MÁQUINAS, ASTÚCIA, PAIXÃO: SOBRE A GÊNESE DA SOCIEDADE CIVIL EM HEGEL

 

1. Não é fácil falar de Hegel sem termos a impressão de dizer ou de ouvir a repetição de coisas já conhecidas. Procurarei - enquanto é possível - evitar este recíproco embaraço aplicando ao texto hegeliano "reagentes", provocando assim uma coloração de sentido em contato com questões que só parcialmente se situam no horizonte problemático de Hegel. Gostaria, pois, não só de produzir um efeito salutar de estranhamento diante das interpretações correntes, mas também obrigar alguns tácitos pressupostos da filosofia hegeliana a manifestarem-se nos seus limites históricos.

O primeiro destes reagentes é dado pelo conceito de máquina como astúcia, que se encontra em Hegel desde os anos de Jena. Ele tem pré-história muito remota, que merece ser analisada para entendermos as suas diversas implicações. Originalmente o termo m h c a n h (mechané) significa, precisamente, "astúcia", "engano", "artifício", e nesta acepção comparece já na Ilíade (VIII, 177); apenas mais tarde (ao lado das conotações de "uso apropriado de um instrumento" e de "máquina teatral", de que provém a expressão q e o z e p i m h c a n h z , (deus ex machina) passa a designar a "máquina" em geral, e em particular a máquina simples - alavanca, cunha, plano inclinado, rosca - a máquina de guerra e o automa. A mecânica, ciência das máquinas, nasce com esta marca distintiva: ela serve para a construção de seres artificiais, de armadilhas estendidas à natureza para lhe capturar a energia e realizar nela uma retorsão, uma mudança de direção. Assim, Arquitas, que segundo a tradição foi o primeiro a compor um tratado de mecânica (Dióg. Laércio, VIII, 82-3), é também o inventor de um a pomba mecânica de madeira (Aul. Gell., Noct. Att.., X, 12, 9), capaz de desafiar a tendência dos objetos pesados a cair para baixo. Da mesma maneira, uma alavanca ergue, com esforço mínimo, grandes pesos, e uma cunha parte enormes troncos de árvore ou pedras. Nas Quaestiones mecchanicae (atribuídas por muito tempo a Aristóteles, mas obra de um sucessor seu na direção da Escola, talvez obra de Estratão o Físico), afirma-se claramente que muitas coisas maravilhosas acontecem segundo a natureza, enquanto outras, contra a natureza, p a r a ju s i n , são produzidas pela t e c n h , em benefício do homem. De fato, quando a natureza é contrária à nossa utilidade, conseguimos com o artifício dominá-la exatamente naquilo em que somos por ela vencidos. É este o caso das artes mecânicas - o domínio da astúcia - as quais, por isso, não fazem parte da física, que se ocupa do que ocorre segundo a natureza. No vasto debate sobre a relação entre j u s i z e n o m o z (natureza e lei), a mecânica põe-se decididamente como anti-natureza, desde as suas míticas origens em Dédalo e Ícaro, enquanto a medicina - conforme aparece, por exemplo, no De arte e no De victu do Corpus Hippocraticum - apresenta-se já como sujeição e imitação da natureza . A mecânica apresenta portanto o caráter de excepcionalidade, põe a natureza em contradição consigo mesma, suspendendo o seu curso espontâneo. Sob este aspecto, é produção de objetos admiráveis, J a u m a s i o u r g i a ,como os fabricados por Heron e descritos no p e r i a u t o m a t o p o i h t i c h z . Ela aplica-se sim a fins militares e sociais (com a construção de máquinas de guerra ou de aparelhos para levantar pesos, de esferas ou de relógios de água), mas conserva substancialmente em si um elemento lúdico, ilusionista, de derrota da natureza, como nos jogos de espelhos descritos pelo mesmo Heron na Catoptrica, mediante os quais é possível vermo-nos a nós mesmos de cabeça para baixo e com três olhos e dois narizes. A natureza é enganada com a surpresa, colhendo o momento oportuno, aquele K a i r o z , representado pelos gregos como jovem com longo topete mas com a cabeça calva na parte posterior (imagem esta que foi retomada por Maquiavel para representar a Fortuna). A força do vento é represada pelas velas das naves quando a situação é favorável, mas quando o vento é forte demais, as velas são recolhidas; a elasticidade da madeira, no arco e na tormenta, é exigida ao máximo até ao momento em que a flecha ou o projétil são disparados, e assim por diante. Mas a natureza ou os deuses podem vingar-se às vezes destes vexames e podem punir quem ousa. Então o calor do sol funde automaticamente a cera das asas de Ícaro ou os infortúnios no trabalho abatem-se sobre os habitantes de Cnido. Eles são réus de terem querido transformar a sua península numa ilha, mediante a escavação de um canal. Durante a execução da obra, lascas de pedra atingem continuamente os operários, sobretudo nos olhos, a ponto de se dever recorrer ao oráculo de Delfos para se conhecer o motivo da cólera divina. E Pítias responde: "Não fortifiqueis o istmo nem caveis canais; pois, se o tivesse querido, o próprio Zeus teria feito do vosso país uma ilha" (HEROD., I, 174). A construção de máquinas - assim como em cada alteração exagerada do equilíbrio entre homem e natureza - aparece tendencialmente como engano perpetrado à divindade, semelhante ao furto do fogo efetuado pelo "astuto" Prometeu. A mecânica apresenta-se como procedimento sofístico, com o qual um argumento fraco é capaz de derrotar argumento mais forte, de fazer troça do argumento oposto (recorde-se que nas Quaestiones mechanicae e noutros textos são as virtudes do círculo, este admirável ente sem fim nem princípio, que explica a potência da alavanca e de todas as outras máquinas simples derivadas e que realizam a retorsão). Parece maravilhoso aquilo que não se conhece: exatamente por isso as artes mecânicas apresentam-se como operações contra a natureza ou como brinquedos milagrosos. No mundo antigo, as máquinas: 1) multiplicam diretamente a energia humana ou animal, e então são socialmente utilizáveis, ou então 2) servem-se das energias não humanas ou animais (as máquinas pneumáticas, movidas por contrapesos e por sistemas de rodas), e assim continuam sendo simples brinquedos ou J a u m a s i a . O limite histórico do uso da energia no mundo antigo (com a única exceção tardia, do moinho movido à água do período imperial romano) consiste em que se pode desfrutar só daquelas fontes de energia capazes de obedecer às ordens e capazes em certa medida de entendê-las, ou seja, os escravos e os animais domésticos. As outras forças mudas e surdas permanecem produtivamente inoperantes e a "natureza" não substitui geralmente o homem e o animal no fornecimento de energia. A ju s i z (natureza) assume, portanto, o aspecto de um Proteu misterioso, que pode ser capturado só com a astúcia, mas cuja íntima essência não se compreende. Era, de fato, impossível para os cientistas gregos construírem máquinas recorrendo exclusivamente ao cálculo, ao projeto; sempre era necessário o recurso à experiência, às provas práticas, para que fossem capazes de funcionar (por este motivo a mecânica não era considerada verdadeira ciência). Era necessário, noutros termos, recorrer àquilo que foge à legislação do l o g o z , à previsão, a uma ordem evidente. A essência do movimento (um dos mais característicos quebra-cabeças do pensamento grego) era, por conseguinte, obscura, remetendo a forças "demoníacas".

