Deve a disciplina de Educação Moral e Religiosa ser ensinada nas escolas?

Sempre que se procede a uma reforma ou revisão do sistema de ensino, discute-se a inclusão da disciplina de Filosofia nos currículos do Ensino Secundário. Isto aconteceu aquando da anterior reforma e acontece agora ― embora de forma menos visível ― que o Ministério da Educação se prepara para implantar a revisão dos programas do Ensino Secundário. Por outro lado, a inclusão da disciplina de Educação Moral e Religiosa (de qualquer confissão) nesses currículos não levanta a menor dúvida. Considero isto espantoso e tentarei mostrar porquê.

Antes, porém, quero tornar claro o seguinte: considero errado o ensino religioso nas escolas públicas. Admito, claro, que todas as confissões têm o direito de divulgar as suas crenças, ritos e cultos. Devem, contudo, fazê-lo fora da escola. Isto parece-me decorrer quer do Estado dever ser laico, quer do princípio de separação de poderes entre estado e igreja(s). Por vezes isto é posto em causa argumentando-se com a obra social que algumas confissões realizam, substituindo-se ao Estado. Alega-se que, se a(s) igreja(s) se podem (e têm de) substituir ao Estado nestas matérias (que num estado laico deveriam ser da estrita competência desse estado), isso lhes confere direitos que, em princípio, não poderiam ter num estado desse tipo. Em resposta a isto, devo dizer que não me parece que qualquer obra social, por muito meritória que seja, possa justificar o ensino religioso nas escolas públicas. São simplesmente coisas diferentes.

Mas há uma razão mais importante. Se se aceitam estas razões, não se vê que critério pode impedir uma confissão religiosa de participar no que bem entender. Se este tipo de argumentação é aceitável, então por que exigir apenas o direito a ensinar EMR nas escolas, ou outra qualquer benesse limitada? Por que não também exigir participar explicitamente no governo do país? Esta pretensão parecerá, com certeza, exagerada a qualquer pessoa de bom senso e o mesmo acontece, se reflectirmos um pouco, com a pretensão das confissões religiosas em ensinar o seu credo nas escolas públicas. Há, no entanto, uma outra razão que me leva a julgar este argumento inaceitável. Sempre que o oiço, fico com a impressão que a(s) igreja(s) em causa fazem obra social, não por caridade ou quaisquer outros motivos altruístas, mas para poderem reivindicar mais tarde, alguma benesse ou privilégio ao Estado. Não afirmo, claro, que seja isto efectivamente que se passa, mas a simples possibilidade das coisas serem assim interpretadas, devia fazer com que a(s) igreja(s) evitassem usar este tipo de argumentos.

O que acabei de escrever explica o meu ponto de vista acerca do ensino religioso nas escolas públicas, mas não explica porque acho espantoso o facto desse ensino não ser objecto de discussão enquanto o ensino da filosofia o é. As razões são de uma outra ordem e procurarei agora torná-las claras.

Para percebermos o que quero dizer temos de esclarecer em que consiste a disciplina de EMR. O nome da disciplina não deixa lugar para dúvidas. Ela é suposta fornecer uma certa educação em moral e religião. A questão consiste então em saber se ela fornece efectivamente uma educação e se sim que tipo de educação. Para responder a esta questão é necessário esclarecer em que consiste a educação. A ideia mais vulgar de educação é a da transmissão de conhecimentos. Educar consiste em transmitir a alguém um conjunto de conhecimentos, que este por sua vez deve possuir. Esta é uma concepção fraca de educação (tão fraca que talvez fosse melhor chamar-lhe antes instrução), embora muito comum. Porquê? Porque embora transmitir/possuir conhecimentos seja uma condição necessária à educação, não é uma condição suficiente. Na verdade, torna-se manifestamente insuficiente se tivermos em vista uma concepção mais elevada de educação. Sobretudo, esta concepção de educação não se adequa nem às finalidades do sistema de ensino para o ensino secundário (o nível a que pertence também a disciplina de Introdução à Filosofia), nem às necessidades do país. Veremos adiante porquê. Por agora basta referir que esta concepção atribui um lugar central à memorização na educação. A memorização é certamente uma competência necessária, mas não suficiente.

É curioso notar que a concepção comum de "bom aluno" está de acordo com isto. De forma geral, não se reconhece como bom aluno (como um aluno educado, se quisermos) aquele cujas excelentes notas se baseiam de forma excessiva na memorização. A gíria consagrou palavras como "marrão" para caracterizar este tipo de aluno. O termo é pejorativo porque pretende realçar o facto das boas classificações se deverem sobretudo à memorização e não à aplicação de outras capacidades intelectuais superiores ou, pelo menos, mais apreciadas e valorizadas. Curiosamente também, isto ajuda-nos a perceber o que se entende por "bom aluno". O "bom aluno" é aquele que, como os professores dizem tantas vezes, para além de revelar capacidades de memorização apreciáveis, se mostra também capaz de compreender, analisar e aplicar os conhecimentos a novas situações. Para o dizer recorrendo apenas a uma expressão, o "bom aluno" é o que é capaz de pensamento crítico. Esta concepção de bom aluno corresponde, por outro lado, a uma concepção mais elevada de educação, às finalidades do sistema educativo para o ensino secundário e, julgo, às necessidades do país. Paralelamente, um ensino que eduque será um que desenvolva nos alunos estas capacidades de pensamento crítico.

