A Noção de Substância em Locke

J.W. Yolton

Quando pensamos e falamos de objetos dos quais temos experiência, pensamos esses objetos como possuidores de qualidades, poderes e habilidades que descobrimos em nosso uso ou exploração deles. Jamais nos ocorreria pensar que uma bola de futebol ou uma carteira fossem apenas as qualidades que descobrimos, ou podemos descobrir. A noção desses objetos como sendo nada mais do que uma coleção de qualidades é uma noção que ordinariamente achamos obscura, se não sem sentido. Quando pressionados a dizer o que é o objeto senão apenas um grupo de qualidades, encontramo-nos numa posição difícil. Usamos palavras tais como ‘isto’, ‘eles’, ‘coisa’, etc. A palavra ‘maçã’ é tomada como se referindo a algo que tem propriedades específicas: uma cor, um sabor, uma forma e uma textura. Pensamos que a palavra se refere àquilo que possui essas qualidades ou propriedades. Mas o ‘isto’ ou o ‘aquilo que’ parece alusivo, parece jamais alcançar nossa experiência.

Filósofos antigos e modernos formularam essa maneira ordinária de pensar objetos na linguagem técnica de substância, modo, atributo, propriedade. Referindo-se a propriedades tais como pensar, desejar, acreditar, Descartes usou o dictum, ‘o nada não tem propriedades ou qualidades’, querendo dizer que qualidades ou atributos pertencem a algo, a alguma coisa ou (o termo técnico) substância. A definição geral de substância com a qual Descartes trabalhou é padrão: ‘uma coisa que existe de modo tal a não depender de quaisquer outras coisas para sua existência’(Princípios de Filosofia, I, § 51). A definição de Espinosa é um pouco mais precisa e complexa: ‘por substância eu entendo aquilo que é em si mesmo e é concebido através de si mesmo; em outras palavras aquilo para cuja concepção não precisamos da concepção de nenhuma outra coisa a partir da qual ele tem que ser formado’ (Ética, I, Def. III). A substância de Espinosa é Deus, a única substância que existe, mas ela tem todos os atributos - um número infinito, de fato - dois dos quais (extensão e pensamento) ‘o intelecto percebe na substância, como constituindo a sua essência’ (ibid. Def. IV). Para Descartes Deus é também a única substância no sentido pleno, mas a concepção de substância se aplica num sentido derivativo à mente e ao corpo, quer dizer, substâncias imaterial e material, respectivamente. Estas se qualificam enquanto substâncias porque são suportes de propriedades ou atributos, aquilo aos quais qualidades específicas pertencem. Tal como para Espinosa, os dois atributos que podemos entender, pensamento e extensão, nos capacitam a obter algum conhecimento da substância, também para Descartes nós nos tornamos cientes dessas substâncias derivativas através de qualidades ou atributos específicos. Tais substâncias elas mesmas não têm qualquer efeito em nós. É apenas através dos atributos que observamos também ser possível inferir a necessidade de uma coisa ou substância existente’ (Princípios, I, § 52). Cada um desses dois tipos de substâncias tem um atributo ou propriedade principal ou essencial ‘que constitui sua natureza e essência, e ao qual todas as outras propriedades se referem, extensão para o corpo, pensamento para a mente’ (ibid., § 53).

Com isso em mente, duas questões surgem. Primeiro, será que podemos dizer algo sobre a natureza da substância independente de seus atributos? Segundo, será que nosso conceito de substância se baseia apenas na inferência que fazemos do dictum de que essas qualidades não podem existir sozinhas, que elas devem possuir uma substância a qual elas pertençam? Descartes teve problemas com essas questões. Num momento, ele parece responder a primeira questão negativamente.; ele quase identifica substância com seu atributo essencial. O Princípio 63 nos diz que os atributos essenciais da mente e do corpo são de fato, ou são pensados como, substâncias: pensamento ‘tem que ser considerado então como nada além da própria substância pensante’. A mesma consideração é feita sobre a extensão e substância extensa. Não é claro se ele quis que tais considerações fossem entendidas como ontológicas (substância é o mesmo que atributo essencial) ou apenas como pertencendo ao nosso conhecimento. Ele diz que ‘é muito mais fácil para nós ter um entendimento da substância extensa ou pensante do que para entender substância nela mesma, deixando de lado o fato de se ela pensa ou é extensa’ (ibid.). Mas a questão permanece sem resposta: pode haver substância sem atributos essenciais?

