VONTADE

Esse termo foi usado com dois significados fundamentais:
1° como princípio racional da ação; 2° como
princípio da ação em geral. Ambos os significados,
porém, pertencem à filosofia tradicional e
à psicologia oitocentista, porque ligados à noção
de faculdade, ou poderes originários da
alma que se combinaram para produzir as manifestações
do homem (v. FACULDADE). Mas hoje
nem a filosofia nem a psicologia interpretam
desse modo a conduta do homem. As noções
de comportamento (v.) e de forma (v.), bem
como a tendência funcionalista da psicologia
(v.), não permitem falar de "princípios" da atividade
humana e, portanto, a classificação intelecto-
V. ou intelecto-sentimento-V. perderam
o significado literal. Às vezes, o termo V. é conservado,
mas unicamente para indicar determinados
tipos de conduta ou certos aspectos da conduta. E nesse sentido que devem ser entendidas
as referenciais à psicologia contemporânea
contidas neste verbete.

O primeiro significado é o da filosofia clássica:
para ela, a V. é apetite racional ou compatível
com a razào, distinto do apetite sensível.
que 6 o desejo(v.). A distinção entre estas duas
coisas está em Platão, para quem retores e tiranos
não fazem o que querem, embora façam o
que lhes agrada ou parece, visto que fazer o que
se quer significa fazer o que se mostra bom ou
útil, e isso é agir racionalmente ( Górg., 466 ss.).
Aristóteles definiu a V. como "apetiçào que se
move de acordo com o que é racional" (Dean.,
III, 10, 433 a 23); o termo voluntários usado
por Aristóteles para definir a escolha (v.), que
seria "a apetiçào voluntária das coisas que dependem
de nós" (Et. nic, III, 3, 1113 a 10). Os
estóicos concordaram com esse conceito de V.,
por eles definida como "apetiçào racional"
(DIÜG. L, VII, 116). Cícero referia-se a essas
doutrinas afirmando que "a V. é um desejo compatível
com a razào, enquanto o desejo oposto
à razào, ou demasiado violento para ela, é a
libidinagem ou a cupidez desenfreada que se
encontra em todos os insensatos"

Esta concepção prevalece durante toda a Idade
Média e é repetida por Alberto Magno (S.
Th., I, q. 7, a. 2), S. Tomás (5. Th., I, q. 80, a. 2),
Duns Scot (Rep. Par., III, d. 17, q. 2, n. 3; Op.
Ox., III, d. 33, q. 1, n. 9) e Ockham (In Sent., IV,
9, 14 G).

Todas são repetições liberais do conceito
tradicional de V. como apetite racional. Menos
liberal 6 a repetição desse conceito em Spinoza.
que entende por V. "a faculdade de afirmar ou
cie negar, e não o desejo: faculdade graças à
qual a mente afirma ou nega o que é verdadeiro
ou o que é falso, e não desejo com que a mente
deseja ou repele as coisas" (Et., II, 48, scol.X
Entretanto, ainda literal é a repetição desse
conceito por Wolff (chama-se "V. o apetite racional
que nasce da representação distinta do
bem", Psicol. empírica, § 880) e pelo próprio
Kant, que entende por V. a razão prática, isto
é, a "faculdade de agir segundo a representação
de regras" (Grundlegung der Metaphysík
der Sitten, II). Eichte não pensava em nada
muito diferente ao afirmar que a V. é a faculdade
"de efetuar com consciência a passagem da
indeterminação para a determinação": faculdade
que a razào teórica obriga a pensar que
existe (Sittenlehre, § 14). Em sentido análogo, Hegel afirma que a V. é universal, "no sentido de universal como racionalidade'" (EU. dodir., § 24). A distinção de Croce entre a forma econômica,
utilitária, e a forma ética ou moral da
atividade prática corresponde à distinção tradicional
entre desejo e vontade. Segundo Croce,
a forma econômica seria volição do particular,
ou seja, do útil; a forma moral seria volição do
universal, ou seja, apetiçào racional (Eilosofia
delia pratica, 1909, pp. 217 ss.).

Na noção de V. como apetite racional também
pode ser integrada a tendência da psicologia
moderna a fazer distinção entre V. e impulso
e a considerar a V. condicionada por uma manipulação
de símbolos. G. Murphy, p. ex., diz:
"V. é o nome com o qual se designa um complexo
processo interior que influencia nosso
comportamento de tal modo que nos torna
presa menos fácil da pura força bruta dos impulsos.
Falamos com nós mesmos, introduzimos
modos diferentes de expressar nossa situação,
imaginamos as conseqüências dos vários
tipos de resposta e procuramos avaliar quanto
cada um deles nos agradará" (Introduction to
Psychology, 1950, cap. IX, trad. it., p. 163). O
que a psicologia moderna chama de "elaboração
de símbolos" é o mesmo cjue na terminologia
tradicional se chamava "processo racional".

Finalmente, a mesma noção de V. está implícita
nas expressões V.pura, boa V., V. geral,
V. de crer.

Segundo Kant, V. pura é a V. determinada
apenas por princípios a príorí, por leis racionais,
e não por motivos empíricos particulares
(Grundlegung der Met, der Sitten, pref.).


Boa V., também segundo Kant, é a V. de
comportar-se exclusivamente de acordo com o
dever; desse modo, é exaltada por Kant como
o que existe de melhor no mundo ou também
fora do mundo (Ibid., I).

