Schelling pensava que, em antecipação à própria filosofia, a intuição artística pode reconstruir o absoluto. Partindo da consciência, ou seja, do sujeito, na concepção artística de uma obra, para a realização, para a concretude, esta obra segundo suas idéias e sentimentos da forma que é como se esta obra houvesse emergido da própria natureza. Entendo com isso que o escultor ao observar o bloco de mármore, tosco por natureza, unindo as forças dos seus braços com sua idéia e seu sentimento, faz emergir a escultura mimética que se velava sobre o excesso de pedra. O que o escultor faz é ordenar a matéria em desconsoância para um propósito belo.
O homem, até então, pôde exercer o papel de Demiurgo, ao menos no que concerne ao mundo das artes, como artista era Deus, que imitava a natureza com igual perfeição, mas não tão Deus como o próprio Deus que tirava as formas das ideias, copiou o original daquilo que o artista copia da cópia.
Essa comparação entre o artista e Deus ou Demiurgo só é possível se considerarmos, como os gregos, que a matéria é eterna, logo, despir-nos da concepção judaica de criação.
Platão quem falou a primeira vez em Demiurgo, entendia o universo em seu primeiro momento como a matéria disforme – por mim ilustrada como o bloco de mármore tosco – e as idéias, perfeitas por excelência – por mim identificada com a intuição artística proposta por Schelling. Entre as idéias e a matéria bruta há Deus, o Demiurgo, quem imprime as idéias na matéria disforme, formando-a como a conhecemos: a natureza. Identifico o Demiurgo com o artista, para esta comparação.
Houve até nós uma diferença determinante entre Deus e o homem, a de que por mais perfeitas as formas criadas pelos artistas, não havia meios que os fizessem dotar de vida, de razão ou de sensibilidade suas obras. São objetos. Objetos de arte. Objetos não possuem vida. Aí havia segurança.
Contudo, em nosso tempo abrimos uma caixa-de-pandora ao avançarmos sem freios éticos nossa ciência, que está deveras mais evoluída do que nossas concepções sobre conduta. Podemos hoje ser nós mesmos os Demiurgos de nosso futuro, na medida em que aprendemos a manipular as sementes da vida no bojo de nossos laboratórios, como qualquer artista em seu ateliê. Destruímos o que era lúdico em Deus quando usurpamo-nos de seu papel como o filho ingrato que mata seu pai para obter sua propriedade uma vez que poder usufruí-la não era o bastante, e era preciso tornar-se dono.
Na nossa maneira sempre errante, iludimo-nos pensando que nos elevamos à altura de Deus quando aprendemos a controlar e a criar a vida, sendo que em realidade o que fizemos foi rebaixar Deus à nossa humanidade sempre superável.
Conseguimos! Conseguimos superar Deus e vamos conseguir de uma vez por todas instaurar nossa própria ordem no cósmos. Antes o influenciáva-mos, a partir de agora vamos dominá-lo por completo.
Nós provamos para nós mesmos. Mas provamos o que? Provamos nossa eterna infância, nosso eterno ciúmes e nossa eterna limitação. Limitação material? Não, limitação emocional.
Será mesmo que podemos substituir Deus? Será mesmo que temos a capacidade que nossa arrogância nos outorga? Ou seremos como o escorpião que pica a sí próprio para agonizar seus ultimos minutos em arrependimento vão?
Na busca da perfeição – que sequer pode existir aonde nós existimos – na busca de um ideal matamos a própria Idéia. Fizemo-nos assassinos órfãos hoje, para que no futuro sejamos órfãos assassinos.
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