A doutrina da substância em Descartes e Espinosa é complexa e sutil, mas esse rápido esboço é suficiente para nos fornecer o pano de fundo contra o qual Locke elaborou a sua própria doutrina da substância. Ela reflete a admissão cartesiana de que a palavra ‘substância’ não se aplica univocamente a Deus, às mentes finitas e aos corpos, mas esse fato leva Locke a ser crítico do termo e do conceito. Ele interrompe sua abordagem dos modos simples de espaço para indicar suas dúvidas sobre o significado de ‘substância’. Se é aplicado a Deus, às mentes, e aos corpos no mesmo sentido, pode diminuir as importantes diferenças (Ensaio, 2.13.18). Se se afirma que o termo se aplica a cada um em sentido diferente, então esses filósofos devem usar três diferentes palavras para ‘evitar numa noção tão importante, a confusão e os erros que se seguirão naturalmente do uso promíscuo de um termo tão duvidoso’ (ibid.). A próxima seção sugere que foi a admissão dos acidentes (i.e., propriedades não-essenciais) ‘como uma espécie de seres reais, que requerem algo para sustentar ou inerir’, forçando os filósofos antigos ‘a encontrar a palavra Substância, para suportá-las’ (2.13.19). O tom crítico de Locke se torna mais estridente nesse ponto. Ele relembra a estória do filósofo indiano que pensou que a terra requeria sustentação, e sugeriu que um elefante a suportava, e este sendo suportado por uma tartaruga gigante (e assim por diante ao infinito). Locke diz que essa maneira de falar é tão significativa ou tão sem sentido quanto a estória dos filósofos europeus da substância como suporte de qualidades (cf. 2.32.2, onde ele compara essa maneira de se expressar com a das crianças). A noção de substância suportando qualidades ou de qualidades inerentes na substância é igualmente obscura (2.13.20).

Quando Locke vê a necessidade de descrever a idéia de substância, ele exemplifica a maneira que comumente pensamos e falamos de objetos. É a idéia de substâncias que ele descreve como ‘tais combinações de idéias simples, como são tomadas para representar coisas particulares distintas subsistindo por si mesmas; nas quais a idéia confusa e suposta de substância, tal como ela é, é sempre a primeira e a maior’ (2.12.16). O longo capítulo sobre nossas idéias complexas de substâncias reafirma essa descrição: notamos que certas idéias (i.e., qualidades) sempre vão juntas com aquilo que chamamos de ‘objetos externos’. Mas nós não podemos imaginar ‘como essas idéias simples [qualidades] possam subsistir por si mesmas, [de modo que] nós nos acostumamos a supor algum Substrato, no qual elas subsistem, e das quais elas resultam, que portanto chamamos de Substância (2.23.1). Se tentarmos formar uma idéia de substância mesma independente das qualidades (o que chamamos de ‘substância pura em geral’), podemos apenas encontrar uma suposição da qual não sabemos o que suporta essas qualidades (2.23.2). As idéias de espécies particulares de coisas, substâncias, são formadas ao se combinar essas idéias simples que ‘são por experiência e observação dos sentidos humanos assumidas como existindo conjuntamente’ (2.23.3). Ele dá exemplos de um homem, cavalo, ouro, água, ferro, diamante. Todas essas idéias são de qualidades coexistentes, com a adicionada ‘e confusa idéia de algo ao qual elas pertença, e na qual elas subsistem’ (ibid.).

A mesma abordagem é oferecida para a nossa idéia de mente, a suposta substância imaterial. A res cogitans de Descartes: ela também é a idéia complexa de várias ações e poderes mentais tais como, pensar, raciocinar, temer, que supomos pertencerem a algo chamado ‘espírito’ ou ‘mente’ (2.23.5). Assim, as noções de substâncias material e imaterial são igualmente obscuras, uma vez que se referem a algo supostamente distinto da coleção de propriedades associadas com alguma espécie particular dessas ‘coisas’ mentais ou físicas. A próxima seção torna claro que Locke está falando de nossas idéias dessas coisas, não da suposta substância mesma. ‘O que quer que seja portanto a natureza secreta e abstrata da Substância em geral, todas as idéias que temos de espécies distintas particulares de substâncias, nada são senão combinações de várias idéias simples’ (2.23.6). Ele não diz que substâncias são apenas coleções de qualidades, mas ele insiste repetidas vezes que as nossas idéias de substâncias particulares nada são senão coleções. A locução ‘nada são senão’ é usada várias vezes, mas sempre em relação às nossas idéias de espécies particulares de substâncias (cf. 2.23.14). Nem mesmo à idéia de substância em geral é dada essa formulação: essa idéia é sempre referida enquanto a idéia confusa de um suposto suporte para qualidades. A natureza de tal suporte se coloca para além do nosso conhecimento.