No pathos posto por Aristóteles no escravo como " instrumento vivo" (Eth.Nic., 1161 a), "instrumento que tem precedência sobre outros instrumentos" (Pol., 1255 b), "parte do corpo viva mas separada" do senhor (Pol., 1255 b), nota-se também a urgente necessidade social, para o mundo clássico, de apostar sobretudo em indivíduos comandáveis com certa docilidade, capazes de entender e de executar as ordens, de fazer as vezes de "órgão" do senhor. O escravo inanimado, ou seja, o verdadeiro instrumento, e o instrumento vivo, a saber, o escravo, pressupõem um guia externo, separado, para o seu uso. O escravo, enquanto prolongamento do corpo do senhor na esfera das coisas, é semelhante à mão, também ela "instrumento dos instrumentos" (De part. an., 687 a; De anima, 432 a). Contra Anaxágoras e contra qualquer insídia ao primado do l o g o z , Aristóteles afirma que o homem não é o mais inteligente dos animais pelo fato de ter mãos, mas tem mãos porque é o mais inteligente, pois "o mais inteligente deve ser aquele que sabe oportunamente servir-se do maior número de instrumentos" (De part. an., 687 a). O universo de Aristóteles é, sob este aspecto, um mundo de instrumentos, de articulações do movimento, governado pelo "saber": os instrumentos animados e inanimados por si sós seriam inúteis, não alcançariam os seus objetivos; é necessário que se submetam a um guia, a um senhor, que lhes dê direção e sentido. O senhor, assim como a máquina, usa as forças físicas para as modificar, fornecendo-lhes a inteligência. No homem, que não é nem animal nem deus, força e inteligência não podem, sem prejuízo recíproco, permanecer estranhos, mas devem unir-se simbioticamente, formar um casal em que o primeiro elemento é dominado pelo segundo, mas isso também no interesse do primeiro. O escravo, com efeito, não saberia por si só organizar-se em comunidade, para os fins de uma vida boa, já que não pode existir "um Estado dos escravos e dos outros animais" (Pol.,1280 a). Devido a uma insuficiência da natureza, que nem sempre consegue produzir indivíduos perfeitos no seu gênero (Pol., 1255 b; Phys., 199 a-b), falta ao escravo a plenitude do l o g o z e da capacidade deliberativa. Ele deve, portanto, ser governado por outro, o qual (livre, graças ao escravo, para não ocupar-se com as "coisas necessárias" à vida) pode desenvolver as capacidades de inteligência e de virtude política que o colocam, precisamente, em condição de comandar.

