A Teoria Lockeana dos Corpos Materiais

Edwin McCann

1. Qualidades Primárias e Secundárias.

Para entender tanto a crítica quanto a alternativa de Locke à noção de substância, é necessário se levar em conta primeiramente a distinção por ele adotada entre qualidades primárias e secundárias. Locke herdou tal distinção de Robert Boyle. Para ambos, as qualidades primárias são a solidez, a extensão (a propriedade de ter dimensão espacial), figura (formato), movimento e repouso (ou mobilidade), número, tamanho, situação, textura e movimento das partes. Quanto às qualidades secundárias, pode-se destacar as cores, os sons, os gostos, os aromas, o calor e o frio. Locke afirma que as qualidades secundárias estão "nos próprios objetos" apenas enquanto "forças que produzem várias sensações em nós pelas qualidades primárias, i.e., o tamanho, a figura, a textura e o movimento de suas partes insensíveis" (E II. viii, 10: 135). As duas afirmações aqui - que as qualidades sensíveis tais como cores, sons, e calor e frio são apenas forças ou poderes que produzem as sensações correspondentes em nós, e que essas forças ou poderes estão causalmente baseadas nas qualidades primárias de partes insensivelmente pequenas do objeto - provêm da distinção já feita por Boyle entre qualidades primárias e secundárias. Tanto em relação ao conteúdo da distinção quanto em relação à base para deduzi-la, Locke simplesmente segue Boyle.

A maior inovação de Locke em relação a Boyle consiste nos pressupostos argumentativos. Boyle apresenta esta distinção enquanto parte de sua hipótese corpuscular - uma hipótese que é, segundo ele, plausível por si mesma, e que é mais avançada do que as hipóteses rivais no que concerne às qualidades e os trabalhos dos corpos. A hipótese corpuscular também fornece os meios para explicar qualquer número de resultados experimentais interessantes (principalmente químico). Finalmente, uma hipótese que deve ser defendida em última instância em termos de seu sucesso explicativo. Locke, por outro lado, apresenta um argumento filosófico para tal distinção, afirmando que é a única compreensão da natureza das qualidades que se conforma às noções pré-científica, diária e do senso comum de corpo e da causalidade dos corpos.

Tal estratégia se reflete nos critérios que Locke apresenta para uma qualidade ser considerada primária. Introduzindo a distinção no EnsaioII, viii, 9, Locke diz que as qualidades primárias são "inteiramente inseparáveis do corpo, independentemente do estado deste"; que são "as mesmas em todas as alterações e mudanças que o corpo sofre"; e que são "como elas se apresentam aos sentidos constantemente em toda a partícula da matéria". Alguns comentadores têm indagado como um empirista pode aceitar uma visão da mente "encontrando" algo como uma partícula ínfima e imperceptível de matéria. A resposta tem que ser encontrada em nossa visão não-problemática de corpo, ou em outras palavras, no que costumeiramente queremos dizer com a palavra "corpo". Locke insiste em muitas passagens que a nossa idéia de corpo é de uma substância sólida extensa. Obviamente, uma substância sólida extensa terá necessariamente alguma figura ou outra, algum tamanho ou outro, será móvel no espaço, e terá, em relação às partículas que a compõem e/ou às partículas com as quais ela forma um corpo maior, uma certa textura (um arranjo de corpúsculos definidos pelos seus formatos, tamanhos, situação relativa, e movimento relativo). Que o corpo tem tais qualidades se segue do fato de que é uma substância sólida (finita) e extensa.

Essa reconstrução do pensamento de Locke pode ser corroborada pela seguinte passagem do Ensaio onde ele procura explicar a afirmação de que a mente encontra as qualidades primárias inseparáveis de toda a partícula da matéria. Somos convidados a imaginar a divisão de um grão de trigo, primeiro em duas partes e depois em duas partes cada uma das partes inicialmente divididas e assim por diante até chegarmos nas pequenas partes insensivelmente pequenas, que ainda possuem solidez, extensão, figura, mobilidade, etc. Ora, como sabemos disso, especialmente em relação às partes insensivelmente pequenas? Locke apela ao caráter do processo de divisão em si mesmo, qual seja, que ele começa com um corpo e deixa dois ou mais corpos no final, isto é, substâncias sólidas extensas que portanto devem cada uma possuir formato, tamanho, figura, mobilidade, e assim por diante. Também é claro nesse exemplo que o que Locke supõe ser inseparável do corpo não é seu tamanho, formato, etc., particular, mas antes o fato de possuir algum tamanho ou formato, etc. (No jargão da filosofia contemporânea, são os determináveis dessas propriedades, e não os particulares determinados, que são inseparáveis dos corpos.) É claro, uma vez que chegamos ao nível dos átomos ou corpúsculos, que são indivisíveis por qualquer força física, o tamanho ou formato particular dessas partes da matéria não podem ser mudados, exceto em nossa imaginação ou por um ato de Deus.