Para um filósofo tradicional escolado na linguagem da substância, propriedade e acidentes, especialmente para tal pessoa com interesses teleológicos, Locke poderia ser visto como descartando a ontologia tradicional. Ele foi visto dessa forma por Stillingfleet, o Bispo de Worcester. Nesta Carta ao Bispo de Worcester, Locke fala da conclusão de Stillingfleet da limitação de idéias para sensação e reflexão que a substância escapa a compreensão da razão humana. Stillingfleet condenou aqueles que empregaram essa nova linguagem de idéias porque eles ‘quase retiraram a substância da parte razoável do mundo’. Ele aceitou o exemplo do filósofo indiano e o uso da linguagem da substância como uma fala infantil. Locke então distinguiu o falar de substâncias e o falar de nossa idéia de substância. Ele afirma que essas passagens todas ‘implicam que a substância [física] deve ser sempre algo além de extensão, figura e solidez’. Ele também diz que enquanto houver qualquer qualidade sensível ou idéia simples, a substância não pode ser descartada, uma vez que as idéias e as qualidades carregam a suposição de um substrato. Ele admite a Stillingfleet que ele realmente disso que a idéia de substância é obscura, mas ele não encontrou nenhuma definição dela, nem mesmo nos manuais de lógica. Ele salienta que afirmar que uma idéia é confusa não implica a negação do que a idéia deve se referir.

A passagem mais forte do Ensaio que sugere que Locke de fato aceitou a existência real de substâncias no mundo é encontrada em 2.23.29, uma conclusão sumária das seções precedentes desse capítulo. Lá ele afirma que ‘a sensação nos convence de que há substâncias extensas sólidas, e a reflexão, que há substâncias pensantes: a experiência nos assegura a existência delas, uma com o poder de mover o corpo por impulso, outra por pensamento; disso não podemos duvidar’. A frase ‘a existência delas’, não é uma consideração sobre nossas idéias, mas sobre a realidade. A próxima sentença ainda diz que a experiência ‘nos fornece a cada instante essas idéias claras’ de ambas as espécies de ‘substâncias’, mente e corpo. As ‘idéias claras’, porém, não podem se referir ao componente da substância, uma vez que ele disse repetida e firmemente que a idéia é no mínimo confusa. Assim, o que são as ‘substâncias’ de cuja existência a experiência nos assegura? As idéias são identificadas como aquelas ‘recebidas a partir de suas próprias fontes’, para além das quais ‘nossas faculdades não podem alcançar’ (ibid.). As ‘próprias fontes’ podem ser apenas sensação e reflexão, mas há evidência neste capítulo (e em outras passagens doEnsaio) que Locke tem em mente as idéias de corpos, as causas dessas idéias, causas as quais para ele são expressas pela teoria corpuscular da matéria.

Na seção 3 ele fala das idéias coexistentes (ele provavelmente quer dizer ‘qualidades’) como ‘devendo fluir da constituição interna particular, ou essência desconhecida dessa substância’. A presença das palavras ‘devendo’ e ‘essência desconhecida’ sugere um paralelo com a linguagem que ele usa para falar sobre o suposto substrato das qualidades que está para além de nossas faculdades. Podemos suspeitar que a teoria corpuscular está substituindo as noções vagas de substrato e suporte que caracterizaram a doutrina tradicional da substância. ‘Flui de’ (uma noção causal) substitui a idéia vaga de um ‘suporte’ e a ‘essência desconhecida’ substitui o suposto substrato. Ele nos diz em 2.23.8 que os nossos sentidos nos falham ‘na descoberta do tamanho, da textura, e da figura das partes pequenas dos corpos, dos quais dependem as constituições diferenças reais’. A seção 10 é clara: as qualidades secundárias observadas são consideradas poderes num objeto operando pelo movimento e a figura de suas partes insensíveis’ causando-nos idéias específicas de calor, som, etc. A essência desconhecida dessa teoria científica da matéria é a estrutura específica e a organização dos corpúsculos insensíveis.

