Resumo
O presente artigo tem como propósito apresentar a ontologia fenomenológica de Jean-paul Sartre a partir de sua obra O ser e o nada – Ensaio de ontologia fenomenológica. Partindo de alguns conceitos da fenomenologia de seu mestre Edmund Husserl, Sartre irá encetar sua análise em torno do fenômeno de ser. Dessa análise ontológica virão as noções de ser Em-si e ser Para-si, que são as colunas mestras da ontologia sartreana.
Palavras-chave: fenomenologia, fenômeno, ser Em-si, ser Para-si.
Abstract
This article aims to present the phenomenological ontology of Jean-Paul Sartre from his work Being and Nothingness - phenomenological ontology essay. Based on some concepts of the phenomenology of his teacher Edmund Husserl, Sartre will begin its analysis around the phenomenon of being. From these ontological analysis wiil come the notions of being in-itself and being for-itself which are the main pillars of sartrean ontology.
Keywords: phenomenology, phenomenon, being in-itself, being for-itself.
Introdução
O presente artigo tem como propósito abordar a ontologia sartreana sob a luz de sua monumental obra O ser e o nada – Ensaio de ontologia fenomenológica. Influenciado pela fenomenologia de seu mestre Edmund Husserl, Sartre irá desenvolver sua investigação em torno do fenômeno de ser. Ao longo de sua caminhada, o pensador francês irá externar suas divergências em relação ao método fenomenológico de seu mestre alemão. Dito isso, será apresentada a análise sartreana do fenômeno (fenômeno de ser) no sentido de se tentar captar o modo próprio como o fenômeno se nos dá. Em seguida, o pensador parisiense irá buscar pelo ser mesmo do fenômeno. Dessa análise ontológica virão à tona as noções de ser Em-si e ser Para-si.
O Fenômeno de ser
Na Introdução de O Ser e o Nada Sartre tece elogios ao pensamento moderno por este ter tentado, ao longo da história da filosofia, desvencilhar o fenômeno daqueles dualismos que a ele eram atribuídos: “O pensamento moderno realizou progresso considerável ao reduzir o existente à série de aparições que o manifestam” (SARTRE, 1997, p.15). Segundo Sartre, dualismos tais quais ato e potência, interior e exterior, aparência e númeno , apenas embaraçam a análise do fenômeno tal qual ele se nos dá. Daí o pensador francês se remeter ao principal intuito da fenomenologia husserliana: a ida às coisas mesmas como elas são, ou melhor, a captação do fenômeno tal qual ele se nos mostra.
Nesse sentido, "se nos desvencilharmos do que Nietzsche chamava ‘a ilusão dos trás-mundos’ e não acreditarmos mais no ser-detrás-da-aparição, esta se tornará, ao contrário, plena positividade... Porque o ser de um existente é exatamente o que o existente aparenta. Assim chegamos à ideia defenômeno como pode ser encontrada, por exemplo, na ‘fenomenologia’ de Husserl..." (Idem, p. 16, grifos do autor). Vê-se aqui claramente que Sartre adotará o conceito de fenômeno sob a mesma rubrica de Husserl: o fenômeno é aquilo que aparece à consciência. Sob essa perspectiva Sartre julga poder superar aqueles dualismos que “embaraçam” a análise do fenômeno. Contudo, o filósofo francês admite que a adoção do método fenomenológico parece trazer à tona outro tipo de “oposição”, a saber, a oposição finito e infinito. Essa nova “oposição” atrelada ao fenômeno teria origem no método husserliano da variação eidética, o qual submete o objeto da percepção às diversas variações de perfil (Abschattung) a fim de se captar o seu aspecto invariável, isto é, sua essência. Nas palavras de Sartre,
(...) O existente , com efeito, não pode se reduzir a uma série finita de manifestações, porque cada uma delas é uma relação com um sujeito em perpétua mudança. Mesmo que um objeto se revele através de uma só ‘Abschattung’, somente o fato de tratar-se aqui de um sujeito implica a possibilidade de multiplicar os pontos de vistas sobre esta ‘Abschattung’. É o bastante para multiplicar ao infinito a ‘Abschattung’ considerada (Idem, p. 17, grifos do autor). O novo dualismo (finito-infinito) que a variação eidéticahusserliana traz à tona parece não satisfazer o pensador francês na sua investigação em torno do fenômeno de ser. Embora o método da “redução” tenha como propósito “depurar” o fenômeno e buscar no mesmo o componente “invariável” (“essência”) da aparição, ele deixa sempre no ar a possibilidade de outras Abschattungen (perfis) virem a lume, ou seja, ele conduz a série de aparições do objeto ao infinito.