A segunda afirmação central de Locke, de que as qualidades secundárias nada são senão forças ou poderes que produzem certas sensações baseia-se em última instância em nossas concepções corriqueiras das coisas. Dessa vez, contudo, não é a nossa concepção de corpo, mas antes aquela da causalidade dos corpos que serve de base. Essa concepção, e suas conseqüências, são apresentadas no Ensaio II, viii, 11-13. É surpreendente, tendo em vista a importância dessas considerações para o argumento geral de Locke sobre as qualidades primárias e secundárias, que essas seções tenham sido tão pouco comentadas. A afirmação de Locke na seção 11 é que nós não podemos conceber como um corpo pode atuar em ou afetar outro corpo exceto por impulso, isto é, por ação de contato. Assim sendo, devemos concluir que os corpos produzem idéias em nós por meio de ação de contato. Mas visto que percebemos corpos à distância de nós, a causa próxima das idéias sensíveis que esses corpos induzem em nós deve ser a ação de contato de partículas imperceptivelmente pequenas que induzem movimentos em nossos órgãos sensórios, nervos e, finalmente, nossos cérebros, cujo movimento em última instância produz as idéias adequadas em nossas mentes (seção 12). Essa visão causal poderia ser sustentada para as idéias de qualidades secundárias - cores, sons, gostos, aromas, etc - tanto quanto para as qualidades primárias observáveis dos corpos (seção 13).

A conclusão a que Locke chega por intermédio dessa discussão da nossa visão corriqueira da causalidade dos corpos é que as qualidades secundárias "na verdade nada são nos próprios objetos senão forças ou poderes que produzem várias sensações em nós, e dependem daquelas qualidades primárias" (Ensaio II, viii, 14: 137). Há um ponto importante a notar sobre esta formulação. Locke não diz que as qualidades secundárias não são nada nos objetos - isto é, não estão nos corpos. Ele diz que elas nada são nos objetos senão poderes que produzem idéias. Isso quer dizer que, consideradas enquanto poderes, as qualidades secundárias estão nos corpos, e não são meras idéias em nossas mentes; isto é esclarecido no Ensaio II, viii, 23. Tal postura acerca do status das qualidades secundárias distingue cuidadosamente a visão de Locke e Boyle da visão de seus predecessores tais como Galileu e Descartes, para os quais as qualidades secundárias não têm quaisquer realidades no objeto, mas são apenas idéias em nossas mentes. Isso sem falar na visão daqueles filósofos modernos atacados por Berkeley, um ataque que ainda é bastante mal interpretado como efetivo contra Locke, seu alvo pretendido.

Locke retira outra conclusão a partir desta discussão. Na seção seguinte ele diz que "as idéias de qualidades primárias dos corpos, são semelhantes a eles, e seus padrões realmente existem nos próprios corpos; mas as idéias, produzidas em nós por essas qualidades secundárias, não são de modo algum semelhantes a eles" (Ensaio II, viii, 15: 137). Esta tem sido uma das formulações mais mal compreendidas no Ensaio, em virtude principalmente da indagação acerca de como entender o termo "semelhante". Se entendermos tal termo em seu sentido não técnico, nós nos deparamos com o problema que Berkeley assinalou, a saber, que as idéias, que são estados da mente, são em sua natureza estados muito diferentes dos corpos, de modo que se a afirmação tem a ver com semelhança em geral, as idéias de qualidades primárias não se assemelham aos corpos mais do que as idéias das qualidades secundárias. (Idéias e estados dos corpos são muito distintos em natureza para haver qualquer semelhança). Há um problema adicional de que nós não temos qualquer acesso às qualidades dos corpos exceto através dessas idéias, e assim não possuímos nenhum ponto de vista independente a partir do qual possamos comparar idéias e qualidades e assim aferir sua semelhança geral. Se, por outro lado, entendermos "semelhança" como aquilo que nossos juízos sobre as qualidades primárias dos corpos tais como seu formato e tamanho são de algum modo mais seguros ou menos prováveis de serem falsos do que os juízos sobre cores e gostos, etc., então, como Berkeley também insistiu, a afirmação não pode ser sustentada de modo algum, pois somos capazes de cometer erros tanto ao fazer juízos sobre formas e tamanhos quanto sobre cores e gostos.

Para entendermos isso, precisamos nos lembrar do pano de fundo aristotélico dessa discussão. A doutrina escolástica-aristotélica das qualidades sustentava que muitas das qualidades sensíveis dos objetos são qualidades reais, isto é, que elas são entidades reais que existem ou inerem os objetos, e que a percepção deles envolve a mente aceitando a forma dessas qualidades como elas existem nos objetos. Isso é facilitado pela transmissão através de um meio - a luz, por exemplo, no caso das qualidades percebidas por meio da visão - de uma espécie intencional que se torna a forma da percepção relevante ou o ato da mente; essa espécie intencional é a forma que existe no objeto, com a ressalva de que essa forma existe não na matéria, como no objeto, mas na mente. A idéia na mente é assim qualitativamente idêntica à qualidade no corpo que iniciou todo o processo causal, uma vez que esses dois são os mesmos em forma ou espécie; e assim pode-se dizer que eles se assemelham à qualidade tal como a que existe no corpo.