Sendo assim, a questão que se coloca agora é a de saber se a disciplina EMR contribui adequadamente para a obtenção destes objectivos. A minha resposta é não. Porquê? Porque isso não está na vocação de uma disciplina deste tipo, cujo objectivo é a divulgação e implantação dos dogmas, crenças e valores de uma certa tradição religiosa. A disciplina está, portanto, vocacionada para aquilo a que chamámos atrás a "concepção fraca de educação". Mas não pode cumprir uma visão da educação mais elevada, e em particular, não pode contribuir para o desenvolvimento do pensamento crítico? Penso que sim, mas nesse caso deixa de ser EMR e passa a ser Filosofia.

Esta é uma afirmação ousada com a qual, pelo menos num primeiro momento, poucos concordarão. É necessário, portanto, que a explique com todo o cuidado de modo a tornar completamente claro o que quero dizer. Julgo que, se o conseguir, restarão depois poucas dúvidas sobre a sua verdade. A minha estratégia consistirá mais ou menos no seguinte: Mostrar 1) em que consiste a filosofia; e mostrar 2) que é a disciplina de filosofia (e não a disciplina de EMR) que está de acordo com as finalidades do sistema educativo para o ensino secundário, isto é, que contribui para o desenvolvimento do pensamento crítico; para concluir pela 3) inutilidade desta disciplina; e por fim, mostrar que 4) mesmo as supostas vantagens morais resultantes dos valores transmitidos na disciplina são inexistentes.

O que é a filosofia? Esta é uma pergunta difícil a que é aqui impossível dar uma resposta adequada. É no entanto possível enunciar algumas das suas características principais. A filosofia consiste no estudo de problemas, teorias e argumentos. De uma maneira geral, podemos dizer que há um conjunto de problemas que por uma tradição mais ou menos estável são do domínio da filosofia; para esses problemas, os filósofos ao longo do tempo foram formulando teorias que suportaram (e outros atacaram) por intermédio de argumentos. Essa é apenas uma das características que a filosofia partilha com a ciência. A outra, igualmente importante, é que os seus problemas têm origem na análise das crenças. O processo não é simples nem linear. O pensamento racional, que caracteriza a ciência e a filosofia, começou quando alguém se sentiu insatisfeito com as crenças do seu tempo e as submeteu a uma análise crítica. Tradicionalmente essa glória pertence a Tales de Mileto. É imperdoável o esquecimento a que foi votado, uma vez que é sem dúvida, se foi de facto pioneiro, de longe o homem mais importante da história. A afirmação é radical e tem, por isso, de ser explicada.

À primeira vista o contributo de Tales é diminuto. As histórias da filosofia dedicam sempre algumas páginas para dizer que Tales julgava que tudo era feito de água e estava impregnado de deuses. Poucas no entanto destacam o alcance extraordinário dessas teorias ridículas. Dizer que tudo é água e está impregnado de deuses é, sabemo-lo há muito não só trivial como falso. Uma análise descuidada e apressada poderá levar, portanto, à conclusão que a contribuição do seu pensamento é nula e a sua recordação apenas um capricho histórico.

No entanto, a importância de Tales não está nas teorias que defendeu, mas no processo que instaurou. A importância de Tales está em 1) ter rompido com as crenças míticas do seu tempo e ter procurado outras explicações; 2) ter procurado essas explicações em causas naturais; 3) ter usado para esse fim a razão. Quando Einstein, no início do século XX, formulou a teoria da relatividade, era apenas o mais recente dos discípulos de Tales. O mesmo acontece com os filósofos e cientistas que hoje fazem progredir o nosso conhecimento do mundo.

As revoluções não precisam de ser recentes para serem fecundas. E a de Tales é a mais fecunda de todas. Ele substituiu as crenças do seu tempo por outras que hoje consideraríamos sem dificuldade ridículas. Mas as suas crenças foram, pelos processos que desenvolveu, também criticadas e substituídas. Com o tempo, as crenças tornaram-se mais complexas e precisas e explicaram cada vez melhor o mundo. Assim, Tales inventou o pensamento crítico e inaugurou o caminho que nos conduziu à civilização tecnológica de hoje. Apesar das enormes diferenças entre as suas teorias e as nossas, quer umas quer outras são o resultado dos mesmos processos de investigação. As nossas teorias científicas e filosóficas são o resultado actual deste longo processo de crítica, depuração e revisão das crenças.