Diante disso, “para não cair numa nova dualidade, Sartre mostra que não necessitamos do infinito da série de aparições de uma cadeira, para sabermos, reflexivamente, que a cadeira é cadeira. O aparecer da cadeira (fenômeno-de-ser, objeto para a consciência) já revela nele mesmo a sua essência: a essência de cadeira é o seu próprio aparecer”. Diante disso, podemos defender aqui que Sartre não dá muita ênfase à redução fenomenológica husserliana. O que o filósofo francês parece ter em grande monta é o fato de no fenômeno as coisas se darem em si mesmas, de modo absoluto. Nesse caso, o fenômeno será radicalmente reduzido ao seu aparecer, pois "o fenômeno não indica, como se apontasse por trás do seu ombro, um ser verdadeiro que fosse, ele sim, o absoluto. O que o fenômeno é, é absolutamente, pois se revela como é. Pode ser estudado e descrito como tal, porque é indicativo de si mesmo" (Idem, p. 16, grifos do autor). Portanto, o que parece importar mais aqui ao filósofo francês é o fato de o fenômeno ser descurado daqueles dualismos aqui referidos. O fenômeno é aquilo que aparece e cabe ao filósofo buscar apreender essa aparição em si mesma, sem partir de pressupostos que ocultem o ser atrás de sua aparição. Embora Sartre pareça abrir mão daquelas oposições que são sobrepostas ao fenômeno, o filósofo ainda se manterá atrelado a outro tipo de dualismo herdado da filosofia moderna, a saber, a dicotomia sujeito-objeto. Com efeito, vê-se aqui a influência do pensamento cartesiano na filosofia sartreana, o que nos autoriza aqui a dizer que “os pressupostos históricos e metafísicos do pensamento de Sartre residem na dicotomia cartesiana de sujeito e objeto, onde a primazia é dada ao sujeito, ou, o que dá no mesmo, à subjetividade do sujeito, que encontra no cogito seu fundamento, e, por conseguinte, à fundamentação do conceito de liberdade” (LIMA, 2009, p. 27, grifo do autor). Certamente Sartre privilegia o cogito, assim como Husserl também o faz, porém sem seguir necessariamente as pegadas de Descartes. Ao considerar o fenômeno como o absoluto, Sartre o designará de relativo-absoluto, isto é, "o fenômeno continua a ser relativo porque o ‘aparecer’ pressupõe em essência alguém a quem aparecer" (SARTRE, 1997, p. 16, grifo do autor). No entanto, Sartre radicalizará a dicotomia cartesiana até às últimas consequências sem recorrer, como Descartes, às noções de substância e Deus. A noção cartesiana de res cogitanscertamente não é assumida na argumentação sartreana em torno do fenômeno de ser.
Essa radicalização da dicotomia cartesiana foi muito bem enfatizada por Gerd Bornheim. Para esse filósofo, “se o itinerário cartesiano que conduz do ‘cogito’ a Deus afigura-se como inviável, o que Sartre faz, em última análise, consiste em inverter o sentido desse itinerário... Isso não quer dizer, contudo, que Sartre abandone a dicotomia cartesiana; ao contrário, ele tenta pensá-la em sua total imanência” (BORNHEIM, 2005, p. 97, grifo do autor). Pode-se dizer que Sartre se detém na análise do fenômeno em sua pura facticidade contingente, o que vem a ser o propósito maior da fenomenologia husserliana . O que importa aqui é que o fenômeno de ser se nos dá em sua certeza, de maneira clara e distinta; nesse caso ele é ontológico, "no sentido em que chamamos de ontológica a prova de santo Anselmo e Descartes" (SARTRE, 1997, p. 20, grifo do autor). O que Sartre entende por prova ontológica reside nos seguintes termos: “a consciência nasce trazida por um ser que não é ela. A consciência não pode fazer com que haja ser, mas, porque há ser, a consciência funda-se, enquanto consciência de si e do ser” (LIMA, 2009, p. 18). Trocando em miúdos, Sartre flerta com a fenomenologia husserliana, porém deixa de lado a “oposição” finito-infinito que a variação eidética promove; e, por sua vez, segue as pegadas do cogito cartesiano sem extrapolar o campo da imanência , isto é, mantendo os pés calcados neste mundo contingente onde os fenômenos se nos dão. A espontaneidade com a qual Sartre adentra os mais variados terrenos da filosofia, quando da elaboração de seu itinerário argumentativo, faz deste pensador uma excelente fonte referencial para a pesquisa filosófica, sobretudo para os neófitos em matéria de filosofia.
Ao admitir o fenômeno de ser como absoluto, isto é, como indicador de si mesmo, Sartre irá dirigir sua investigação para outro questionamento: "se a essência da aparição é um ‘aparecer’ que não se opõe a nenhum ser, eis um verdadeiro problema: o do ser desse aparecer" (SARTRE, 1997, p. 16, grifos do autor). É quando, por sua vez, o pensador de Paris irá interrogar pelo ser do fenômeno.
O ser do fenômeno
A análise sartreana em torno do fenômeno de ser conduziu o filósofo a buscar o ser mesmo do fenômeno. Para delimitar aqui o seu ponto de partida , Sartre irá, mais uma vez, recorrer à fenomenologia husserliana, mais especificamente ao seu conceito de consciência:
(...) Toda consciência, mostrou Husserl, é consciência de alguma coisa. O primeiro passo de uma filosofia deve ser, portanto, expulsar as coisas da consciência e restabelecer a verdadeira relação entre esta e o mundo... Contudo, a condição necessária e suficiente para que a consciência cognoscente seja conhecimento de seu objeto é que seja consciência de si como sendo este conhecimento. Se minha consciência não fosse consciência de ser consciência de mesa, seria consciência desta mesa sem ser consciente de sê-lo, ou, se preferirmos, uma consciência ignorante de si, uma consciência inconsciente - o que é absurdo (SARTRE, 1997, p. 16). Vê-se aqui explicitamente que a definição husserliana de consciência (intencionalidade) é o ponto de partida para o pensador francês engendrar sua análise existencial em torno da busca pelo ser do fenômeno. Em sendo assim, Sartre irá tentar apreender o ser do fenômeno sem cair nas reentrâncias do idealismo e do realismo.
