

  • Observa um modelo detalhado de uma procissão de sacerdotes subindo um dos grandes zigurates da Suméria, um túmulo magnificamente pintado no vale dos Reis, no antigo Egipto, uma casa da Roma antiga ou uma rua numa pequena cidade americana no dealbar do século, reconstruída à escala natural. Pensa em todas essas civilizações, tão diferentes da sua, como as consideraria perfeitamente naturais se tivesse nascido nelas, como a nossa sociedade lhe pareceria estranha se, de alguma maneira, tivesse ouvido falar nela.

  • Aperta o conta gotas e uma gota de água de um lago cai na platina do microscópio. Observa a imagem projectada. A gota está cheia de vida ― seres estranhos nadam, rastejam, agitam-se: grandes dramas de perseguição e fuga, triunfo e tragédia. Este é um mundo povoado de seres muito mais exóticos do que os que se vêem em qualquer filme de ficção científica ...

  • Sentado no teatro, encontra-se dentro da cabeça de um rapaz de 11 anos. Olha através dos seus olhos. E o que vê são as pequenas crises típicas do quotidiano de um rapaz daquela idade: colegas mais velhos que se impõem pela força, adultos autoritários, paixonetas por raparigas. Ouve a voz dentro da cabeça dele. Testemunha as suas respostas neurológicas e hormonais ao ambiente social que o rodeia. E começa a pensar como funciona no interior ...

  • Seguindo instruções simples, vai digitando os comandos. O que acontecerá à Terra se continuarmos a queimar carvão, petróleo e gás e a duplicar a quantidade de dióxido de carbono na atmosfera? Quanto aumentará a temperatura? Que quantidade de gelo polar se derreterá? Quanto irão subir os oceanos? Porque estamos a lançar tanto dióxido de carbono na atmosfera? E se multiplicarmos por cinco a quantidade de dióxido de carbono na atmosfera? Como se poderá saber qual será o clima no futuro? Isto fá-lo pensar ...

Quando eu era criança, levaram-me ao Museu Americano de História Natural, em Nova Iorque. Fiquei petrificado com os dioramas ― representações fiéis de animais e dos seushabitats em todo o mundo. Pinguins na luminosidade ténue do gelo antárctico; ocapis na luz forte da savana africana; uma família de gorilas, com o macho a bater no peito, numa clareira sombria da floresta; um urso americano de pé sobre as patas traseiras, com mais de 3 m de altura e que olhava para mim a direito nos olhos. Aquilo eram instantâneos tridimensionais obtidos por um génio saído da lâmpada. O urso mexeu-se? O gorila piscou os olhos? O génio podia regressar, quebrar o encantamento e permitir que este maravilhoso conjunto de seres vivos voltasse à vida perante o meu olhar embasbacado?

As crianças têm uma vontade irresistível de mexer. Nessa época, as duas palavras mais ouvidas nos museus eram "não mexas". Há algumas décadas não havia quase nada em que se pudesse tocar nos museus de ciência e de história natural, nem sequer um lago onde se pudesse agarrar num caranguejo para o inspeccionar. A coisa mais próxima de uma exposição interactiva que eu conhecia eram as balanças no planetário de Hayden, uma para cada planeta. Pesar apenas 20 kg na Terra era de certo modo tranquilizador, ao lado dos 50 kg que pesaríamos se vivêssemos em Júpiter. Mas, infelizmente, na Lua o peso seria apenas de 3,50 kg. Na Lua, o simples facto de lá poder estar parecia difícil.

Hoje em dia, as crianças são encorajadas a mexer, a percorrer uma árvore de perguntas e respostas via computador, ou a fazer ruídos esquisitos para ver a forma das ondas sonoras. Mesmo as crianças que não captam tudo da exposição, ou que nem se apercebem do essencial dela, lucram alguma coisa em visitá-la. Quando vamos a um destes museus, ficamos impressionados com as crianças com os olhos muito abertos de pasmo, a correrem de sala em sala, com os sorrisos triunfantes de descoberta. São museus muito populares. Anualmente, visitam nos quase tantas pessoas quanto o número total de espectadores que assiste aos jogos de basebol, basquetebol e futebol profissionais.

Estas exposições não substituem o ensino na escola ou em casa, mas despertam o entusiasmo. Um grande museu de ciência estimula uma criança a ler um livro, a fazer um curso, ou a voltar de novo ao museu para iniciar um processo de descoberta ― e, o que é o mais importante, a aprender o método do pensamento científico.