2. Na Idade Moderna - o tempo me obriga a ser esquemático - prevalece, já com a retomada da tradição hermética, a idéia da grandeza e da dignidade do homem, que recupera, após a queda, o domínio que foi confiado por Deus sobre a natureza: ele, "vice-rei" do Altíssimo, agora tem direito de torturar a natureza, de fazê-la pôr-se de joelhos para que confesse seus segredos. A natureza torna-se assim propriedade do homem, o senhor por delegação, e a experimentação - como acontece em Bacon - apresenta-se, junto com as artes mecânicas, em vestes inquisitoriais: "preparamos uma história não apenas da natureza livre e solta (que flui espontaneamente e leva adiante a sua obra), como no caso dos corpos celestes, dos meteoros, da terra e do mar, dos minerais, das plantas e dos animais; mas principalmente, uma história da natureza constrita e atormentada, que assim é deslocada à força do seu estado ordinário, e é premida e forjada mediante a arte e o ministério humano. Portanto, introduzamos nela todas as experimentações das artes mecânicas, todas as da parte operativa das artes liberais, todas aquelas características de muitas atividades práticas que ainda não se constituíram como artes (pelo menos no que nos foi possível pesquisar e no que tem referência ao nosso objetivo). E mais, para dizermos realmente como estão as coisas, sem termos em conta alguma a altivez dos homens e as aparências enganosas, contamos muito mais sobre esta parte do que sobre a precedente para obter ajuda; de fato, a natureza das coisas revela-se muito mais quando é maltratada pela arte do que quando é deixada em liberdade". Neste mesmo sentido, Bacon interpreta o mito de Proteu: "Quem queria servir-se dele em qualquer ocasião, não podia fazê-lo senão ligando-o ou algemando-o. Ele, por sua vez, querendo libertar-se, costumava transformar-se de todas as maneiras e nos aspectos mais estranhos das coisas: em fogo, em água, em animal, até que, por último, voltava ao seu aspecto original... O sentido da fábula parece dizer respeito aos mistérios da natureza e às condições da matéria... De fato, a universalidade das coisas, com a ordinária disposição e estrutura das espécies, é o aspecto que assume a matéria quando é livre e sem adversário com seu rebanho das coisas materiais. Da mesma maneira, se algum esperto ministro da natureza violenta a matéria maltratando-a e pressionando-a com este deliberado propósito de a reduzir ao nada inicial, então a matéria (dado que o aniquilamento ou a verdadeira destruição não pode ser efetuada senão pela onipotência de Deus), colocada em tal necessidade, se transforma de várias maneiras e em admiráveis transformações; assim, no final, muda-se como num círculo e, efetuado todo o giro, se a violência continua, quase se reconstitui. O modo da constrição ou o vínculo mais fácil e seguro consiste em agarrar a matéria com as algemas, ou seja, pelas extremidades".

Para Bacon, certamente é verdade que a natureza é dominada obedecendo-lhe, mas só depois que ela - desviada violentamente ou astutamente do seu curso - revelou a palavra de ordem. Contudo, damo-nos cada vez mais conta de que a natureza não pode ser ludibriada, que, mesmo quando alguém a domina, na verdade submete-se às suas leis e aos seus ditames. O conceito de astúcia, no sentido sofista mais fraco do mais fraco que prevalece sobre o mais forte, desaparece: é que nos sentimos suficientemente fortes para tratar a natureza usando armas iguais, e suficientemente conhecedores das suas leis para a seguir, tirando vantagem disso. Assim, para Galileu, a astúcia das máquinas já não consiste em suspender a legalidade da natureza, mas em usá-la com fins econômicos, em desfrutar de energia a baixo custo, e em diminuir a fadiga humana: "Entre os grandes enganos parece-me ter compreendido que está principalmente a crença, que os chamados artífices tiveram e têm continuamente, de poderem com pouca força mover e levantar grandíssimos pesos, enganando de certa forma com as máquinas a natureza; natureza cujo instinto, e até cuja firmíssima constituição, consiste em que nenhuma resistência possa ser superada por força que não lhe seja mais poderosa". Asleis naturais não são, portanto, subvertidas pela mecânica - aspecto no qual insistirá especialmente L.N.M. Carnot, mas recordemos que no pensamento grego falta o conceito de "lei" propriamente dito - pelo contrário, há que se basear nelas para alcançarmos o que nos é útil. A astúcia consiste muito mais na invenção de tomadas que se adaptem à fonte de energia a explorar (enquanto os instrumentos devem adaptar-se aos órgãos do homem ou do animal, por exemplo, às mãos ou ao pescoço, as máquinas devem também conformar-se à energia natural que as move, por exemplo, ao vento através das mós dos moinhos ou, mais tarde, à água através das turbinas): " e porventura maior comodidade do que os outros que nos fornecem os instrumentos mecânicos é, com respeito ao movente, valendo-nos ou de alguma força inanimada, como o curso de um rio, ou então de força animada, mas de desgaste menor do que aquele que seria necessário para manter a capacidade humana, como acontece quando, para mover moinhos, servimo-nos do curso de um rio ou da força de um cavalo para alcançar aquele efeito para cuja consecução não bastaria o poder de quatro ou de seis homens. Por este meio, poderemos ainda alcançar maior vantagem elevando as águas ou construindo outras formas significativas, coisas que homens poderão realizar sem outros recursos, porque com simples vasilha poderiam carregar água elevando-a e derramando-a onde se precisa; mas, dado que ao cavalo, ou a outro motor similar, faltam o discurso e aqueles instrumentos que se precisam para agarrar a vasilha e esvaziá-la a tempo, voltando depois a enchê-la, e o cavalo só tem força em abundância, por isso é necessário que o mecânico supra com seus instrumentos o defeito natural daquele motor, acrescendo-lhe artifícios e invenções tais que, com a aplicação exclusiva da sua força, possa alcançar o efeito desejado. E nisso reside grande utilidade, não porque aquelas rodas ou outras máquinas façam com força menor ou com presteza maior, ou em menor intervalo se transporte o mesmo peso que aquele que, sem tais instrumentos, igual porém judiciosa e bem organizada força poderia realizar, mas antes porque a queda de um rio custa pouco ou nada, e a manutenção de um cavalo ou de um animal similar, cuja força superará a de oito ou talvez mais homens, é de longe de custo menor do que aquele para sustentar e manter os referidos homens".