Com isso como pano de fundo podemos ver porque é um passo pequeno da premissa de que as qualidades secundárias nada são senão poderes até a conclusão de que as idéias de qualidades secundárias não são semelhantes a elas (i.e., as qualidades enquanto estão nos corpos). Pois nossas idéias de cores, sons, calor, e assim por diante apresentam estas enquanto qualidades manifestas nos corpos; nada há nessas idéias tanto das bases físicas reais no corpo que são causalmente responsáveis pela produção dessas idéias em seres percipientes, quanto do caráter disposicional dos poderes que produzem idéias que esses corpos conseqüentemente têm. Por outro lado, as idéias das qualidades primárias são qualitativamente similares às bases causais reais no objeto da produção das idéias sensíveis.

Entendida enquanto dirigida contra a doutrina aristotélica das qualidades em seus próprios termos, contudo, a afirmação de Locke faz sentido plenamente. As idéias das qualidades primárias dos corpos são causadas em nós por essas qualidades, e elas são qualitativamente semelhantes às qualidades nos corpos que são suas causas, mesmo que apenas genericamente. Em que medida os argumentos de Locke para a distinção entre qualidades primárias e secundárias dependem da suposição de que a hipótese corpuscular é verdadeira, ou pelo menos a melhor sustentada ou mais provavelmente científica entre as demais alternativas? Alguns comentadores têm considerado a distinção em questão como sendo apenas uma distinção entre aquelas qualidades que são básicas para a explicação científica das qualidades, poderes e operações dos corpos e aquelas que são explicadas em termos dessas qualidades; as listas de cujas qualidades contam como primárias e secundárias mudariam então na medida em que a ciência progride, e poder-se-ia aceitar a lista de Locke apenas na medida em que a teoria corpuscular fosse a melhor teoria disponível. Que Locke não se compromete com tal visão fica claro em Ensaio IV, iii, 11, em que ele diz "as idéias das quais as idéias complexas de substâncias são feitas, e sobre as quais nosso conhecimento das substâncias é muito empregado, são aquelas de suas qualidades secundárias; que dependem todas (como já foi mostrado) das qualidades primárias de suas partes insensíveis e minúsculas; ou se não delas, de algo ainda mais distante de nossa compreensão". É claro, se as qualidades e poderes dos corpos acabaram de fato por depender de alguma outra coisa que não as qualidades primárias corpusculares (tamanho, figura, movimento, etc. das partes sólidas dos corpos), então a distinção de Locke, mesmo que estivesse disponível conceitualmente, não seria de qualquer valia.

Mas Locke não baseia a distinção entre qualidades primárias e secundárias na suposta superioridade científica da mecânica corpuscular. Quando ele diz na seção 9 que a mente encontra as qualidades primárias "inseparáveis" do corpo independente do estado em que ele esteja, Locke está recorrendo ao significado corriqueiro do termo "corpo". De modo similar, Boyle argumentou que qualquer coisa sólida finita extensa terá uma figura e um tamanho determinados e será passível de movimento no espaço. De acordo com Locke e Boyle, tal coisa será assim uma função do nosso conceito ordinário de corpo no sentido de que deverá possuir todas as qualidades listadas como primárias na seção 9; não há necessidade de apelar para a hipótese corpuscular e sua suposta superioridade científica a fim de fazer valer essa afirmação.

As seções de 16 a 21 do Ensaio II, viii apresentam uma série de exemplos destinados a trazer à luz o fato de que é parte de nossa visão corriqueira do mundo que (1) as qualidades secundárias estão nos corpos somente enquanto poderes que produzem sensações, e que (2) elas dependem da constituição qualitativamente primária dos corpos. Há basicamente dois tipos de exemplo. O primeiro tipo, encontrado nas seções de 16 a 18, compara a qualidade secundária do calor com a dor que é causada pelo calor extremo, ou novamente a qualidade secundária da doçura e brancura no maná com o seu poder de causar doença e dor em nós. Em cada uma dessas comparações, Locke assinala que nós jamais suporíamos que a dor ou a doença fosse uma qualidade real do fogo ou do maná; o calor do fogo, e a doçura e brancura do maná estão no mesmo barco com estes poderes para produzir idéias que os objetos têm em virtude de suas constituições qualitativamente primárias. O outro tipo de exemplo, encontrado nas seções de 19 a 21, convida-nos a imaginar as bases físicas das variações nas qualidades sensíveis das coisas. Locke é cuidadoso ao notar que não há mudança nos poderes do objeto: mesmo no escuro, ele tem o poder de produzir idéias de vermelho e branco em observadores sob condições adequadas (e.g., de iluminação), e ele tem esse poder em virtude de sua constituição microfísica. O amendoeiro mudará de cor e de sabor ao ser socado com um pilão, mas nós não podemos imaginar nenhuma outra maneira de um pilão operar em um amendoeiro além daquela a partir da qual se muda a sua textura, isto é, a disposição de suas partes. E finalmente, nós não podemos imaginar como é que a mesma água deva parecer quente em uma mão (previamente esfriada) e fria em outra (previamente aquecida) a não ser que imaginemos que as sensações de quente e frio resultem de diferenças entre o movimento das partículas na água e aquelas nas respectivas mãos.