Outro aspecto magnífico de muitos museus de ciência modernos é um cinema que exibe filmes IMAX ou OMNIMAX. Nalguns casos, o ecrã tem a altura de dez andares e envolve os espectadores. O Museu Nacional Smithsoniano do Ar e do Espaço, o museu mais popular da Terra, estreou alguns dos melhores destes filmes. O filme Voar faz-me ficar de respiração suspensa mesmo depois de o ter visto cinco ou seis vezes. Verifiquei como dirigentes religiosos de muitos credos ficaram imediatamente convertidos à necessidade de proteger o ambiente da Terra depois de terem visto O Planeta Azul.

Nem todos os museus ou exposições de ciência são exemplares. Alguns ainda são exibições publicitárias para empresas que contribuíram com dinheiro para promover os seus produtos ― como funciona o motor de um automóvel ou como um combustível fóssil é "limpo" em comparação com outro. Há demasiados museus que se afirmam museus de ciência e que são na realidade museus de tecnologia e de medicina. Há demasiadas exposições de biologia que ainda têm medo de referir a ideia chave da biologia moderna: a evolução. Os seres "desenvolvem-se" ou "surgem", mas nunca evoluem. A ausência de seres humanos no registo fóssil profundo é subvalorizado. Não nos é mostrado nada que faça ressaltar a quase identidade anatómica e de ADN entre os seres humanos e os chimpanzés e os gorilas. Nada é dito sobre as moléculas orgânicas complexas no espaço e em outros planetas, nem sobre experiências que mostram a formação abundante da matéria que constitui a vida nas atmosferas conhecidas de outros planetas e na presumível atmosfera primitiva da Terra. Chame-se a atenção para uma excepção notável: o Museu de História Natural do Instituto Smithsoniano realizou uma vez uma exposição inesquecível sobre a evolução. A exposição começou com duas baratas numa cozinha moderna com pacotes de cereais abertos e outros alimentos. Ao fim de algumas semanas, o local estava pejado de baratas por todo o lado, a lutarem pelo pouco alimento que ainda restava, e a vantagem hereditária a longo prazo que uma barata ligeiramente mais adaptada podia ter sobre as suas competidoras tornava-se clara como água. De igual modo, muitos planetários dedicam-se ainda a identificar constelações, em vez de viajarem para outros planetas e descreverem a evolução de galáxias, estrelas e planetas; além disso, têm um projector sempre visível, que parece um insecto, o que torna o céu irreal.

O que talvez constitua a melhor exposição de ciência não pode ser vista. Não tem onde se instalar: George Awad é um dos principais construtores de modelos de arquitectura da América, especializado em arranha-céus. É também um estudante dedicado de Astronomia e fez um modelo espectacular do universo. Começando com uma cena prosaica na Terra e seguindo um esquema proposto pelos designers Charles e Ray Eames, sobe progressivamente, multiplicando, a cada vez, a escala por um factor de 10, para nos mostrar a Terra, o sistema solar, a Via Láctea e o universo. Cada corpo astronómico é meticulosamente pormenorizado. Podemos perder-nos neles. É um dos melhores dispositivos que conheço para explicar a escala e a natureza do universo às crianças. Isaac Asimov descreveu-o como "a representação mais criativa que jamais vi ou que pude imaginar. Podia deambular pela exposição durante horas, vendo sempre alguma coisa de novo que não tinha observado antes". Devia haver em todo o país versões deste modelo, para estimular a imaginação e o entusiasmo para o ensino. Mas, em vez disso, o Sr. Awad não conseguiu que nenhum museu do país aceitasse a sua exposição. Ninguém está disposto a pôr à sua disposição o espaço necessário. No momento em que estou a escrever, ela ainda se encontra tristemente encaixotada.

A população da minha cidade, Ítaca, no estado de Nova Iorque, duplica, atingindo então um total de 50 000 pessoas, durante o ano lectivo da Universidade de Cornell e do colégio universitário de Ítaca. Tendo uma grande diversidade étnica, e rodeada por terrenos agrícolas, sofreu, tal como tantas regiões do Nordeste, o declínio resultante da perda da sua base industrial do século XIX. Metade das crianças da escola primária Beverly J. Martin, que a nossa filha frequentou, vive abaixo do limiar de pobreza. Foram estas crianças que suscitaram em particular a preocupação e o interesse de duas professoras de Ciências, voluntárias, Debbie Levin e Ihna Levine. Não parecia justo que alguns, por exemplo os filhos do corpo docente de Cornell, já nem tivessem o céu como limite, enquanto outros não tinham acesso ao poder libertador da educação científica. A partir dos anos 60 começaram a visitar regularmente a escola, puxando um carrinho com uma biblioteca ambulante e carregado com uma série de produtos químicos caseiros e outro material para transmitir um pouco da magia da ciência. Sonhavam criar um local aberto às crianças onde elas pudessem familiarizar se pessoalmente com a ciência.