3. Chegamos a Hegel. Nele perpetua-se o pathos anti-naturalista que acompanhou o surgimento da mecânica e o programa baconiano de domínio da resistente natureza: "o espírito faz valer o seu direito e a sua dignidade no interdito e no maltratamento da natureza, à qual restitui aquela necessidade e violência que sofreu por parte dela" (uma vingança, portanto). A natureza não está finalizada no homem: o0 vento sopra, o vapor eleva-se, a corrente do rio avança, as plantas e os animais crescem sem que isso tenha uma relação necessária com os homens. Mas são precisamente os homens com as técnicas e com o trabalho - este meio entre sociedade e natureza, teleologismo e mecanicismo - que introduzem o finalismo no próprio interior da natureza, sem no entanto modificar suas leis, o "mecanismo". A astúcia humana não é, portanto, cientificamente contra a natureza, mas consiste, pelo contrário, em que a natureza, iuxta propria principia(=devido aos próprios princípios), venha a servir às necessidades individuais e sociais; consiste em substituir progressivamente as forças naturais com as forças do homem, em reduzir ao mínimo o dispêndio de energia humana de valor puramente físico. Consiste não em suspender as leis naturais, os mecanismos espontâneos, mas em inserir nelas um objetivo, em colocar a natureza em contradição consigo mesma, utilizando - o exemplo é de Hegel - as pedras, a madeira, o ferro e a força de gravidade para construir uma casa a fim de proteger-se da força de outros elementos naturais, ou o leite das vacas, a lã das ovelhas e os flocos de algodoeiro que protegem as sementes do algodão para se alimentarem e se vestir. A natureza é dominada mediante a divisão e a combinação de forças e através do contínuo aumento da espessura artificial ( a Bildung e o conjunto dos instrumentos mentais e materiais) que a afasta do homem. Quanto mais se consolida o reino da "segunda natureza", tanto mais se enfraquece a da primeira. Concepção semelhante a respeito das máquinas e das construções artificiais humanas chegará até Franz Reuleaux, o grande estudioso alemão de mecânica, que muito influenciou o jovem Sorel e, indiretamente, a idéia labrioliana (= Antonio Labriola, marxista italiano do início do século. XX - Nota do Tradutor) de "terreno artificial". Na "Theoretische Kinematik", a máquina é apresentada como "conjunto de corpos resistentes, dispostos de tal forma a obrigar as forças naturais a agirem segundo movimentos determinados", e como uma astúcia que "submeteu pouco a pouco ao nosso comando as forças mais poderosas, que, tornadas dóceis, foram acorrentadas para nosso serviço".