Há dois pontos a serem notados a partir desses exemplos. Primeiro, eles não são exemplos exaustivos e decisivos contra a teoria aristotélica das qualidades, ou ainda demonstrações conclusivas da correção da teoria corpuscular. (Isto é bom, pois tomados singularmente ou todos em conjunto eles obviamente deixam a desejar em ambos os casos). Eles são destinados, antes, a nos fazer lembrar que, dada a nossa concepção pré-teórica rudimentar da causalidade dos corpos, julgamos bastante natural e plausível pensar que as mudanças que observamos nas qualidades sensíveis dos objetos estão enraizadas nas mudanças em sua estrutura física, mudanças estas que afetam nossos órgãos sensórios. Segundo, em sintonia com isso devemos notar que esses exemplos não recorrem a nada senão nossa visão comum do mundo; em particular, eles não contam com uma aceitação prévia da hipótese corpuscular. Nessa visão dos argumentos de Locke, a distinção entre qualidades primárias e secundárias não está baseada na correção científica ou pelo menos na superioridade científica corrente (ambas supostas) do corpuscularismo, nem é sustentada somente por uma nota promissória sobre o futuro desenvolvimento da ciência; é antes uma conseqüência natural dos modos em que nós, pessoas comuns, pensamos o mundo, bem ou mal. É certo que isso dificilmente pode servir de base para um argumento conclusivo para a verdade do corpuscularismo; mas vimos que esta não é a intenção de Locke. Ele procurou mostrar que a teoria corpuscular se mescla muito bem com nossas visões corriqueiras das coisas e que, em contraste, a teoria aristotélica não faz sentido, dada a sua bizarra teoria da causalidade e sua distinção indefensável entre qualidades sensíveis que realmente residem no objeto ("qualidades reais") e aquelas que são meramente imputadas a ele com base nas sensações que eles nos induzem ("meros poderes").

2. Substância e Substrato

A doutrina lockeana da substância tem sido foco de grande controvérsia. Para Berkeley, a noção de Locke de substância era meramente a matéria prima dos escolásticos numa roupagem moderna; para Leibniz a concepção empobrecida de Locke da noção de substância (pelo menos aos seus olhos) foi uma causa básica da suposta inabilidade de Locke de acomodar as verdades necessárias da metafísica; e para Stillingfleet, bispo de Worcester, o tratamento de Locke de substância foi parte de um ataque à doutrina teológica tradicional da Trindade. De acordo com muitos desses críticos, Locke oferece uma noção desnaturizada de substância, sobre a qual a substância de uma coisa nada é senão um substrato ou suporte para as qualidades e poderes (os "acidentes" em jargão escolástico); em si mesmo é disforme, e carente de quaisquer propriedades ou qualidades genuínas: um "particular básico" como hoje se costuma chamar.

Entendida nesse sentido, a doutrina de Locke de substância é um aglomerado de crítica. A noção de um mero particular é dominada por confusão (supõe-se que seja uma coisa que não tenha propriedades próprias, de modo a poder ser aquilo que "tem" todas as propriedades do objeto). Mais do que isso, a noção parece não ter qualquer lugar numa teoria corpuscular, que era, afinal de contas, objeto principal de Locke. De fato, se tomarmos o substrato de um corpo como sendo algo sobre e acima o agregado de partículas insensivelmente pequenas (corpúsculos) que compõem o corpo, então a noção de substrato é inconsistente com corpuscularismo.

Muitos comentadores de Locke, simpáticos ou não a ele, tendem a ver a sua doutrina de substância de um modo bem semelhante ao dos seus primeiros críticos, considerando-a ou como produto de confusão da parte de Locke, ou como um resquício inconsciente de seu treino oxoniano em lógica escolástica. Nos últimos vinte anos, no entanto, alguns críticos têm tentado eliminar o aparente comprometimento com particulares básicos. Antes de considerarmos essas propostas rivais, devemos observar algumas das afirmações mais importantes de Locke sobre a substância.

Há duas discussões extensas sobre a natureza da substância no Ensaio, uma no cap. xxiii do livro II e outra nas seções 17-20 do livro II, cap. xiii. O cap. xxiii diz respeito à noção de substância, e seu tratamento da noção de substrato tem sido tomado como canônico. Ao ler tal capítulo, especialmente as seções iniciais, vê-se porque a interpretação tradicional tem sido tão amplamente aceita. Locke começa com uma análise das idéias que temos de vários tipos de substâncias (e.g., seres humanos, cavalos, ouro, água): estas são idéias complexas, que reúnem (1) as idéias das várias qualidades sensíveis percebidas nas substâncias individuais (no caso do ouro, e.g., tais qualidades como, amarelidade, peso, maleabilidade, solubilidade , etc.); e (2) a idéia de uma substância em geral, denominada no Ensaio II xii 6 de "a primeira" das idéias reunidas em quaisquer das idéias dos tipos de substâncias. Locke enfatiza que a idéia de substância em geral não é uma entre as idéias de qualidades sensíveis, e por isso ela não é diretamente derivada da experiência; antes, é suposta ou construída por nós: "por não imaginar como essas idéias simples (as idéias de qualidades sensíveis) possam subsistir por si mesmas, nós nos acostumamos a supor algum substrato, dentro do qual elas subsistem, e a partir do qual elas resultam, o que portanto chamamos de substância" (E II, xxiii, 1: 295). A idéia resultante é referida na seção seguinte como "nada senão o suporte não-conhecido dessas qualidades que pensamos existir", e esta parece bastante com a fórmula dos particulares básicos.