O mudança gradativa do conceito tradicional de substância para o conceito de corpo como uma combinação de qualidades causadas pelos corpúsculos insensíveis produz uma abordagem dos corpos que ainda lhes dá dois componentes, um conjunto observável de qualidades e uma estrutura interna, insensível e corpuscular como a causa das qualidades observáveis (assim como a causa das nossas idéias dessas qualidades). Desse modo, podemos dizer que o bispo foi correto se ele pretendeu condenar a análise de Locke por ter descartado o conceito de substância que ele e muitos filósofos tinham aceito, mas os corpos da vida diária, as substâncias com as quais os químicos tais como Boyle trabalharam em seus laboratórios, são todas preservadas com o novo conceito científico que Locke adicionou aos objetos fenomênicos da experiência comum. Assim, as ‘substâncias’ referidas por Locke são espécies particulares de objetos em nosso mundo. Para nós esses objetos são apenas uma coleção de qualidades, mas Locke aceitou que não podemos conceber objetos apenas como qualidades, de modo que ele emprega as hipótese científica usada por muitos membros da comunidade científica para preencher nosso conceito de objetos físicos. Quando ele usa o termo ‘substância’, como ele continua a fazer, muito de seu significado e da sua referência são exauridos pelas qualidades coexistentes observadas. Nosso conhecimento dos corpos se limita ao que podemos descobrir pela experiência e a observação. O que ele chamou de ‘essência nominal’ dos corpos é o conjunto das qualidades que descobrimos ocorrerem conjuntamente. Por exemplo, a palavra ‘ouro’ ou a nossa idéia de ouro se refere ao conjunto de qualidades que descobrimos sempre vir junto com os objetos desse tipo. Mais precisamente, ‘ouro’ quer dizer a coleção de qualidades tais como maleável, solúvel em certas soluções, amarelo, etc. Nenhuma referência à substância ou a algo acima dessas qualidades. O mesmo vale para as outras coisas: chumbo, madeira, mercúrio. Ao formarmos nossas idéias de essências nominais, precisamos cuidar para que elas se ajustem às qualidades que encontramos em nossa experiência. Descrições científicas são mais detalhadas e precisas na medida em que elas listam as qualidades e poderes que constituem ouro, chumbo, etc. Contudo, qualquer idéia dessas ‘substâncias’ precisa se conformar a esses grupos de qualidades. Nomes para Locke são sinais de idéias, e idéias são sinais de coisas, mas suas ‘coisas’ tendem a se dissolver em coleções de qualidades, i.e., na essência nominal.

O que acontece com a segunda das duas substâncias cartesianas, a alma pensante ou imaterial? Não havia disponível nenhuma alternativa à descrição da alma como aquilo que pensa em nós. Ela era considerada imaterial, imortal, e indivisível. Isso quer dizer que dela se excluía a extensão corporal, embora para alguns a alma tivesse uma extensão de seu próprio tipo (como o espaço também tinha). Locke chocou filósofos e teólogos ortodoxos afirmando que a imaterialidade não era necessária para a imortalidade. Ele também enfureceu muitos de seus leitores com a sua sugestão de que Deus poderia dar a certa matéria organizada o poder do pensamento. Essas duas características da maneira de Locke se referir à alma perturbou os tradicionalistas, mas foi sua nova abordagem da pessoa que os confundiu ainda mais. A identidade pessoal é independente da identidade da alma. ‘Mente’ é um termo que Locke usa mais freqüentemente do que ‘alma’. Qualquer termo que escolhermos, porém, deverá se limitar ao que podemos descobrir refletindo sobre nós mesmos quando pensamos, desejamos ou percebemos. Não podemos dizer que o conceito de pessoa em Locke substitui o de ‘alma’ mais tradicional, mas num certo sentido tal conceito assume alguma das antigas funções da alma. Em outras palavras, a noção de pessoa passa a ser a de uma coleção de ações e operações mentais.

O conceito de corpo na abordagem de Locke pode ser facilmente utilizado para os corpos coletivos como um exército, uma cidade, o mundo. Do mesmo modo que as substâncias particulares são coleções de qualidades, esses grupos são coleções de substâncias particulares: ‘a idéia de tal coleção de homens de modo a constituir um exército, embora consistindo de um grande número de substâncias distintas, é tanto uma idéia, quando a idéia de homem’ (2.23.1). Essas idéias coletivas de substâncias reúnem em um conceito um número de particulares tal como as idéias de qualquer uma das demais substâncias.

A eliminação do conceito tradicional de substância acelerou-se depois de Locke. Berkeley rejeitou a noção científica de estrutura insensível, favorecendo a noção de objetos físicos como combinações de qualidades. Hume pronunciou o conceito de substância como sem sentido (não há impressão do sentido ou de reflexão para essa idéia), e desafiou a noção de uma alma imaterial. O ‘eu’ de Hume não é, como se tem apresentado, apenas um conjunto de percepções: ele firmemente identificou ‘a verdadeira idéia de mente humana... como um sistema de diferentes percepções ou existências, que estão ligados em conjunto pela relação de causa e efeito, e mutuamente se produzem, se destroem, se influenciam e se modificam umas às outras’ (Tratado da Natureza Humana, I, IV, VI, pg. 261). Todavia, mesmo reconhecendo os problemas de um sistema de existências causalmente relacionadas, estamos provavelmente corretos em ouvir em Hume um eco do conceito lockeano de pessoa.

(Traduzido por Marco Antonio Frangiotti do verbete "substance",

do livro A Locke Dictionary, Oxford: Blackwell, 1993, pgs. 281-287)

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