Qual é o limite histórico da reflexão hegeliana sobre as máquinas e quais são suas conseqüências? Hegel raciocina, me parece, substancialmente, em termos de máquinas estáticas, que absorvem diretamente do exterior a energia de que necessitam, chegando a ela na forma imediata em que é oferecida pela natureza. Por outras palavras, falta nele o conceito forte de uma máquina que produz energia e realiza contemporaneamente transformações energéticas, de um motor que alimenta outras máquinas (fala-se apenas de "mola, água, vento" ) e falta o conceito de trabalho em sentido físico, como produção de energia mensurável. Hegel registra, com algum atraso, o desenvolvimento médio das forças produtivas do seu tempo (mesmo que o recente aperfeiçoamento das máquinas a vapor e a sua utilização, primeiro experimental, como locomotivas, tenha podido constituir para ele exemplo evidente de transformação da energia térmica em energia mecânica). Ele fica ainda geralmente preso àquela tradicional mecânica estática que tinha seu modelo no relógio e que culminava cientificamente em Lagrange (cf. Mécanique analytique, Paris, 1788; e Théorie des fonctions analytiques, Paris, 1797) e na "elegante exposição" de Francoeur (Traité élémentaire de mécanique - Paris 1801). Nesta última obra, que Hegel segue mais de perto, a tarefa das máquinas reside precisamente em fazer agir as forças naturais "les unes contre les autres" (umas contra as outras) e em mudar-lhes "la grandeur et la direction" (o tamanho e a direção). É só com as Réflexions sur la puissance motrice du feu et sur les machines propres à développer cette puissance (Paris, 1824), de Sadi Carnot, que é situado teoricamente o problema da transformação da energia térmica em energia mecânica e do funcionamento das máquinas térmicas através de uma "diferença", a saber, do desnível do "calórico": "O calor não é senão potência motora, ou melhor, o movimento que mudou de forma, é um movimento". E é preciso esperar até a plena difusão das máquinas para que a astúcia técnica se afaste ulteriormente da sua dependência em relação à natureza, penetrando, por assim dizer, no seu próprio laboratório e combinando várias formas de energia produzidas artificialmente ( enquanto existentes in natura, como a eletricidade ou então a fissão nuclear), e já não aceitas diretamente na forma em que imediatamente as transmite a própria natureza. Sem considerar esta cisão histórica na evolução do conceito de máquina, não se entenderia, entre outras coisas, nem a seção do livro I do Capital - especialmente o capítulo XIII sobre Máquinas e grande indústria - nem a previsão de Marx sobre os futuros transtornos que seriam introduzidos pela eletricidade, nem a fórmula, aparentemente paradoxal, de Lenin, para quem os sovietes são socialismo mais eletrificação. Marx, além disso, elaborou uma concepção do trabalho humano com base na ciência do tempo, como dispêndio de energia muscular, nervosa, mental, que se conjuga com as forças e os produtos da natureza ou, mediatamente, da sociedade, transformando-os, mudando-lhes o estado através de mutações energéticas e trocas no interior de um sistema complexo social/natural. O sentido de O Capital é, sob este aspecto, o de tornar consciente tal dispêndio de força trabalho, o de reivindicar para a energia transformadora dos produtores a racionalidade da produção que antes de apresentava como estranha ao processo. Mesmo a moderna "escravidão emancipada", que encontra o próprio padrão impessoal no capital, deve dar lugar à livre organização dos produtores. Em termos aristotélicos: o l o g oz que pertence unicamente ao d e s p o t h z na sua plenitude, e não ao escravo, que o sente obscuramente e participa dele inteiramente só pela obediência (cf. Pol. , 1254 b; 1260 b), deve unir-se ao fazer, ao produzir, à p o i h s i z ; e, vice-versa, a força bruta, a energia humana precedentemente sem meta, necessitada de guia e de domesticação como a de um boi, deve iluminar-se de significado e de racionalidade. O projeto marxiano apresenta-se, portanto, como gigantesca deslocação de inteligência social para a classe, que institucionalmente era excluída disso, dos produtores diretos, e como recomposição das faculdades, das capacidades latentes, no indivíduo socialmente rico, numa unidade móvel, em que o fazer já não seja animalescamente cego, e a direção do processo já não seja racionalidade separada, estranha e hostil à práxis transformadora, um l o g o z que resplandeça unicamente pelo contraste com a obscuridade, socialmente produzida e parcialmente buscada, do fazer.

Hegel, portanto, ficou preso a um mundo em que a relação com as forças naturais é ainda essencialmente imediata, relação de engodo, na qual elas são aceitas assim como são em si, não reproduzidas com artifício ulterior. Há certo antropomorfismo na concepção hegeliana, assim como uma lembrança da moral dos mitos gregos: as forças naturais, que são poderosas demais, para serem derrotadas frontalmente, vingam-se quando são vencidas pela astúcia. A natureza livra-se da imperfeita subserviência por parte do homem e produz efeitos devastadores: a extrema parcelização do trabalho introduzida pelo uso generalizado das máquinas fere a inteligência de milhões de homens, atrofia a imaginação, separa as faculdades; o movimento cego do mercado produz desordem, desemprego, superprodução, miséria. Mesmo envolto em véus místicos, o discurso hegeliano contém a constatação realista de que as estruturas políticas e sociais do tempo não são capazes de controlar a troca homem/natureza e de que são, portanto, afetadas por uma naturalidade, por uma cegueira como resposta. O astuto mas insuficiente domínio sobre a natureza volta-se contra a sociedade, tornando em parte incontroláveis as suas forças, ocultando nos indivíduos e nas instituições o sentido do agir teleologicamente consciente e os nexos com o todo.