V. geral é concebida pelos iluministas como
a própria razào. Diderot diz: "A V. geral
é em cada indivíduo um ato puro do intelecto
que raciocina no silêncio das paixões sobre o
que o homem pode exigir de seu semelhante e
sobre o que o seu semelhante tem direito de
exigir dele" (Ari droit naturel, na Encyclopédie,
V, p. 116). Rousseau fazia a distinção entre
"V. de todos", que pode errar, e V. geral, que
nunca erra porque só tem em mira o interesse
comum (Contraísocial, II, 3).

Finalmente, a V. de crer, de que fala James,
nada mais é que a racionalidade da fé, o direito
de crer no que não é absurdo, no que torna a vida mais aceitável e. às vezes, é posto em ser pela própria fé (The Will to Believe, 1897).


Por outro lado, a V. às vezes foi identificada
com o princípio da ação em geral, ou seja,
com a apetiçào. O primeiro a expor esse conceito
generalizado da V. foi S. Agostinho, segundo
quem "a vontade está em todos os atos dos
homens; aliás, todos os atos nada mais são que
vontade" (Decir. Dei, XIV. 6). S. Anselmo repetia
essa noção (Libero arbítrio, 14, 19). que
na idade moderna foi aceita por Descartes.
Este, assim como S. Agostinho, chamou de V.
todas as ações da alma, em oposição às paixões:
"O que chamo de ações são todas as
nossas V., porque sentimos que elas vêm diretamente
do nosso espirito, e parece que dependem
só dele, enquanto as afeições são todas
as percepções ou conhecimentos que se
encontram em nós mas não foram produzidos
por nossa alma, que, portanto, os recebeu das
coisas representadas" (Pass. de 1'âme, I, 17).
Hobbes faz uma crítica explícita à noção tradicional:
"Não 6 boa a definição de V. como
apetite racional, comumente proferida pelas
escolas. Pois se fosse, não poderiam existir
atos voluntários contrários à razão. (...) Mas se,
em lugar de apetite racional, dissermos apetite
resultante cie deliberação anterior, então a V.
será o último apetite a deliberar" (Leriath.. I, 6).
O último apetite é o mais próximo da ação, ao
qual a ação se segue. Desse ponto de vista, a V.
humana não é diferente da apetiçào animal (De
coip., 2T, § 13). De modo análogo, Locke definia
a V, como "o poder de começar ou não
começar, continuar ou interromper certas ações
do nosso espírito, ou certos movimentos do
nosso corpo, simplesmente com um pensamento
ou com a preferência do próprio espírito"
(Hnsaio, II, 21, 5). F. Hume declarava: "Por
V. não entendo outra coisa senão a impressão
interior que sentimos ou de que somos cônscios,
quando conscientemente damos origem a
um novo movimento do nosso corpo ou a uma
nova percepção do nosso espírito" ( Treatise, II,
III. I). Hume negava também qualquer influência
da razão sobre a V. assim entendida, reduzindo
as chamadas voliçòes racionais às emoções
tranqüilas, ligadas a instintos originários
da natureza humana (como benevolência e
ressentimento, amor pela vida, gentileza para a
criança) ou ao apetite geral pelo bem e a aversão
ao mal (Ibid, II, III, 3). Muito semelhante
a esta é a definição de Condillac: "Por V. se entende um desejo absoluto, em virtude do qual
pensamos que a coisa desejada está em nosso
poder" (Traité des sensations. I. 3. 9). Concepções
muito semelhantes encontram-se freqüentemente
nos iluministas e nos ideólogos do séc.
XVIII e do início do séc. XIX. Mach retomava
essa concepção (Popidárwissenschaftlische
Vorlesioigen, 1896, p. 72), e Dewey repetia
quase literalmente a definição de Hobbes ao
dizer: "A V. não é algo oposto às conseqüências
ou separado delas. É a cansa das conseqüências;
é a causação em seu aspecto pessoal;
O aspecto que precede imediatamente a ação"
(Hiü)iau Sature and Conduct, p. 44). A mesma
tendência geral pertence a interpretação da
V. como modo de ser do cuidado (vj, segundo
Heidegger, sendo o cuidado a manifestação
fundamental da existência do homem no munclo,
que consiste propriamente em preocuparse
com as coisas e cuidar dos outros (Seiu und
Zeit, § 41). Por outro lado, certas interpretações
da psicologia contemporânea podem ser enquadradas
na mesma tendência geral: é o que acontece
com a famosa interpretação de McDougall,
segundo a qual a voliçào seria "o apoio ou o
reforço que um desejo ou uma conação recebe
da cooperação de um impulso excitado no sistema
dos sentimentos de autoconsideraçâo"
(Introduction to Social Psycology, 1908). Segundo
essas interpretações, de fato, seriam
atos voluntários aqueles nos quais o impulso
determinante é constituído por uma atitude de
respeito ou de exaltação do Eu diante de si
mesmo.

Finalmente, nas expressões V. de viver e V.
de potência, a V. é entendida no sentido mais
geral.

A V. de viverque, segundo Schopenhauer, é
o número do mundo, nada tem cie racional: "é
um ímpeto cego, irresistível, que já vemos aparecer
na natureza inorgânica e vegetal, assim
como também na parte vegetativa de nossa
própria vida". Portanto, "o que a v. sempre quer
é a vida, justamente porque esta é apenas o
manifestar-se da V. na representação, e é simples
pleonasmo dizer V. de viverem vez de V."
(Díe Weil. I, § 54).

Analogamente, V. de potência é, segundo
Nietzsche. um impulso fundamental que nada
tem de causação racional: "A vida, como caso
particular, aspira ao máximo sentimento de potência
possível. Aspirar a outra coisa não é senão aspirar à potência. Essa V. é sempre o que há
de mais íntimo e profundo: a mecânica é uma
simples semiótica das conseqüências (Wille
zurMacht, ed, 1901, § 296).

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