É fácil perceber, pelo que acabámos de dizer, que a filosofia, pela sua vocação crítica e analítica, pode ensinar o pensamento crítico. Mas porque não o pode fazer também a disciplina de EMR? Antes de mais nada, porque é dogmática, quero dizer, não está no seu espírito colocar, por exemplo, a questão da existência de Deus, analisar criticamente os argumentos a favor e contra essa existência e estimular a investigação do tema. Como disse acima, o seu objectivo é doutrinal. É óbvio, claro, que não tem necessariamente de o ser e, desde que os seus professores o queiram, podem abordar racionalmente os temas tradicionais da sua disciplina (a religião e a moral). Mas isso é precisamente o que se faz (ou deverei dizer antes, se deveria fazer?) na disciplina de Introdução à Filosofia. Por conseguinte, uma vez que faz uma abordagem dogmática das questões morais e religiosas e que existe no plano de estudos uma disciplina que as aborda criticamente, a disciplina de EMR é inútil.

Poder-se-á dizer que isto é verdade para o Ensino Secundário (onde existe a disciplina de Introdução à Filosofia), mas não para o Ensino Básico, e que, portanto, a sua existência se justifica neste nível de ensino. Não o creio. Acho que as mesmas razões que justificam a exclusão da disciplina de EMR no Ensino Secundário, justificam, por maioria de razão, a sua exclusão dos níveis de ensino inferiores e que só o facto da sociedade não se aperceber do perigo que o ensino dogmático da religião e da moral constitui, tem permitido a sua manutenção. Se o ensino não estimula o pensamento e a reflexão é manipulação. E isto é verdade mesmo que o que se ensine seja conhecimento científico. Ora, a disciplina de EMR procede precisamente desta maneira em relação a crenças que são básicas, crenças que formam a estrutura na qual se apoiam as nossas expectativas e as nossas acções. E quando o faz no Ensino Básico, fá-lo numa situação privilegiada, uma vez que os alunos nesses níveis de ensino têm capacidades críticas menos desenvolvidas e não contam no seu plano de estudos com nenhuma disciplina vocacionada para o seu desenvolvimento.

Pode haver quem aceite os argumentos que apresentei até agora, mas considere que, apesar disso, a disciplina de EMR, pelo facto de ensinar normas morais importantes, deve fazer parte dos planos de estudo. Não estou de acordo. A maior parte das crianças, quando chegam aos níveis de ensino em que podem ter a disciplina de EMR, já assimilaram as normas morais mais importantes, pelo que, para esse efeito, o ensino da disciplina de EMR é quase, se não mesmo, completamente inútil. Por outro lado, os benefícios do ensino de normas morais na disciplina de EMR são muito menores do que geralmente se pensa. Em primeiro lugar, pelo facto das normas assim ensinadas serem associadas a crenças religiosas. Isto tem sido tradicionalmente vantajoso para as igrejas, uma vez que as crenças religiosas retiram plausibilidade da plausibilidade das normas morais, mas é desvantajoso para a moral e para a sociedade, pelo facto de tornarem a crença nessas normas dependente da crença em crenças religiosas. Quando alguém deixa de ter fé ou esta, por alguma razão, enfraquece, a sua crença nas normas morais (se não mesmo em normas morais) enfraquece igualmente.

Em segundo lugar, porque, como vimos, devido à forma como o ensino é ministrado na disciplina, os alunos aprendem como devem agir, mas não porque devem agir como agem. A consequência disto é que as suas acções não podem ser consideradas morais. Pensemos num exemplo simples: X ajuda a velhinha Y a atravessar a rua. Suponhamos agora que X ajuda a velhinha porque lhe ensinaram umas quantas regras de conduta, entre as quais que se deve ajudar as velhinhas a atravessar a rua, e não porque tenha reflectido sobre os princípios e as normas que devem nortear as nossas acções. É esta acção uma acção moral? À primeira vista, mesmo nestas condições X fez o que era necessário para que a acção fosse moral e, do ponto de vista do objecto da acção ― a velhinha ― não há dúvida que é moral. Contudo, X ignora o que faz com que a acção que efectuou seja boa. Sem dúvida que a sua acção é boa, mas embora esta seja uma condição necessária, para que uma acção seja moral é ainda preciso que quem a pratica saiba porquê, coisa que X ignora. Nestas condições, X não agiu verdadeiramente de forma moral.

Mas faz alguma diferença saber ou ignorar o porquê duma acção, contanto que se a aja correctamente? Há pelo menos duas razões que obrigam a responder afirmativamente. A primeira é que saber o porquê é frequentemente importante para decidir como agir. No exemplo simples que demos isso não é necessário, mas por vezes somos obrigados a tomar decisões de carácter moral acerca de situações menos simples e comuns que as do nosso exemplo. Nessas ocasiões ter um conjunto de normas e regras de conduta aceites devido à sua ligação a algumas formas de culto, pode ser um obstáculo, em vez de uma ajuda, para tomar a decisão moral correcta. A segunda razão está em que as acções morais devem tornar-nos melhores. No entanto, se as praticarmos apenas porque fazem parte de um código de conduta que nos foi ensinado e que nos limitámos a aceitar devido à autoridade do culto religioso a que está associado, esse efeito não é obtido. Só sabendo as razões que fazem com que devamos praticar uma determinada acção, pode essa prática ter um efeito sobre quem e como somos.

Que função educativa pode então a disciplina de EMR ter no sistema de ensino? A resposta é agora fácil: nenhuma. Por conseguinte, é a sua permanência nos planos de estudo, e não a da disciplina de Introdução à Filosofia, que deve ser discutida.

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