4. Desta forma, a astúcia humana, que nas suas relações com a natureza se havia mostrado como aceitação de uma base natural última imodificável ( as energias da natureza assim como se mostram diretamente), vem a ser também ela astutamente ludibriada por uma entidade superior aos indivíduos, por uma astúcia ainda maior, que é o resultado da imperfeita subserviência da natureza e da vingança desta. É isso a bem conhecida "astúcia da razão", que se serve das paixões (o nosso segundo reagente) como instrumento e lhe inverte o sentido para uma linha de desenvolvimento que escapa a cada um dos indivíduos agentes. São precisamente as paixões que, na história, agem como forças naturais não ulteriormente separáveis, como "elemento ativo" do processo, como propulsores peculiares da máquina da história. Se a razão não é o elemento ativo, causa eficiente da história, ela, porém, é astúcia, causa final, a força dialética da inversão e da retorsão, o elemento mais fraco que caçoa do mais forte, colocando as paixões umas contra as outras e provocando a sua eliminação recíproca e o surgimento de algo que não estava previsto. A razão manifesta-se, portanto, em linha ascendente, como um integral das paixões, não a sua soma, mas - segundo a interpretação do cálculo infinitesimal que Hegel tira das Réflexions sur la methaphysique du calcul infinitésimal de L.N.M. Carnot - a sua inversão numa relação; enquanto isso, em linha descendente, as paixões ( que, embora cegas, têm orientação teleológica inconsciente) são, por assim dizer, polinizadas pela racionalidade. Este é o grande modelo operativo da dialética hegeliana e da dialética histórica em particular: a capacidade de retorsão do mais fraco sobre o mais forte, da natureza segunda sobre a primeira de que provém, a "soberana ingratidão" do homem para com a natureza primeira, da qual se separou ao preço de esforços inauditos. Em cada nível do desenvolvimento, as forças inferiores criam involuntariamente - jogadas por uma astúcia superior - os seus próprios limites, os freios e os controles para o seu livre desenrolar. Desta maneira, ordem e direito nascem, por exemplo, como formações reativas e preterintencionais das próprias paixões desenfreadas, produzindo assim efeitos "giroscópicos" auto-reguladores, "realizam a si mesmas e os seus fins segundo a sua finalidade natural, e fazem surgir o edifício da sociedade humana, na qual conferiram ao direito e à ordem o poder contra si próprias" . Disso provém a inversão, a retorsão dialética, a vingança da astúcia sobre a força, de Odisseu sobre Polifemo. Entre o momento passional, e portanto energético, e o momento racional, não há, em Hegel, contradição absoluta, mas convertibilidade recíproca.

Convertibilidade da paixão em razão

A razão não é, porém, razão harmônica, asséptica, cristalina (ou apologeticamente olímpica, como aquele que precede às "harmonias econômicas", segundo Batiat), mas razão conflitual, ainda férvida de paixão, de inquietação, instabilidade. A Vernunft hegeliana (também do ponto de vista da história das idéias e do léxico filosófico) não tem nada a ver com a tradição da cultura que, a partir do latim ratio leva ao francês raison e ao italiano ragione. Este termo, sobretudo a partir de Kant, implica o conceito de contradição: é Vernunft aquilo que contém em si contradições e o impulso para as superar para além da "experiência", o que, à semelhança do sublime, participa mais da dissonância, do contraste não resolvido, do que da harmonia. É o nisus (= esforço, ponto de apoio: nota do tradutor) das paixões que, na filosofia da história hegeliana, move para a frente a Vernunft e torna instável qualquer possível cristalização sua nas formas do intelecto. A negatividade é o momento ativo porque conserva o ímpeto energético e transformador das paixões de que se origina. A razão hegeliana não é apenas "luz", "identidade", mas "diferença", conflito, "cinza sobre cinza"; contém em si a negação e a morte; a sua dialética não é apenas - segundo as palavras pronunciadas em 1964 em Salzburg por Jean Hyppolite - um "triunfo sobre a morte", mas é antes, diria, um triunfo sobre a morte, um chamar a para si a energia das paixões, da vida, através do esforço de olhar na cara o negativo. La Rochefoucauld afirmou que "nem o sol nem a morte se podem olhar fixamente" . Hegel, pelo contrário, caracteriza a filosofia, a vida do espírito exatamente como um fixar, uma "parada" na visão da morte, para depois voltar a si mesmo revigorado: " Mas não aquela vida que se apavora diante da morte, que se esquiva da destruição; e sim aquela que suporta a morte e nela se mantém, esta é a vida do espírito. Este adquire a sua verdade unicamente se se reencontrar na absoluta devastação... o espírito é tal força apenas porque sabe olhar na cara o negativo e parar junto dele. Este parar é a força mágica que transforma o negativo no ser" . A "vida" do espírito nasce da morte e da transfiguração da naturalidade, do fato de jogar tudo por tudo. Aqui, de fato, "quem quiser salvar sua vida, perdê-la-á, mas quem perder sua vida... encontrá-la-á" (Mt. 16,25).