Enquanto "o idealismo ressalta muito a consciência, sua prioridade, sua espontaneidade, sua atividade... o realismo admite dogmaticamente, sem base, de um lado a existência do mundo, e, de outro lado, uma consciência passiva, fechada em si mesma" (LUIJPEN, 1972, p.105). Contra o idealismo, o filósofo francês irá procurar pelo ser do fenômeno partindo de uma perspectiva ontológica, sem submeter o fenômeno de ser aos pressupostos de uma teoria do conhecimento, isto é, ao primado do conhecimento. Nesse sentido, Sartre não admitirá que o ser de um objeto seja medido pelo conhecimento que dele se tem . Aqui, o filósofo francês não irá adotar a velha máxima de George Berkley esse est percipi , isto é, ser é ser percebido:
(...) o que mede o ser da aparição é, com efeito, o fato de que ela aparece. E, tendo limitado a realidade ao fenômeno, podemos dizer que o fenômeno é tal como aparece. Por que então não levar a idéia in extremis e dizer que o ser da aparição é seu aparecer? Apenas uma maneira de escolher palavras novas para revestir o velho esse est percipi de Berkley... Não parece que a célebre fórmula de Berkley possa nos satisfazer ( SARTRE, 1997, p. 21, grifos do autor). Em outras palavras, Sartre propõe que a interpretação do fenômeno de ser em termos gnosiológicos seja substituída e suplantada por uma ontologia radical. Até aqui a noção husserliana de consciência (toda consciência é consciência de algo) tem acompanhado o filósofo francês em sua busca pelo “ser do fenômeno”. No entanto, Sartre não pretende vincular o ser mesmo que se manifesta no fenômeno à consciência que eu tenho dele. Isso, para Sartre, seria tangenciar o idealismo.
Por outro lado, a concepção realista de consciência, como sendo esta uma coisa no mundo dentre outras coisas, como um invólucro fechado em si mesmo, sofrendo passivamente a influência dos objetos que a circundam, parece não satisfazer também à interrogação sartreana em torno do ser do fenômeno. Para Sartre,
(...) o paradoxal não é que haja existências por si, mas sim que só estas existam. Realmente impensável é a existência passiva, ou seja, que se perpetue sem ter a força de se produzir ou conservar... De fato, a consciência "viria" de onde, se pudesse "vir" de alguma coisa? Dos limbos do inconsciente ou do fisiológico. Mas, se perguntarmos como esses limbos do inconsciente podem existir por sua vez, e de onde tiram sua existência, voltaremos ao conceito de existência passiva, ou seja, não poderemos compreender de modo algum como tais dados não-conscientes, que não extraem sua existência de si, podem, não obstante, perpetuá-la, e ainda encontrar força para produzir uma consciência. (Idem, p. 16, grifos do autor). Mais uma vez aqui, a concepção husserliana de consciência - sendo esta definida como consciência de alguma coisa, como transcendência - é o ponto de partida para o pensador francês encetar sua pesquisa em torno do ser do fenômeno. Ao tentar não adotar aqui as perspectivas idealista e realista, respectivamente, Sartre lançará mão do conceito husserliano de consciência, porém sem seguir à risca os passos de seu mestre Husserl.
Conforme exposto no presente artigo, Sartre considera o pensamento do filósofo alemão entremeado ainda de certo idealismo: "Husserl define precisamente a consciência como transcendência. De fato: é sua tese, sua descoberta essencial. Mas, a partir do momento em que faz do noema um irreal, correlato à noese, e cujo esse é um percipi, mostra-se totalmente infiel a seu princípio" (Idem, p. 34, grifos do autor) . Parece-nos aqui que o idealismo que “beira a todo instante” o pensamento husserliano advém dos pressupostos defendidos pelo pensador alemão quando da exposição de seu método da variação eidética. Como já notamos aqui, Sartre parece passar ao largo da “variação” quando analisa o fenômeno de ser. Sustentar a realidade de um objeto nas possíveis variações de perfil que podemos ter sobre ele (nas suas diferentes Abschattungen), bem como distinguir o objeto da percepção de seu noema, como o faz Husserl, não entram no enredo da argumentação sartreana em torno de sua busca pelo ser do fenômeno. Longe disso, Sartre parece ser mais sucinto e defende que “a realidade desta taça consiste em que ela está aí e não é o que eu sou” (Idem, p. 17, grifos do autor) . Em sendo assim, o pensador francês tentará superar as soluções idealista e realista para o problema em torno do ser do fenômeno, e defenderá, por sua vez, que o ser do fenômeno é em si mesmo o que ele é.
Dito de outra forma, a posição sartreana aqui defendida pode ser colocada nos seguintes termos:
(...) A consciência é consciência de alguma coisa: significa que a transcendência é estrutura constitutiva da consciência, quer dizer, a consciência nasce tendo por objeto um ser que ela não é... Dizer que a consciência é consciência de alguma coisa significa que não existe ser para a consciência fora dessa necessidade precisa de ser intuição reveladora de alguma coisa, quer dizer, um ser transcendente... Dizer que a consciência é consciência de alguma coisa é dizer que deve se produzir como revelação-revelada de um ser que ela não é e que se dá como já existente quando ela o revela... O ser que a consciência implica é o ser desta mesa, deste maço de cigarros, desta lâmpada, do mundo em geral. A consciência exige apenas que o ser do que aparece não exista somente enquanto aparece. O ser transfenomenal do que existe para a consciência é, em si mesmo, em si (Idem, p. 34-35, grifos do autor). Portanto, o ser que se nos dá no fenômeno é o ser desta mesa, desta cadeira, desta caneta, desta pilha de livros, etc. O esforço sartreano em busca do ser do fenômeno conduziu o filósofo a considerar o ser do fenômeno como sendo aquilo que ele é e que difere da consciência à qual ele aparece. Diante disso, ao defender que o ser que se nos dá no fenômeno é em-si, sem ter sido constituído na consciência; e ao defender também que a consciência não é algo que sofre passivamente a existência dos objetos, Sartre irá apresentar os dois tipos de seres que irão ocupar de canto a canto as longas páginas de O Ser e o Nada, a saber, o ser Em-si e o ser Para-si.