A outra discussão, porém, complica as coisas. No capítulo 13 Locke discute a idéia de substância em geral em termos tão sarcásticos que acaba levantando suspeitas sobre se ele realmente pensa haver algo correspondente à idéia. Bennett aponta para essas passagens para corroborar a sua afirmação de que "o tratamento de Locke de substância em geral é marcadamente cético em conteúdo e irônico na forma (Bennett 1971, pg. 61). Bennett está certamente correto sobre a ironia: nessas passagens vemos Locke recontando a estória do filósofo indiano que concebe o mundo como sustentado por um elefante, e o elefante por uma tartaruga. Se esse filósofo tivesse pensado na "palavra substância", diz Locke, ele poderia tê-la utilizado para sustentar a terra, sem se preocupar com toda a fauna restante. Pois esta é uma resposta tão boa à questão sobre o que sustenta a terra "quanto aquela dos filósofos europeus com relação à substância, sem saber o que vem a ser isso, ou que simplesmente é um suporte de acidentes. Assim, não temos a menor idéia do que é a substância, mas somente uma idéia confusa e obscura do que ela faz" (E II, xiii, 19: 175). Locke conclui a discussão da seguinte forma: "mas se as palavras latinas inerência e substância fossem traduzidas para o inglês e melhor denominadas de "estando sob" ou "pondo junto", elas seriam bem melhor compreendidas por nós e mostrar-se-iam bem mais úteis nas soluções de questões filosóficas" (E II, xiii, 20: 175). O sarcasmo é grande aqui, mas caso não se tenha sido percebido, Locke comenta a mensagem em seu resumo marginal para as seções 19 e 20: "Substância e acidentes de pequeno uso em filosofia".

Com isso em mente, as duas principais discussões sobre a substância no Ensaio aparentemente correm em direções opostas. Parece que a noção de substância, que foi utilizada no capítulo xxiii para explicar como é que os poderes e as qualidades sensíveis existem e são reunidas em uma coisa, é no capítulo xiii rejeitada como uma noção inevitavelmente obscura e de pouco uso em filosofia. Um último conjunto de passagens, no entanto, dessa vez sobre a defesa de Locke das principais doutrinas do Ensaio contra as críticas publicadas por Stillingfleet, parece resolver a disputa.

Uma das principais acusações no livro que iniciou a correspondência foi que Locke tinha "quase retirado a substância da parte razoável do mundo" (Stillingfleet 1697a: 234). A réplica de Locke a essa acusação é a seguinte:

"eu baseio não o ser, mas a idéia de substância, em nosso costume de supor algum substrato; pois é apenas sobre a idéia que falo ali, e não sobre o ser da substância. E tendo em toda a parte afirmado... isso, que um homem é uma substância; eu não posso ser visto como questionando ou duvidando o ser da substância, até ser obrigado a questionar ou duvidar do meu próprio ser" (W IV: 18).

Locke é ainda mais explícito em sua terceira carta. Lá ele comenta a crítica de Stillingfleet de que ao dizer por exemplo que "nós nos acostumamos a supor" um substrato subjazendo às qualidades sensíveis de uma coisa, Locke estaria degradando uma "Conseqüência da Razão" ou "Dedução da Razão" a um mero uso do costume (Stillingfleet 1698: 12). E Locke continua:

"Sua Excelência ... conclui que há substância, ‘porque é repugnante às nossas concepções das coisas ... que modos ou acidentes devam subsistir por si mesmos’; e eu concluo a mesma coisa, porque não podemos conceber como as qualidades sensíveis devam subsistir por si mesmas. Ora, qual a diferença de certeza entre a repugnância de nossas concepções e de nossa incapacidade de conceber, eu confesso, não sei discernir. E portanto parece-me que eu estabeleci a mesma certeza do ser da substância que sua Excelência" (W IV: 445-6).

Locke termina essa discussão afirmando que ele sustenta que "deve certamente haver substância no mundo, e sobre as mesmas bases que sua Excelência toma como certo" (W IV: 446). Essas passagens parecem resolver a questão em favor da interpretação positiva da noção de substrato sugerida no capítulo xxiii, e elas certamente estabelecem a questão sobre se Locke quis negar que houvesse tal coisa como substrato.

Assim, as passagens relevantes parecem no geral sustentar a visão ortodoxa da doutrina de Locke da substância, embora as passagens aparentemente negativas do Ensaio (cap. xiii) ainda exijam explicação. Ora, vamos agora considerar as interpretações alternativas recentes sobre essa problemática.

Vale a pena começarmos com a interpretação de Alexander. Ele considera que Locke nega que haja uma noção completamente geral de substância, uma que possa ser comum ao corpo e ao espírito. Ao invés disso, a noção de substância é por assim dizer, absorvida nas noções dos dois tipos básicos e fundamentalmente diferentes de substância (finita), espírito e matéria ou corpo. Assim, a característica essencial do corpo, solidez, e a característica essencial do espírito, "perceptividade" ou o poder de percepção e pensamento, não devem ser pensados como qualidades inerentes a algum substrato disforme, mas antes define cada um dos dois tipos irredutivelmente diferentes de substância (Alexander 1985: 224).