A filosofia moderna surge como assunção da "dor infinita", da "dureza" expressa na sentença "o próprio Deus morreu", fundindo-se na "infinitude como abismo do nada" . Por isso, na "luta pelo reconhecimento" - tema ao qual voltaremos adiante - o surgimento da autoconsciência humana, da liberdade, coincide com o afrontamento da morte, com a anulação potencial para possuir-se integral e livremente. Por isso, o terror e a guerra encontram em Hegel função catártica, de revigoramento das energias. Contra muitas interpretações organicistas e filo-clássicas (e mesmo sem cair na imagem de um Hegel teólogo, romântico e místico), não deve ser menosprezado tal aspecto de aversão diante da naturalidade. Não há nada de platônico - como tantos intérpretes, de Ernst Bloch a Karl Popper, de Galvano della Volpe aos seus discípulos, sob diversas perspectivas, imaginaram; há, isto sim, o gigantesco projeto de transformar o homem em segunda natureza, de o transformar de filho da natureza em filho do tempo, ou seja, de si próprio, de tornar, em termos "burgueses", toda imediatidade uma mediação, toda estaticidade um movimento, uma contínua expansão. A civilização começa para Hegel exatamente com o que normalmente pode parecer incivil, selvagem: na deformação intencional da natureza corpórea, tanto na realidade, quanto na representação. A dignidade de homem começa quando transforma também a si mesmo: "E o homem comporta-se deste modo não apenas com as coisas externas, mas também consigo mesmo, com a própria figura natural, que ele não deixa como a encontra, mas a modifica intencionalmente. Esta é a causa de todos os enfeites e ornamentos, mesmo que sejam tão bárbaros, privados de gosto, completamente deformados ou até perniciosos, como os pés enfaixados das mulheres da China ou os cortes nas orelhas e nos lábios" . De uma afronta à natureza nasce a história. Reconsiderando também, de maneira significativa, a arte dos primitivos, Hegel observa agudamente que não se deve acreditar que a deformação das figuras dependa neles de uma habilidade escassa: "Com efeito, num certo grau da consciência e da representação artísticas, o descuido e a deformação das produções da natureza não é casual falta de experiência e de habilidade técnicas, mas é alteração intencional que nasce do conteúdo que está na consciência, e é por ele exigido". A habilidade técnica não é tudo na arte: "É a potência do conteúdo a representar e a imersão no essencial e no substancial deste conteúdo o que coloca em segundo plano, como ainda menos essencial, o predomínio da habilidade técnica na arte de pintar. Assim por exemplo, os cartões de Rafael são de valor inestimável e mostram toda a excelência da confecção, mesmo que, também com respeito aos quadros acabados - e qualquer que seja a perfeição do desenho, a pureza das figuras individuais ideais e contudo totalmente vivas, a composição e a cor - ele se encontre superado na cor, na perfeição das paisagens, etc., pelos mestres holandeses . Isso é ainda mais verdadeiro no caso dos primeiros heróis da arte italiana, com respeito aos quais Rafael tanto é inferior em profundidade, potência e intimidade da expressão, quanto é superior na arte de pintar, na beleza e na vitalidade da disposição dos grupos, do desenho, etc.".

Convertibilidade da razão em paixão

Passemos agora ao segundo momento da convertibilidade: convertibilidade da razão em paixão. Isso significa, em breve, que as formas da razão, uma vez adquiridas, transformadas em segunda natureza, voltam a ser inconscientes, agem como paixões, como "instinto da razão" teleologicamente orientado. O homem, enquanto animal racional e histórico, nunca tem a paixão em estado puro, a paixão que já não tenha sido filtrada pela civilização, pela linguagem, pelas instituições. Já o elemento lógico "penetra cada relação ou atividade natural do homem, o seu sentir, intuir, desejar, toda sua necessidade e todo seu instinto, tornando-o, em geral, algo humano, mesmo que seja apenas formalmente à guisa de representações e de objetivos" . Na linguagem, o tecido que une é, portanto, fornecido pelas categorias lógicas, que aparecem primeiro ao falante na forma de conhecido, e as idéias transmitidas pela linguagem e pelas instituições movem os homens e as suas paixões. O Estado, a Igreja, as instituições, que são produtos históricos, encarnações da racionalidade, limites involuntariamente produzidos pelas paixões, tornam-se por sua vez geradores de paixões ou - como ocorre no caso da sociedade civil - sedes de passionalidade desenfreada. Mas o racional está já contido obscuramente nestas paixões: por isso o fato de se comporem em racionalidade explícita é menos milagrosa e "dialeticamente" construída do que aparece à primeira vista. A racionalidade não está apenas no ponto de chegada, mas implicitamente também no ponto de partida. Os homens vivem no interior de uma família determinada, de uma sociedade e de um Estado, e as suas paixões têm esta base racional (no sentido de ser aceita e enquanto é aceita), e se tecem com tais condições, estimulando-as. É a mesma moldura de racionalidade cumulativamente alcançada pela história em determinada época que direciona as paixões e as premia ou as penaliza, dependendo da sua capacidade de se inserirem no processo que se realiza. A Gesinnung hegeliana, o sentimento interior, o consenso político, não nascem no terreno da racionalidade explícita, mas da confiança inconsciente, da sensação de poder realizar suficientemente (Hegel sabe quanto é elástico este limite) as próprias inclinações e os próprios interesses. Pode-se dizer, em geral, que a racionalidade implícita tende politicamente a tornar-se explícita à medida que cresce o mal-estar, à medida que se estende a crise do Estado ou das instituições; então, um número cada vez maior de homens é obrigado a trazer ao plano da consciência os nós do conflito, é obrigado a raciocinar.