Em 1983, Levin e Levine puseram um pequeno anúncio no jornal local convidando a comunidade a discutir a ideia. Apareceram cinquenta pessoas. Surgiu desse grupo a primeira administração do Centro de Ciência. Passado um ano tinham conseguido um espaço para exposições no primeiro piso de um edifício de escritórios para arrendar. Quando o proprietário conseguiu um locatário, os girinos e o papel de tornassol foram de novo empacotados e transferidos para outro espaço comercial que se encontrava vago.

E seguiram-se outras mudanças semelhantes, até que um habitante de Ítaca, chamado Bob Leathers, um arquitecto de renome mundial pela sua concepção de jardins infantis inovadores construídos pela comunidade, elaborou graciosamente planos para um Centro de Ciência permanente. Contribuições de empresas locais proporcionaram o dinheiro suficiente para a compra de um terreno devoluto e a contratação de um director executivo, o engenheiro civil Charles Trautmann. Este, juntamente com Leathers, deslocou-se ao encontro anual da Associação Nacional de Construtores Civis, em Atlanta. Trautmann conta como falaram "de uma comunidade desejosa de tomar em mãos a educação dos seus jovens, tendo conseguido donativos em materiais, nomeadamente janelas, clarabóias e madeira.

Antes de se poder começar a construir tinha de se demolir um velho edifício que se encontrava no local. Para isso recorreu-se aos préstimos de membros da associação de estudantes local. Equipados com capacetes e marretas, os estudantes fizeram o trabalho alegremente. "Isto é o tipo de coisa", referiram eles, "que geralmente nos cria sarilhos quando o fazemos." Em dois dias retiraram 200 t de entulho.

O que se seguiu foram imagens de uma América que muitos de nós receávamos ter desaparecido. Na tradição dos pioneiros que trabalhavam em conjunto na construção dos celeiros, os membros da comunidade ― pedreiros, médicos, carpinteiros, professores universitários, canalizadores, agricultores, jovens e velhos ― arregaçaram as mangas para erigir o Centro de Ciência.

"Manteve-se o horário de sete dias por semana", referiu Trautmann, "pelo que as pessoas podiam ajudar sempre que estivessem disponíveis. Toda a gente foi incumbida de uma tarefa. Os voluntários com experiência construíram escadas, assentaram alcatifas e ladrilhos e instalaram as janelas. Outros pintaram, pregaram pregos e transportaram materiais." Cerca de 2200 habitantes da cidade deram assim mais de 40 000 horas de trabalho. Aproximadamente 10 % da construção foi feita por pessoas condenadas por pequenos delitos; preferiram fazer alguma coisa para a comunidade do que ficar sem fazer nada na cadeia. Ao fim de dez meses, Ítaca tinha o único museu de ciência do mundo construído pela comunidade.

Entre as setenta e cinco experiências interactivas que mostram os processos e os princípios da ciência contam-se as seguintes: o Magicam, um microscópio que os visitantes podem utilizar para visualizar num monitor a cores e depois fotografar qualquer objecto com uma ampliação de 40 vezes; a única ligação pública do mundo com a Rede Nacional de Detecção de Relâmpagos, que opera com base em satélites; uma câmara fotográfica para dentro da qual se pode entrar, com as dimensões de 1,8 m x 2,7 m; uma escavação cheia de argila xistosa local onde os visitantes podem procurar fósseis com 380 milhões de anos e guardar os seus achados; uma serpente boa de 2,50 m de altura chamada Spot; e uma série fascinante de outras experiências, computadores, e actividades.

Ainda podemos encontrar lá Levin e Levine, voluntárias a tempo inteiro a ensinar os cidadãos e os cientistas do futuro. O Fundo DeWitt Wallace Reader's Digest apoia e amplia o seu sonho de chegar até crianças a quem, normalmente, seria negado o direito a uma educação científica. Através do programa Youth ALIVE do Fundo, os adolescentes de Ítaca recebem uma orientação intensiva para desenvolverem as suas aptidões científicas, a sua capacidade de resolução de conflitos e as suas aptidões para o mercado de trabalho.

Levin e Levine consideravam que a ciência devia ser pertença de todos. A comunidade empenhou-se em tornar realidade esse sonho. No primeiro ano de funcionamento, o Centro de Ciência foi visitado por 55 000 pessoas provenientes de 50 estados e 60 países. Nada mau para uma pequena cidade. Isto faz-nos pensar nas coisas que poderíamos fazer se trabalhássemos em conjunto para um futuro melhor para as nossas crianças.

[1] Escrito em colaboração com Ann Druyan.

[2] Embora o autor tenha conservado a ortografia, a construção gramatical e a pontuação das cartas originais (com tantos erros que se tornam quase incompreensíveis), optou-se por traduzir os textos em português correcto. (N. dos T.)

Carl Sagan, Um Mundo Infestado de Demónios, Gradiva, Lisboa, 1998, pp. 339-353.

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