A interpretação de Alexander tem duas grandes virtudes: ela descarta os substratos como particulares básicos, e ajusta a noção de Locke da substância à teoria corpuscular. Mas há problemas. Em primeiro lugar, a afirmação de que a solidez não é uma qualidade colide com várias passagens em que a solidez é classificada como uma qualidade primária, por isso algo que precisa existir em um substrato se é que existe. Segundo, a interpretação de Alexander entra em conflito com uma das doutrinas centrais de Locke, aquela da possibilidade de se pensar a matéria. (Mais exatamente, esta é a doutrina de que é possível a Deus dar a coisas pensantes o poder de pensamento adicionando este poder diretamente às porções adequadamente organizadas da matéria.) Se um e mesmo objeto individual tivesse tanto a qualidade de solidez quanto o poder de pensamento (ou perceptividade), que é o que aconteceria se Deus adicionasse o poder de pensamento a um corpo, então no modelo de Alexander o objeto teria duas naturezas distintas, e pertenceria a cada uma das espécies gerais de substância.

Há também alguma evidência textual contra a interpretação de Alexander. Na primeira carta de Locke a Stillingfleet, por exemplo, ele escreve:

"sua Excelência dirá que pelo que eu disse da possibilidade de que Deus possa adicionar à matéria uma faculdade de pensar, não pode ser provado que há uma substância espiritual em nós, porque nessa suposição é possível que seja uma substância material que pensa em nós. Eu aceito isso, mas adiciono que a idéia geral de substância sendo a mesma em toda parte, a modificação do pensar, ou o poder de pensar adicionado a ele, faz isso um espírito, sem considerar que outras modificações ele tem, como se ele tivesse ou não a modificação ou a solidez. Enquanto por outro lado, substância, que tem a modificação da solidez, é a matéria, se ela tem a modificação de pensar ou não" (W IV: 33).

Esta passagem diz pelo menos que há uma idéia simples de substância em geral que é um componente tanto da idéia de corpo quanto da de espírito; e dado o descuido de Locke em relação à distinção entre as idéias e as coisas das quais elas são idéias, ele pode ser lido como afirmando que substância ou substrato é a mesma em corpos e em espíritos. (Esta leitura é encorajada tanto pelo contexto quanto pelo fato de que ele se refere a "espírito" e "matéria" na passagem citada, e não às idéias deles). Alexander está ciente desta passagem, e tenta explicá-la exaustivamente, dizendo que Locke está nesse momento aceitando as más interpretações de suas idéias (Alexander 1985: 228). Mas nada há neste contexto que sugira que Locke não esteja falando de própria pessoa, e as afirmações feitas aqui estão perfeitamente sintonizadas com tudo que ele diz mais tarde em sua correspondência. Parece então que a interpretação de Alexander, embora engenhosa e atrativa, não pode no final das contas ser aceita.

A outra rival recente à interpretação tradicional focaliza a substância ou substrato de uma coisa em sua essência real. Assim ela possui as mesmas virtudes da interpretação de Alexander - descarta o comprometimento com particulares básicos e torna a noção de substância mais conforme à estrutura básica do corpuscularismo - e é provavelmente a interpretação mais amplamente aceita da doutrina de Locke da substância. Devemos porém, ser cuidadosos em notar que essa interpretação não afirma que o conceito de um substrato (suporte de qualidades) seja o mesmo que o conceito de uma essência real (a base causal dos poderes e qualidade de um objeto), mas ao invés disso que esses diferentes conceitos apontam para a mesma coisa, quer dizer, a essência real de uma substância individual também funciona como o substrato das propriedades e qualidades da substância individual.

O raciocínio por trás desta interpretação é bem plausível. Ele começa do fato de que, de acordo com Locke, nem o substrato de uma coisa nem a sua essência real são observáveis; cada uma é definida em termos de sua relação com as qualidades sensíveis ou poderes de uma coisa que nós de fato observamos. No caso do substrato, a relação definitória é que o substrato sustenta a existência dos poderes e das qualidades, ou em outras palavras, as qualidades inerem o substrato. No caso da essência real, é que a essência real é a base causal no objeto para se ter os poderes e qualidades que ele de fato tem. Por que então não assumir que a essência real realiza ambas essas funções, eliminando a necessidade de uma entidade misteriosa não diferenciada que carece inteiramente de qualidades? Maurice Mandelbaum, principal proponente de tal interpretação, diz que a idéia de um substrato funciona como "um substituto para o que no objeto é material e existe independentemente de nós ... uma noção geral e indeterminada representando algo no objeto que faz desse objeto uma coisa auto-subsistente" e nota que "é a constituição atômica dos objetos, não a ‘pura substância em geral’, que causa as idéias deles que realmente temos, e que também causa os efeitos, se percebidos ou não, que os objetos exibem uns em relação aos outros" (Mandelbaum 1964: 39). De modo similar, Ayers diz: "o conceito de ‘substância’, ‘substrato’, ou ‘coisa (que tem tais e tais propriedades)’ é assim um conceito por meio do qual nos referimos àquilo que é inobservado e desconhecido - ou conhecido somente através de seus efeitos e relativamente ao nível da observação. Em outras palavras, substância é um conceito ‘fantoche’ tal como poder" (Ayers 1975, pg. 9). Novamente, "o que subjaz aos poderes ou qualidades que são observáveis por nós’ em qualquer coisa é uma substância constituída (ou modificada ou determinada) de certas maneiras. Não há dois níveis subjacentes, primeiro a essência real, então, sob ela, a substância" (ibid., pg. 17). Qualquer progresso que se pudesse fazer ao se descobrir mais sobre as constituições internas detalhadas, ou essências reais, das coisas daria ao mesmo tempo mais informação acerca da natureza do substrato da coisa.