O ser Em-si e o ser Para-si
Ao analisar o fenômeno de ser, Sartre o considerou como aquilo que aparece em si mesmo. A partir daí, o filósofo passou a interrogar pelo ser mesmo desse aparecer. Não compartilhando com as soluções idealista e realista no que tange à problemática do ser do fenômeno, Sartre o considerou como aquilo mesmo que se mostra à consciência, utilizando-se para isso do conceito de intencionalidade de Husserl, embora fazendo algumas ressalvas ao filósofo alemão. Assim, "partimos da pura aparência e chegamos ao pleno ser" (SARTRE, 1997, p. 35). É quando Sartre irá apresentar dois tipos de seres hauridos de sua análise existencial: o ser Em-si e o ser Para-si. O filósofo irá discorrer sobre esses dois tipos de seres mostrando os modos próprios como eles se dão.
O ser Em-si
Ao definir o ser do fenômeno como sendo o ser tal qual ele nos aparece, Sartre o denominará de ser Em-si (En-soi). O Em-si, nesse sentido, seria o objeto que aparece à consciência. Antes de tudo, é necessário se fazer aqui uma delimitação do conceito de ser Em-si para se evitar possíveis equívocos: o Em-si é todo o ser desprovido de consciência; é aquilo que se mostra à consciência e que dela difere .
A definição sartreana de ser Em-si é um tanto quanto sucinta, embora o conceito de Em-si tenha um papel fundamental na ontologia sartreana: "O ser é. O ser é em si. O ser é o que é" (SARTRE, 1997, p. 40). Trocando em miúdos, o Em-si é todo o amontoado de seres que circundam a consciência (com exceção das outras consciências). Nesse sentido, o Em-si constitui o mundo bruto ante o qual engendramos a nossa existência. Por todos os lados podemos divisar esse tipo de ser que repousa em si mesmo numa adequação plena. Em sendo assim, a definição sartreana de Em-si pode soar num primeiro momento um tanto redundante (o Em-si é o que é). Porém, ao descrever as características que seriam próprias ao ser Em-si, Sartre nos mostra o porquê da singeleza com a qual esse tipo de ser é descrito:
(…) A partir do momento em que existem seres que hão de ser o que são, o fato de ser o que se é não constitui de modo algum característica puramente axiomática: é um princípio contingente do ser-Em-si (…) Designa a opacidade do ser-Em-si. Opacidade que não depende de nossa posição com respeito ao Em-si, no sentido de que seríamos obrigados a apreendê-lo ou observá-lo por estarmos de “fora”. O ser-Em-si não possui um dentro que se oponha a um fora e seja análogo a um juízo, uma lei, uma consciência de si. O Em-si não tem segredos: é maciço. Em certo sentido, podemos designá-lo como síntese. Mas a mais indissolúvel de todas: síntese de si consigo mesmo (Idem, p. 35, grifos do autor).
O ser Em-si, sendo o que é, não mantém nenhum tipo de relação consigo nem com a consciência. Sendo plena positividade, esse tipo de ser é uma completa adequação a si, sem fissuras, sem brechas, é pleno de ponta a ponta. Do mesmo modo o Em-si não comporta atributos tais quais: atividade, passividade, possibilidade, temporalidade, potência, pois estes só podem advir através da consciência (Para-si). Nesse sentido o Em-si é fechado em si mesmo. Dito de outra forma,
(...) O ser-Em-si é o que é; isso significa que, por si mesmo, sequer poderia não ser o que é. É plena positividade. Desconhece, pois, a alteridade; não se coloca jamais como outro a não ser si mesmo; não pode manter relação alguma com o outro. É indefinidamente si mesmo e se esgota em sê-lo; escapa à temporalidade. Ele é, e, quando desmorona, sequer podemos dizer que não é mais. Ou, ao menos, só uma consciência pode tomar consciência dele como já não sendo, precisamente porque essa consciência é temporal. Mas ele não existe como se fosse algo que falta ali onde antes era: a plena positividade de ser se restaurou sobre seu desabamento. Ele era, e agora outros seres são – eis tudo (Idem, p. 39, grifos do autor).
A única “aventura” possível ao Em-si é o mero fato de ele aparecer a uma consciência. Como um ser incriado, ele é o que é para sempre . Nesse sentido, o Em-si é considerado em sua contingência. Sartre não recorrerá a teorias que venham a justificar a existência do Em-si, ou melhor, das coisas em geral. Uma divindade, aos moldes de um “artífice superior”, não seria a causa para a existência desses seres brutos que nos circundam por todos os lados. O Em-si simplesmente é o que é; a partir dele não me é possível deduzir nenhuma lei necessária ou coisa do gênero. É assim, na sua positividade plena e densa, que o ser Em-si se dá sob a ontologia sartreana.
O Em-si é o que é na mais completa contingência; é tudo que pode ser dito . O conceito de Em-si adotado por Sartre será a base de sustentação para o filósofo apresentar um outro tipo de ser que vem a diferir drasticamente daquele, a saber, o ser Para-si, isto é, a consciência.
O ser Para-si
Ao definir o ser Em-si como plena positividade, isto é, como um ser que é o que é, Sartre apresenta outro tipo de ser que vem no encalço do Em-si: o ser Para-si (Pour-soi), ou melhor, a consciência. Para discorrer sobre o Para-si (consciência), o filósofo francês lança mão da noção husserliana de consciência, que define toda consciência como sendo consciência de alguma coisa.
Nesse sentido, a consciência (Para-si) é intencional, isto é, está sempre voltada para um objeto que dela difere:
que toda consciência seja consciência de algo, significa que é constituída originalmente como vazio de tudo, menos do objeto transcendente de que ela é atualmente consciente. O objeto é transcendente, pois está fora dela: não há coincidência entre eles. A consciência é intencional, pois ela só consegue fazer existir um fora, um além da consciência, colocando-se ela própria fora do ser (GILES, 1975, p. 328). A intencionalidade é assim a marca capital da consciência. Antes, porém, para fins elucidativos, é mister apresentar aqui dois aspectos bastante singulares que o Para-si traz em seu bojo. Esses aspectos sintetizam sobremaneira o modo de ser do Para-si, o qual, ver-se-á aqui, difere completamente do modo de ser do Em-si:
a) O nada
A consciência, sendo intencional, mantém-se o tempo todo em relação com seres que dela diferem. Esta mesa, este livro, esta caneta diante de mim, são seres (Em-si) presentes à minha consciência e que dela se encontram separados por um abismo intransponível. O fato de a consciência intencional se saber como não sendo esta mesa que a ela se apresenta bem como não sendo o Outro que está diante de mim, é chamado por Sartre de negação externa e interna, respectivamente.
