O Discurso do Método é uma obra sem dúvida mundialmente famosa. Esse título nunca devemos deixar de ter em mente ao lê-la. Ao iniciarmos essa leitura sem ter em mente o título e aonde o autor quer chegar, facilmente nos perderemos pelo caminho, e é isso justamente que Descartes não quer que aconteça e que ajuda a motivá-lo a escrever e publicar o Discurso.
Ora, ao começarmos a ler o Discurso do Método poderemos facilmente ser iludidos a pensar que o assunto sobre o qual trata o autor seja a razão (bom sendo) ou o fato de ela estar bem distribuída entre os seres humanos. Isso não seria algo de outro mundo, pois estamos acostumados a ler e escrever redações guiando-nos desde o começo exatamente pela primeira frase da introdução: o tópico frasal. Entretanto, não podemos proceder assim com o Discurso do Método, pois com uma leitura mais atenta poderemos concluir que, embora o tópico frasal nos proponha a “boa distribuição da razão entre os seres humanos”, essa não é a tese do autor nesse texto. O que será então?
Pois bem, antes de tratarmos sobre o tema do texto de Descartes, vamos analisar algumas noções-chave que, identificadas, nos ajudarão a entender também a tese que quer nos propor o Discurso.
Primeiramente, debrucemo-nos sobre o próprio conceito de razão, que é nossa primeira ilusão a respeito do que venha a ser o tema da obra. Razão, que Descartes identifica com bom senso é “o poder de bem julgar e de distinguir o verdadeiro do falso”, como ele mesmo define. Ora, se esse fosse mesmo o tema do texto seria grande incoerência do autor simplesmente mudar de assunto na metade do parágrafo.
Outro conceito com o qual Descartes trabalha é o de espírito, já no segundo parágrafo. Para ele o espírito é justamente o que nos dar a especificidade entre nós, pois a diferenciação da espécie humana para as demais se dá justamente por termos a razão e os outros não. Então o espírito para ele é o pensamento, a imaginação e a memória, que, recorrendo a Aristóteles, são os acidentes que nos constituem também, juntamente com a razão, que escolasticamente é a essência - a forma - dos seres humanos. Mas com facilidade veremos que também não é sobre isso que trata o texto do Discurso do Método. Ainda estamos num impasse.
No entanto, ainda há um outro conceito, aliás, de suma importância, para verificarmos. O que está presente exatamente no título: método. Ainda no primeiro parágrafo Descartes nos fala sobre sua importância. Olhando sob esta ótica, veremos que ele nos diz claramente que, como razão todos têm – portanto não se pode afirmar um ter mais que o outro – o mais importante é bem conduzi-la. É a isso, pois, que ele se propõe: encontrar um método para si próprio que o levasse a descobrir tantas verdades (certezas) quanto lhe fosse possível, e apresentar esse método aos outros para que lhes valesse alguma contribuição. Mais do que caminhar, Descartes quer mostrar que o que é necessário é saber caminhar e caminha bem, bem conduzir o espírito. Para ele é melhor caminha bem lentamente mantendo-se no percurso do que, a passos largos, extraviar-se.
Dessa forma, René Descarte dialoga com o homem de seu tempo e, em larga escala, com o de todos os tempos, pois discute com a escolástica, sem propriamente renegar todo o seu legado, ao mesmo tempo em que sua obra vai repercutir em toda uma cosmovisão que ainda permanece até hoje.
O método de Descartes é o método da dúvida: a dúvida metódica ou dúvida cartesiana. Para a razão bem funcionar, é necessário limpar o terreno da mente de todo preconceito, é preciso, num primeiro momento duvidar de tudo, principalmente o que já se tem estabelecido como verdade absoluta. A partir de então, devem-se buscar verdades elementares, verdades que se bastem a si, e não precisem de outras verdades precedentes. Pois, duvidando de tudo, aquilo que conseguir se estabelecer como verdade depois disso, ter necessariamente que ser uma verdade absoluta. O que se quer com esse método é a garantia de idéias claras e distintas.
Descartes resume a Lógica e enumera apenas quatro regras, quatro passos a serem dados no caminho de seu método:
“O primeiro era o de jamais acolher alguma coisa como verdadeira que eu não conhecesse evidentemente como tal; isto é, de evitar cuidadosamente a precipitação e a prevenção. E de nada incluir em meus juízos que não se apresentasse tão clara e distintamente a meu espírito, que eu não tivesse nenhuma ocasião de pô-lo em dúvida”.
O segundo, o de dividir cada uma das dificuldades que eu examinasse em tantas parcelas quantas possíveis e quantas necessárias fossem para melhor resolvê-las.
O terceiro, o de conduzir por ordem meus pensamentos, começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para subir, pouco a pouco, como por degraus, até o conhecimento dos mais compostos, e supondo mesmo uma ordem entre os que não se precedem naturalmente uns aos outros.
E o último, o de fazer em toda parte enumerações tão completas e revisões tão gerais, que eu tivesse a certeza de nada omitir”1.
É a isso que se propõe, portanto, o autor. Seguir um passo de cada vez, por menor que seja o passo. Não complicar o problema – ele toma da Geometria a aplicação do método, para, a partir dela, aplicá-lo também às outras ciências – mas sim permanecer fiel ao percurso a ser feito.
Assim, muitas críticas podem ser feitas à obra de Descartes. E muitas são feitas de fato. Entretanto, é inegável sua contribuição e seu papel em seu contexto. Se no nosso tempo as críticas devem ser feitas e os modelos refeitos, nas circunstâncias em que viveu Descartes temos que reconhecer o grande valor que teve sua obra.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
DESCARTES, René. Discurso do método. São Paulo: Abril Cultura, 1973. Col. Os Pensadores, vol. XV.
OBRAS CONSULTADAS
ABAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
FOLSCHEID, Dominique; WUNEMBURGER, Jean-Jacques. Metodologia filosófica.
1 Discurso do Método, 2ª parte.
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