Essa linha de raciocínio é plausível, mas não há evidência textual que a sustente. Mesmo em lugares propícios como a longa discussão das essências reais e nominais nos caps. iii e vi do Ensaio livro III, e a controvérsia com Stillingfleet, Locke jamais sugere que substância e essência devem ser identificadas. (Ao contrário, ele argumenta exaustivamente contra a identificação Stillingfleet desses dois conceitos, em conexão tanto com a doutrina da substância quanto com a possibilidade da matéria pensante. Isto não é surpreendente em virtude do fato de que as noções de substrato e de essência real são muito diferentes, cada uma possuindo diferentes papéis teóricos. A essência real de uma coisa, tanto concebida tradicionalmente (como forma substancial) quanto pensada por Locke (como a constituição microfísica interna de uma coisa), é a base causal das qualidades e poderes de uma coisa. Por outro lado, a substância - a noção tradicional que Locke afirma ser idêntica em conteúdo à sua noção (W IV: 8 e 449) - sustenta os poderes e as qualidades no ser, isto é, os poderes e as qualidades que inerem o substrato. Ora, enquanto não é em geral impossível que deva haver relações causais e lógicas entre um conjunto de coisas e um outro, neste caso particular há dificuldades em identificar substrato e essência real. Pois a tradição lógica que deu lugar à noção de substância como substrato assume que todos os acidentes de uma coisa têm a mesma relação (aquela de inerência) ao substrato, enquanto que os poderes e qualidades de uma coisa podem estar relacionados de um modo bem diferente à essência real (mudanças na constituição microfísica de uma coisa mudarão em geral alguns dos poderes e qualidades dessa coisa mas deixarão outros intactos). Na ausência de qualquer texto de Locke em que ele identifica, ou mesmo implica a identificação entre substrato e essência real, a única coisa que os proponentes dessa visão podem fazer é mostrar que eles pelo menos não estão em desarmonia com os textos, e que eles descartam o confuso conceito de particulares básicos. Mas no geral, tal visão deixa inteiramente não explicada partes centrais do Ensaio e da correspondência com Stillingfleet na qual a noção de substância é discutida.

Voltando a essas passagens, vemos dois temas centrais na discussão da substância. O primeiro é que o núcleo da noção de substância em geral (realmente, o único conteúdo que lhe podemos atribuir) é que substância ou substrato é o suporte de poderes e qualidades. O segundo é que a noção é obscura e confusa: quando falamos de substância falamos como crianças, ou como aqueles que tentam descobrir o suporte do mundo recorrendo a um elefante, que é sustentado por uma tartaruga, etc.; a doutrina de substância e acidentes não tem qualquer uso em filosofia; e assim por diante. Ora, é o primeiro tema que tem encorajado comentadores a atribuírem a interpretação do substrato enquanto particulares básicos a Locke. Mas se lermos essas passagens cuidadosamente, veremos Locke dizendo apenas que nossa idéia de substância é como aquela de algo suportando ou sustentando qualidades. Disso não se segue que aquilo que corresponde à idéia de substância (se é que existe) não possa ter outras propriedades ou características além daquela de suportar ou sustentar qualidades, que é o que a doutrina dos particulares básicos requer. Assim, não há necessidade de atribuir a doutrina dos particulares básicos a Locke.

A outra dificuldade enfrentada pela interpretação comum da teoria lockeana da substância é a de dar conta do aparente duplo caráter do tratamento de Locke acerca da substância. Ele como que apela para a noção numa maneira positiva para explicar a existência de qualidades observáveis no cap. xxiii, livro II; mas no cap. xiii do mesmo livro ele enfatiza a falta de clareza e a obscuridade da noção, até o ponto de declará-la de pouco uso em filosofia. Novamente, uma leitura cuidadosa dessas passagens mostrará que Locke jamais afirma explicar qualquer coisa, incluindo a existência de qualidades sensíveis, em termos de substância. Tudo o que ele diz é que nós nos deparamos com (ou supomos) a noção de substância quando percebemos que não podemos imaginar que as qualidades sejam capazes de existir por si mesmas, ou uma na outra. Isso não é o mesmo que dizer que estamos explicando qualquer coisa ao apelar para a noção; antes, especialmente em vista de seu conteúdo obscuro - "da substância, não temos idéia alguma do que é, mas somente uma idéia obscura e confusa do que faz" (E XX, xiii, 19: 175) - devemos dizer que a idéia nada mais faz do que acentuar, ou delimitar, a nossa incapacidade de dar uma explicação satisfatória aqui.