A negação interna é enfatizada por Sartre na sua análise existencial pelo fato dessa negação estar relacionada à apreensão do Outro pela minha consciência. Dito de outro modo,
a essa relação peculiar, diferente da relação que temos com os objetos, Sartre chama negação interna. A diferença, portanto, deve ser estabelecida entre o modo como eu não sou o objeto e o modo como eu não sou o outro; no primeiro caso, a negação é externa porque o objeto se constitui em meio às outras coisas que eu represento na consciência da exterioridade; no segundo caso, o outro aparece como exterior a mim na consciência que tenho de mim mesmo... A negação é interna porque o outro se constitui como outro si-mesmo pela negação de mim-mesmo: o outro não "é" eu. Mas eu não sou o outro do mesmo modo que não sou a mesa (SILVA, 2004, p.186, grifos do autor). A negação (externa e interna) que o Para-si traz em seu bojo parece ser apenas a maneira de Sartre defender que o Para-si é um tipo de ser que não pode ser considerado aos moldes de um coisa, isto é, um Em-si bruto.
Essa negação que a consciência engendra consigo é o que Sartre chamará de Nada (Néant). O nada (ou não-ser) advém do fato de a consciência não coincidir consigo mesma: eu tenho consciência deste livro como um objeto que difere de mim, ou melhor, eu experimento o fato de não-ser este livro que está sobre a mesa. Como é da própria constituição da consciência existir como sendo consciência de alguma coisa, dessa relação íntima entre Para-si e Em-si emerge o não-ser no seio do Para-si. Em sendo assim, pode-se dizer que “o para-si porta o nada em seu cerne” ( BEAUVOIR, 2005, p. 31, grifo nosso). Contudo, para Sartre, o nada que o Para-si traz em seu bojo não pode ser tomado como mera qualidade sobreposta ao Para-si. Com efeito, o nada é ininterruptamente “nadificado” através do modo próprio de o Para-si engendrar sua existência. O caráter intencional da consciência (Para-si) já promove a cada instante essa “nadificação” (néantisation). Em termos alegóricos, a nadificação perpétua do Para-si pode ser comparada à nossa sombra projetada no chão pela luz do sol. Ao andarmos, “carregamos” conosco nossa sombra projetada no chão, embora nos saibamos como “não sendo” esta silhueta que me acompanha e a mim se assemelha.
Para Sartre, “o nada não pode nadificar-se a não ser sobre um fundo de ser: se um nada pode existir, não é antes ou depois do ser, nem de modo geral, fora do ser, mas no bojo do ser, em seu coração, como um verme” (SARTRE, 1997, p. 64). Dito de outra forma, o nada (não-ser) que brota no seio do Para-si quando da sua relação com o Em-si que lhe circunda não é fruto de simples juízos formais negativos tais quais: “A não é B”, “Y não é Z”. Longe disso, o não-ser (o nada) vem ao ser através de minhas relações concretas com o Em-si bruto que me ladeia. Em sendo assim, o filósofo francês confere um estatuto ontológico ao não-ser, isto é, o nada é nadificado sobre um fundo de ser. E, diante disso, podemos concluir com Sartre que o Para-si é o ser pelo qual o nada vem ao mundo.
A negação que o Para-si engendra consigo vem aqui, por sua vez, mostrar o posicionamento filosófico de Sartre em torno da questão do conhecimento. O conhecimento, para o filósofo francês, é tomado em termos de "presença a..." , isto é, as coisas se apresentam à consciência e dela diferem. Nesse sentido, "conhecer implica, antes do mais, o dar-se conta de que o objeto não é a consciência e que a consciência não é o objeto... Para Sartre, em resumo, o conhecimento parece constituir-se essencialmente como atividade negadora" (MORAIVA, 1985, p. 49-50). A imbricação entre a atividade negadora do Para-si e a questão do conhecimento certamente serviria de mote para uma vasta discussão no terreno da epistemologia. No entanto, iremos passar ao largo desta questão para não sairmos do foco principal do presente artigo. Por hora, parece-nos suficiente aqui apenas mencionar a perspectiva sartreana concernente à questão do conhecimento (conhecer é estar presente a algo que de mim difere). Não obstante, é notável aqui a radicalização que Sartre promove na dicotomia sujeito-objeto.
Outra experiência na qual o Para-si se depara com o nada seria a interrogação. Na atitude interrogativa, segundo Sartre, há dois tipos de não-seres implícitos, a saber, o não-ser de saber (do interrogador) e a possibilidade da resposta negativa (no ser interrogado):
(...) com relação a isso, aquele que interroga, pelo fato mesmo de interrogar, fica em estado de não-determinação: não sabe se a resposta será afirmativa ou negativa. Assim, a interrogação é uma ponte lançada entre dois não-seres: o não-ser do saber, no homem, e a possibilidade de não-ser, no ser transcendente... Além disso, destruir a realidade da negação é o mesmo que fazer desvanecer a realidade da resposta. Esta, com efeito, é dada pelo próprio ser; logo, é ele que me revela a negação. Para o investigador existe, portanto, a possibilidade permanente e objetiva de uma resposta negativa (SARTRE, 1997, p. 45) .
