Avaliar como?

 

Dada a inquestionável importância da avaliação dos alunos seria de esperar que o Ministério da Educação lhe tivesse dedicado nestes últimos três anos grande atenção. Mas, se pusermos de lado a preocupação com médias de exame, taxas de sucesso e estatísticas internacionais, isso não aconteceu. E não foi certamente por não existirem aí também problemas importantes. Já todos ouvimos falar de escolas que violam a legislação e distorcem de forma mais ou menos consciente a avaliação dos alunos. Mas também há casos em que isso acontece com a complacência tácita da lei.

Um dos elementos que integra a avaliação dos alunos é a classificação de final de período, a classificação quantitativa comunicada aos pais e encarregados de educação. Nos 2.º e 3.º Ciclos, ela traduz o resultado final do processo de aprendizagem e determina se um aluno progride ou fica retido. No Ensino Secundário, além de estabelecer se um aluno fica retido, progride ou tem aprovação, no 12.º ano e nas disciplinas com exame, determina também se o aluno vai a exame e entra no cálculo da média de curso e da nota de acesso ao Ensino Superior. Tem, portanto, um papel de relevo na avaliação.

A determinação dos critérios para estabelecer esta classificação tem sido considerada desde sempre da competência das escolas e dos grupos disciplinares e há um sentimento geral de que assim deve ser. É frequente ouvir-se justificar este ponto de vista com os diferentes contextos sociais em que as escolas estão inseridas. A ideia parece ser a de que a diversidade de contextos sociais justifica níveis de conhecimento das matérias diversos e, portanto, avaliações diversas. Este argumento enfrenta, no entanto, algumas dificuldades. Se, como se diz, este critério é correcto porquê, então, aplicá-lo apenas à avaliação? Por que não aplicá-lo também, por exemplo, aos programas das disciplinas e, portanto, estes mudarem em função dos contextos sociais, quiçá mais difíceis na Linha e mais fáceis na Cova da Moura? Claro que a diversidade social pode justificar uma intervenção, mas não deverá ela acontecer antes da avaliação, eventualmente através de programas integrados de apoio à família e aos alunos que lhes permitam ter níveis de desempenho idênticos aos dos outros, e não depois? Os nossos atletas teriam certamente conquistado mais medalhas se os seus resultados tivessem sido avaliados em função do contexto social português. Infelizmente, não é assim que os Jogos Olímpicos funcionam.

Mas há problemas mais graves que resultam do facto de serem as escolas a determinar estes critérios. Suponhamos que na escola A, na disciplina x do Ensino Secundário, os critérios para determinar a classificação final de período são, por exemplo, 95% para os conhecimentos (o que normalmente inclui testes, trabalhos, trabalhos de casa, participações) e 5% para o comportamento e atitudes (que pode incluir, por exemplo, a pontualidade, o interesse e responsabilidade e o comportamento propriamente dito). Na escola B, na mesma disciplina, os critérios para determinar a classificação final de período são, por exemplo, 80% para os conhecimentos e 20% para o comportamento e atitudes.

Note-se a propósito deste exemplo três coisas: 1) a diversidade de critérios aqui apresentada é real e para o verificar basta consultar os sites de umas quantas escolas; 2) nada na imensa legislação do ME obriga a que os critérios sejam estes ou quaisquer outros e nestas ou quaisquer outras proporções; 3) alguns pais e encarregados de educação, que já se aperceberam destas diferenças, começam, quando podem, a tê-las em conta ao escolher a escola dos seus educandos.

Imaginemos agora que João, aluno da escola A, tem um aproveitamento de 10 valores nos conhecimentos e de 18 valores no comportamento e nas atitudes (a nota do comportamentos e atitudes é perfeitamente aceitável, uma vez que para a ter basta ser um aluno correcto e cumpridor e a maior parte são-no). Dadas as percentagens com que conhecimentos, comportamentos e atitudes contribuem para a nota final do período, a nota de João será 10,4 (que, em princípio, a maior parte dos professores arredondará para 10 ou, na melhor das hipóteses, para 11). Por seu lado, Paulo, aluno da escola B, com exactamente as mesmas avaliações nos conhecimentos e no comportamento e atitudes terá a nota de 11,6 (que normalmente, em condições idênticas às referidas para João, será arredondada para 12). Se os valores para os conhecimentos forem mais elevados ou para as atitudes e comportamentos mais baixos, as diferenças diminuem mas ainda serão significativas. Na verdade, elas só serão eliminadas se as avaliações de João e Paulo nos conhecimentos e nos comportamentos e atitudes forem as mesmas.

Ora, é indiscutível que, em princípio, João sabe tanto quanto Paulo, uma vez que a avaliação dos conhecimentos é idêntica. Apesar disso, a sua classificação é, no mínimo, 1 valor inferior à daquele. E se, por hipótese, a disciplina x for uma disciplina com exame no 12.º ano e se servir para acesso à universidade e João e Paulo tiverem no exame exactamente a mesma classificação, digamos 11 valores, Paulo, devido aos critérios que estabelecem que a classificação de acesso ao Ensino Superior resulta em 70% da classificação de frequência e em 30% do exame, concorrerá nessa disciplina com a classificação de 11,7 valores, ao passo que João concorrerá, conforme o caso, com a classificação de 10,7 ou 11 valores, isto é, com menos 1 valor ou 7 décimas.

A lição a tirar deste exemplo é óbvia: o facto de serem as escolas a estabelecer os critérios para a classificação final de período faz com que todos os anos e em todos os níveis de ensino milhares de alunos sejam arbitrária e injustamente avaliados.

Ao contrário do que eventualmente se possa pensar, não se trata apenas da violação de um direito mais ou menos abstracto à justiça, sem grande relevância prática. É certo que nos 2.º e 3.º Ciclos, desde que as diferenças de critérios não acarretem a retenção do aluno, as implicações são diminutas. Mas quando esta classificação é usada para determinar a nota de acesso à universidade, como de facto é, as suas consequências são de enorme importância para os alunos e para as suas famílias. Todos sabemos que uma décima é suficiente para permitir ou impedir que as aspirações de uma vida se concretizem. Nestas circunstâncias, não nos podemos dar ao luxo de que a avaliação seja injusta. E, no entanto, é isso que estamos a fazer.

Uma forma de minorar a injustiça no acesso ao Ensino Superior seria as próprias universidades realizarem as provas de acesso. Outra forma seria que apenas as notas dos exames do 12.º ano servissem para acesso à universidade. Outra ainda seria que o próprio ME estabelecesse, tendo em conta a diversidade dos grupos disciplinares, os critérios para determinar a classificação de final de período. Todas estas alternativas têm vantagens e inconvenientes e só um estudo rigoroso pode determinar qual destas — ou outra — é a melhor. Uma coisa, porém é certa: enquanto as coisas se mantiverem como estão é legitimo que nos perguntemos se os alunos que frequentam o Ensino Superior são aqueles que o deveriam frequentar.

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