Isso pode parecer um resultado bem limitado, e pode-se legitimamente querer saber porque Locke se importou em dar, e defender, uma teoria da substância se isto é tudo o que há nela. Em resposta a isso devemos notar, primeiro, que um dos objetivos centrais do Ensaio, e especialmente do livro II, é o de catalogar as idéias importantes que temos e mostrar como elas podem ser derivadas das sensações e da reflexão; e Locke certamente concorda com a visão tradicional da idéia de substância como um suporte de qualidades. Seria uma grande lacuna em seu projeto se Locke não fosse capaz de mostrar como podemos derivar a idéia de substância da sensação e da reflexão.

Muito mais importante do que isso, no entanto, é o uso subversivo que Locke faz da idéia de substância. Para entendermos isso, precisamos recordar que a doutrina da substância e acidentes já tinha tido uma longa história no tempo de Locke, remontando ao Tratado dasCategorias de Aristóteles. Para Aristóteles, a categoria da substância era a primeira e a mais importante de todas as categorias lógicas; os itens nas outras categorias (qualidade, quantidade, relação, e assim por diante) só podem existir por existirem em, ou serem predicados de, substâncias. Substâncias, por outro lado, podem existir por si mesmas, sem ter de existir em nada mais. As afirmações de Aristóteles sobre a substância são reticentes, contudo, no que concerne às relações entre a substância ou substrato, a forma ou essência da coisa, e a matéria da qual a coisa é composta. Durante os longos séculos do escolasticismo, quase toda combinação e permutação de relações possíveis entre essas entidades era representada por alguma posição ou escola, de modo que no tempo de Locke a doutrina da substância e acidentes era realmente uma das mais confusas. Essa doutrina também desempenha um papel importante em Descartes. O Cogito, com a sua dependência implícita no princípio de que "o nada não tem propriedades" (contrapositiva" "qualquer coisas que tem propriedades é algo") para mostrar que qualquer pensamento deve ter um ser pensante, quer dizer, precisa ser pensado por alguém; a conseqüente análise da natureza da mente e do corpo, e o argumento da distinção real entre mente e corpo; e a afirmação de que a essência das coisas materiais pode ser clara e distintamente percebida pelo intelecto - todo o resto em alguma versão da doutrina escolástica tradicional da substância e acidentes. Vimos que um dos principais objetivos de Locke no Ensaio foi o de promover a versão corpuscular do mecanicismo em detrimento da versão cartesiana, e de eliminar os obstáculos aristotélico-escolásticos para a aceitação do mecanicismo. Também vimos como cada uma dessas visões rivais faz um uso central da doutrina da substância. Agora vemos Locke argumentando que essa noção é irremediavelmente obscura e confusa, e de pouco uso em filosofia, mesmo quando ele afirma que nós realmente temos essa idéia e que seu conteúdo é o mesmo que aquele tradicionalmente afirmado. Se isso tira o tapete sob os pés cartesianos e aristotélicos, então tanto pior para essas visões e tanto melhor para o corpuscularismo mecanicista.

Visto dessa maneira, o tratamento de Locke da substância faz mais do que ser coerente com o resto de seu relato em favor do corpuscularismo; ele se torna uma parte importante desse relato. Atenção cuidadosa a todas as passagens relevantes, então, em conjunto com a devida consideração das circunstâncias históricas do Ensaio, nos capacita a chegar a uma leitura do tratamento de Locke da noção de substância que se encaixa perfeitamente com os textos (mesmo com aqueles que à primeira vista parecem se dirigir em direção oposta), é coerente em seus próprios termos, e contribui com projeto geral do Ensaio, aquele de estabelecer a superioridade filosófica do corpuscularismo mecanicista. Interpretado adequadamente, o tratamento da substância no Ensaio, assim, acaba por se assemelhar menos à gama de confusões cometidas por um medíocre filósofo do que a um exercício sutil de crítica filosófica elaborada por um filósofo de gênio.

Muitos temas emergiram nesta discussão. Primeiro, mostrei que a concepção corpuscular da natureza dos corpos adotada por Locke desempenha um papel central em seu tratamento daquelas questões filosóficas básicas como substância, o estatuto das qualidades sensíveis, e a estrutura das explicações científicas. Depois eu mostrei que, embora seja a hipótese corpuscular tal como aquela avançada por filósofos naturais que desempenha seu papel central, a base para colocar essa hipótese ao uso filosófico não é que ela é a melhor hipótese científica corrente ou que promete dar-nos um conhecimento detalhado do funcionamento e das qualidades dos corpos. A base, antes, é a sua conformidade à visão comum da natureza do corpo e da acusação dos corpos. As principais afirmações de Locke não são sustentadas por uma nota promissória de sucesso científico futuro; elas são apresentadas simplesmente como abordagem do mundo enquanto ele deve se nos aparecer, dada a nossa visão (boa, ruim ou indiferente) comum das coisas. Finalmente, devemos retornar ao nosso ponto de partida, e recordar que o conceito corpuscular de corpo era um dentre vários outros, a principal competição sendo as teorias aristotélica e cartesiana. Não muito tempo depois de Locke ter escrito, Newton, que estudou com afinco a tradição corpuscular, colocou fim à competição. Como Ayers fez notar: "A capacidade de Locke de vencer, tanto em metafísica quanto em política, não deve ser menosprezada".

(Traduzido por Marco Antonio Franciotti do Cambridge Companion to Locke, editado por Vere Chappell, Cambridge: Cambridge University Press, 1994, pgs. 56-88)

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