Ademais, Sartre defende que a atitude interrogativa não deve ser considerada como que restrita ao âmbito da intersubjetividade, isto é, à relação entre homens. O Em-si, na sua crueza contingente, também pode ser interrogado pelo Para-si; e dessa interrogação, por sua vez, pode brotar o não-ser em termos concretos, jorrando do Em-si interrogado. Dito de outra forma,
(...) o que o investigador questiona no ser não é necessariamente um homem: tal concepção da interrogação, tornando-a um fenômeno intersubjetivo, descola-a do ser a que adere e deixa-a pairando no ar, como pura modalidade de diálogo. Deve-se entender que a interrogação dialogada, ao contrário, é uma espécie particular do gênero “interrogação” e que o ser interrogado não é em primeiro lugar um ser pensante: se meu carro sofre uma pane, interrogarei o carburador, as velas, etc., se meu relógio pára, posso perguntar ao relojoeiro sobre as causas do defeito, mas ele, por sua vez, interrogará os diversos mecanismos da peça. O que espero do carburador, o que o relojoeiro espera das engrenagens do relógio, não é um juízo, mas uma revelação de ser com base na qual possa emitir um juízo. E se espero uma revelação do ser, significa que estou preparado ao mesmo tempo para a eventualidade de um não-ser. Se interrogo o carburador, considero possível que no carburador não haja nada. Portanto, minha interrogação encerra por natureza certa compreensão pré-judicativa do não-ser; em si, é uma relação do ser com o não-ser, sobre o fundo da transcendência original, quer dizer, uma relação do ser com o ser (Idem, p. 48, grifos do autor). Portanto, é do próprio ser concreto que o nada vem à tona. E o Para-si (consciência), como já vimos, é o ser pelo qual o nada vem ao mundo. A consciência seria essa fenda no ser pela qual o nada (não-ser) jorra incessantemente. É oportuno relembrar aqui que Sartre acentua que o nada não está para a consciência como uma espécie de “qualidade”, pois isso poderia denotar que a consciência é uma coisa, aos moldes do Em-si. O nada é incessantemente nadificado através do modo próprio como a consciência se nos dá, isto é, através da própria espontaneidade da consciência.
A espontaneidade da consciência “explica-se como um modo de recusar-se perpetuamente a si própria, como fuga constante de si, e essa fuga constitui a razão mesma de ser da espontaneidade. Não há um instante no qual se possa afirmar que o para-si é; o para-si, através de sua espontaneidade, não pode adquirir a estabilidade do ser, justamente porque ele nunca é” (BORNHEIM, 2005, p. 70). Dito de outra forma, a “espontaneidade” com a qual a consciência engendra seu modo de ser pode ser traduzida pelo seu caráter intencional, isto é, pelo seu modo de ser que desliza em si mesmo e nunca pode coagular-se num Em-si maciço e pleno. A consciência se nos dá na forma de um jorro incessante o qual nunca pode ser estagnado; ela seria uma “descompressão de ser” . Daí o sentido de “fuga de si” que Bornheim precisamente confere ao modo de ser do Para-si (consciência).
Ainda no que se refere à questão do nada (não-ser), Sartre lança mão de mais uma vivência onde o nada pode ser apreendido, a saber, sua descrição da destruição e da fragilidade. Na experiência da destruição, segundo o filósofo, pode-se ouvir o “eco” do não-ser brotando dos escombros. Mais uma vez aqui, é sobre um fundo de ser que o nada se nos dá. No exemplo a seguir, a propósito, pode-se perceber a influência das circunstâncias históricas sob as quais O Ser e o Nada foi escrito: a Segunda Guerra Mundial. Publicado em 1943, o referido ensaio já vinha sendo rascunhado desde 1939, quando Sartre foi convocado para servir ao exército francês como soldado meteorologista . Contexto histórico à parte, eis mais um exemplo do autor para identificar o eclodir do nada no seio do ser:
(...) O soldado de artilharia a quem se determina uma meta aponta seu canhão nessa direção, com exclusão de todas as outras. Mas ainda assim, isso nada seria se o ser não tivesse sido descoberto como frágil. Que é a fragilidade senão certa probabilidade de não-ser para um ser em circunstâncias determinadas? Um ser é frágil se traz em seu ser uma possibilidade definida de não-ser (...) É assim o homem que torna as cidades destrutíveis, precisamente porque as coloca como frágeis e preciosas e toma um conjunto de medidas de proteção quanto a elas. Portanto, é necessário reconhecer que a destruição é essencialmente humana e é o homem que destrói suas cidades por meio dos sismos ou diretamente, destrói suas embarcações por meio dos ciclones ou diretamente. Ao mesmo tempo, porém, a destruição implica uma compreensão pré-judicativa do nada enquanto tal e uma conduta diante do nada. Além do que, a destruição, embora chegando ao ser pelo homem, é um fato objetivo e não um pensamento (SARTRE, 1997, p. 49, grifos do autor). No exemplo aqui citado (a destruição e a fragilidade) Sartre usa a mesma argumentação utilizada na questão da interrogação. A destruição só vem à tona porque há uma pré-compreensão da possibilidade de um determinado ser vir a não-ser mais. A fragilidade que vem à tona no ser, exteriorizada no ato da destruição, não poderia ter tal significado se não compreendêssemos que há um apelo do nada (não-ser) no coração do próprio ser. O sentido da destruição de um alvo não está simplesmente no ato mecânico da própria destruição (nas ruínas de uma construção). Segundo o pensador francês, é porque o homem tem uma pré-compreensão da “fragilidade” de uma determinada edificação que se pode falar em destruição. Essa fragilidade que emerge dos seres brutos que nos circundam não seria fruto de um mero pensamento. Ao contrário, o nada que ecoa nos escombros de uma destruição é concreto e “objetivo”, isto é, ele se nos manifesta em carne e osso. Daí, mais uma vez, a posição defendida por Sartre a respeito do não-ser (nada), a saber, a de lhe conferir um estatuto ontológico. Após as precedentes considerações a respeito do nada, faz-se necessária ainda a abordagem de outro aspecto da consciência, a saber, a consciência como consciência refletida (imediata) e consciência reflexiva.
b) Consciência refletida e consciência reflexiva
Ao definir o Para-si (consciência) como intencionalidade, Sartre esmiúça o modo de ser próprio da consciência no sentido de se tentar apreender suas estruturas. Nessa análise, o pensador francês apresenta a consciência sob duas “faces”, isto é, a consciência se nos dá como consciência refletida (consciência imediata) e consciência reflexiva. Vale ressaltar, de antemão, que o filósofo não pretende aqui decompor a consciência em dois tipos de consciências independentes. Trata-se apenas de um modo próprio e contingente de a consciência existir.
A consciência refletida (réfléchie) é a consciência imediata do objeto dada pela percepção. A percepção imediata desta cadeira diante de mim é uma consciência não-posicional, isto é, não-reflexiva. Só a partir do momento que eu posiciono essa consciência imediata do objeto é que se dá a reflexão, isto é, a consciência reflexiva:
(…) Existe uma consciência implícita, não-expressa, não-temática, não-tética, não-reflexiva, que consiste na simples presença a meu existir. Chama-se “consciência-conta”, “consciência-prazer”, “consciência-amor”, “consciência-percepção”, “consciência-ação”, e assim por diante, sem ser a consciência de contar, de prazer, de amor, de percepção, de ação. Originalmente não há consciência de si, mas a consciência-de-alguma-coisa está junto com a consciência-(de)-si (LUIJPEN, 1972, p.105). A consciência refletida (imediata) seria o modo próprio como a consciência se nos dá espontaneamente, a saber, o modo de ser que deriva de seu caráter intencional (de ser consciência de algo).
Para Sartre, a consciência imediata (refletida) seria a condição mesma da própria reflexão. Dito de outra forma, há uma consciência imediata (não-reflexiva), a qual, como já foi visto, é originariamente intencional, e uma “consciência de consciência”. Ao perceber esta cadeira eu tenho consciência de ter consciência desta cadeira diante de mim junto à janela. Trocando em miúdos:
a consciência reflexiva posiciona como seu objeto a consciência refletida: no ato da reflexão (réflexion), emito juízos sobre a consciência refletida, envergonho-me ou orgulho-me dela, aceito-a ou a recuso, etc. A consciência imediata de perceber não me permite julgar, querer, envergonhar-me (…) É da própria natureza da consciência existir “em círculo”. O que se pode exprimir assim: toda existência consciente existe como consciência de existir (…) Esta consciência (de) si não deve ser considerada uma nova consciência, mas o único modo de existência possível para uma consciência de alguma coisa. Assim como um objeto extenso está obrigado a existir segundo as três dimensões, também uma intenção, um prazer, uma dor, não poderiam existir exceto como consciência imediata (de) si mesmos (SARTRE, 1997, p. 24-25, grifos do autor).
Sartre faz uso de parênteses para se referir à consciência (de) si no intuito de se evitar uma fundamentação gnosiológica para a consciência. Foi visto aqui que o filósofo francês não adota a perspectiva que define o fenômeno de ser em termos de conhecimento. Nesse sentido, a relação da consciência consigo mesma (consciência (de) consciência) não é considerada aqui como uma relação cognitiva de si a si; essa relação é imediata e dá-se no seio do modo próprio e singular como a consciência se nos dá. Dito isso, “não há primazia da reflexão sobre a consciência refletida: esta não é revelada a si por aquela. Ao contrário, a consciência não-reflexiva torna possível a reflexão: existe um cogito pré-reflexivo que é condição do cogito cartesiano” (Idem, p. 24). Ao apresentar a consciência sob as rubricas de consciência refletida (imediata) e consciência reflexiva, Sartre apenas disseca as estruturas da consciência a fim de apreender o modo original como ela se nos dá. Reiterando aqui, as consciências refletida e imediata dizem respeito a uma mesma consciência que se dá de uma só vez.
As abordagens precedentes a respeito do Para-si nos autoriza aqui a defini-lo como um tipo de ser que difere radicalmente do Em-si em termos de modo de ser. Enquanto o Em-si é plena adequação a si, de canto a canto, o Para-si, com seu caráter intencional, mantém sempre uma relação de distanciamento consigo mesmo. Em sendo assim, o Para-si engendra a sua existência sem trazer consigo aquela adequação a si que o ser Em-si traz no seu bojo. Essa fissura na densidade opaca do Em-si é a consciência.
Nas definições sartreanas de ser-Em-si e ser-Para-si pode-se notar alguns vestígios da filosofia platônica, pois “o ser em-si de Sartre tem a peculiaridade curiosa de, embora permanecendo radicalmente contingente, assumir duas propriedades tradicionais do Ser platônico: a intemporalidade e a imutabilidade” (OLSON, 1970, p. 57). A propósito, Gerd Bornheim também defende que a filosofia sartreana apresenta traços platônicos. Segundo Bornheim, o fato de o Para-si extrair o sentido de seu ser a partir de sua relação com o Em-si que o circunda por todos os lados nos faz lembrar a teoria platônica da participação, onde a realidade sensível (cotidiana) se sustenta a partir de uma cópia imperfeita da realidade das Ideias. Assim, “em Platão, a presença da Ideia empresta densidade ontológica àquilo que participa – o outro que não a Ideia tem ser na medida em que participa da Ideia; em Sartre, a presença do Em-si instaura o ser do Para-si – o outro que não o Em-si tem ser na medida em que tende ao Em-si” (BORNHEIM, 2005, p. 186-187) . Nesse sentido, a ontologia sartreana nos revela esse singular paradoxo: o Em-si é bruto, maciço, plena positividade, “incomunicável”. No entanto, é a partir dele que o Para-si instaura um sentido para si mesmo e para o mundo que o circunda. É como se o Para-si “tendesse” constantemente para o Em-si no sentido de nele se ancorar. Uma vez que a consciência intencional é desprovida de conteúdos, só lhe resta “sustentar” o seu ser no modo mesmo de sua relação nadificadora com o Em-si. Por só poder existir como consciência de algo e por não ser o fundamento de si mesmo, o Para-si tende a cair constantemente para o ser Em-si. Ademais, Sartre defende que o projeto ideal do Para-si é possuir o status ontológico de ser Em-si, mas isso seria tema para outro artigo.
Conclusão
Partindo da fenomenologia de Husserl, Sartre desenvolve sua ontologia, embora sempre faça ressalvas ao mestre alemão. O filósofo francês constrói sua ontologia numa tentativa de se superar o idealismo e o realismo. Nesse sentido, o mundo não seria resultado de minha subjetividade; por sua vez, a consciência não seria um recipiente fechado em si próprio que seria “afetada” passivamente pelo mundo circundante. As noções sartreanas de ser Em-si e ser Para-si sintetizam o esforço do pensador francês em tentar superar sobretudo as teias de idealismo que circundavam a filosofia de seu mestre Husserl. A partir de sua ontologia fenomenológica, Sartre preparará o caminho para desenvolver o seu célebre conceito de liberdade. Mas isso seria tema para outro artigo.
Referências bibliográficas
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1 “Sartre não admite a distinção entre númeno e fenômeno. Por trás do ser do fenômeno, não se oculta ser algum numenal” DIAMANTINO MARTINS, S.J. Existencialismo. Braga: Livraria Cruz, 1955, p. 24-25.
2 GONÇALVES, R.R., GARCIA, F.A.F., DANTAS, J.B., EWALD, A.P. “Merleau-Ponty, Sartre e Heidegger: três grandes filósofos” em: Estudos e Pesquisas em Psicologia, UERJ, RJ, Ano 8, N.2, 1º Semestre de 2008, p. 417.
3 Sartre critica Husserl pelo fato de o pensador alemão ter ficado “preso” ao cogito cartesiano, mais especificamente à descrição da aparência das coisas à consciência. Para o filósofo francês, “Husserl permaneceu receosamente no plano da descrição funcional. Por isso nunca ultrapassou a pura descrição da aparência enquanto tal, encerrou-se no cogito, e merece ser chamado, apesar de seus protestos, mais de fenomenista que de fenomenólogo; e seu fenomenismo beira a toda hora o idealismo kantiano” SARTRE, 1997, p. 121.
4 “(...) É a partir de si mesma que a consciência se determina, recusando, desta forma, toda perspectiva de definição a partir de uma ... substância. (… ) A consciência é presença no mundo e se define por negar-se a ser substância” LIMA, W.M. Lições sobre Sartre. Maceió: Edufal, 2009, p. 31, grifos nossos.
5 “(...) Phenomenology... does not expect to arrive to an understanding of man and the world from any starting point other than that of their ‘facticity’” MERLEAU-PONTY, 1962, p. VII, grifo do autor.
6 Dentre os três significados filosóficos que o termo imanência comporta, destacamos aqui o 3º deles, a saber, “resolução da realidade na consciência” (Cf. ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 540). Contudo, não pretendemos defender aqui que Sartre assuma uma posição idealista ao tratar do fenômeno de ser (pois algumas correntes idealistas adotam o 3º significado do termo filosófico aqui em destaque). Como se verá no presente artigo, Sartre tenta superar a solução idealista concernente à questão do fenômeno.
7 “(...) en efecto, la consciencia se define por la intencionalidad...” SARTRE, J-P. La Trascendencia del Ego. Traducción de Oscar Masotta, Ediciones Calden, 1982, p. 18.
8 “É importante essa ressalva pois demonstra mais uma vez como Sartre se coloca contra o idealismo, pois o objeto não se encontra somente na consciência como aparição, mas lá fora, no mundo, e por isso independe da consciência” WELTMAN, M. “Intencionalidade e Cisão Ontológica do Para-si e do Em-si em Sartre” em: Ensaios sobre Filosofia Francesa Contemporânea. Pinto-Gentil-Ferraz-Piva (Orgs.). Alameda: São Paulo, 2009, p. 204.
9 “(...) Assim me é impossível conceber no pensamento uma coisa sensível ou objeto distinto da sensação ou percepção dele” BERKELEY, G. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1980, p. 14 .
10 “(...) O ato de ter consciência é chamado noese, nas Ideias, o objeto intencional noema, e o noema nunca é constitutivo real da consciência; embora considerada como mero cogitatum, uma árvore não está contida realmente na percepção (no ato de perceber), assim como não faz parte do perceber a árvore da realidade... O que significa: assim como seria inconcebível atribuir ramos e folhas ao meu ato de perceber, também é inconcebível atribuir a tal ato ramos e folhas percebidas; o ser percebido (ou imaginado ou pensado) não é uma relação de inerência física” ROVIGHI, S.V. História da Filosofia Contemporânea – Do século XIX à Neoescolástica. São Paulo: Edições Loyola, 1999, p. 374.
11 “(...) La réalité de cette tasse, c'est qu'elle est là et qu'elle n'est pas moi” SARTRE, J-P. L'être et le Néant. Paris: Gallimard, 1955, p. 13.
12 “ (…) I suppose that it is accurate to say loosely that being-in-itself is nonconscious being and that being-for-itself is conscious being” BARNES, H.E. “Sartre's Ontology: the Revealing and Making of Being” in: The Cambridge Companion to Sartre. Cambridge: Cambridge University Press, 1994, p. 15.
13 “(...) Du moment qu'il exist des êtres qui ont à être ce qu'ils sont, le fait d'être ce qu'on
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