5. Na passagem do mundo antigo ao mundo moderno, da dependência pessoal àquela impessoal, abstrata, está implícito também um papel mais acentuado da astúcia? A abolição, no mundo moderno europeu - pelo menos na Europa centro-ocidental, senão nos países eslavos - da escravidão e da servidão da gleba por acaso não foi possível pelo fato de uma astúcia de grau menor, que consistia em colocar o escravo como instrumento entre o homem e as coisas, ter sido superada por uma astúcia maior, que põe as máquinas entre o homem e as coisas e, utilizando as energias naturais, transforma natureza em serva, transferindo em grande parte sobre seus ombros o peso do trabalho muscular realizado precedentemente por homens e animais? Por acaso com as máquinas desaparece a dependência e a subordinação entre os homens?

A servidão que Hegel conhece diretamente (prescindindo daquela, socialmente ambígua, que ele mesmo poderá ter experimentado na figura do preceptor nas casas dos ricos) é a do doméstico, enquanto livre assalariado, que se coloca na dependência do patrão, mesmo sentindo-se com freqüência não só intimamente igual mas também superior a ele. Trata-se de situação típica, descrita abundantemente pela comédia, pela ópera bufa e pelo romance do século XVIII, pelaHistoire de Gil Blas de Santillane, de Lesage, passando pela L' île des esclaves, de Marivaux, pela Serva Padrona, de Pergolesi, e pelas comédias de Goldoni, pela Le mariage de Figaro, de Beaumarchais, Jacques le Fataliste et son maitre, de Diderot ( o principal modelo de Hegel). O teatro espelha as novas relações sociais: "Os personagens... que tecem e levam adiante estas intrigas e que, na comédia romana, eram os escravos, são agora, em geral, na comédia moderna, os servos e as camareiras que não têm respeito algum pelos objetivos dos seus patrões, mas, pelo contrário, os promovem ou fazem frustrar de acordo com a própria vantagem, oferecendo apenas o ridículo espetáculo segundo o qual na verdade os patrões são os servos e os servos são os patrões" . A dependência pessoal é agora pro tempore: quando um patrão não satisfaz, a gente o troca, conforme faz Gil Blas, tanto mais enquanto, como se sabe, não existe herói algum para o próprio camareiro. Esta liberdade de movimento convém igualmente ao patrão, porque, conforme observou John Millar, não é vantajoso manter escravos quando se pode dispor de assalariados domésticos que custam muito menos. A dialética servo-patrão não se refere exclusivamente à sociedade clássica - assim como não raro se entende, seguindo o exemplo de Kojève - mas é um estado necessário que todos os povos devem atravessar e ao qual hoje muitos estão presos. O mundo oriental como um todo, a sociedade africana e, de forma espiritual, até mesmo os países católicos europeus encontram-se ainda, para Hegel, neste ponto. Timor Domini initium sapientiae, mas apenasinitium. O medo, a crainte de Montesquieu, que caracteriza a relação senhorio-servidão, é o fundamento tanto do despotismo asiático, quanto das terríveis lutas tribais africanas. O medo, a dura disciplina da obediência e da servidão constituem para Hegel - que segue longa tradição de pensamento - etapa indispensável para levar os indivíduos à liberdade, à autoconsciência, à autodeterminação, à posse do b o u l e u t i k o n , que distingue, para Aristóteles, os homens livres. Esta era também a concepção de Labriola, assim como Croce o recorda: "Como irias educar moralmente um papuano?", perguntou um aluno, há tantos anos, ao professor Labriola, em aula de pedagogia, objetando contra a eficácia da pedagogia. "Provisoriamente (respondeu com viquiana e hegeliana aspereza o herbartiano professor), provisoriamente o tornaria escravo; e esta seria a pedagogia do caso, esperando que com seus netos e bisnetos se possa começar a pôr em prática algo da nossa pedagogia". Quanto mais carregada de paixão emancipatória era, com relação a Hegel e Labriola, a posição de Spaventa, quando questionava a teoria segundo a qual a servidão é o berço da liberdade: " Mas o berço não é a vida. Alguns gostariam que ficássemos sempre no berço!" Segundo Hegel (ou melhor, segundo a "repetição" que ele faz deste tema clássico que, desde Aristóteles, através dos jusnaturalistas, chega até ele), a servidão nasce in illo tempore do medo da morte, da vileza, do fato de ter preferido conservar a própria vida ao preço da submissão a um outro. Servus, portanto, segundo terminologia duvidosa, defendida por Bodin, e discutida por todos os maiores jusnaturalistas, viria de servare (conservar) - aquele a quem foi poupada a vida - e não de servire.

A "luta pelo reconhecimento" encontra em Hegel justificação oposta ao esquema de sociedade aristotélico e também ao do modelo jusnaturalista. A associação dos homens entre si não acontece, de fato, como em Aristóteles, sobre uma base natural, uma necessidade recíproca do homem e da mulher, dos pais e dos filhos, dos senhores e dos escravos, uminstinctus societatis, nem ocorre segundo os módulos jusnaturalistas do contrato, seja como pactum unionis, seja comopactum subiectionis. Simplesmente trata-se de modelo conflitual abstrato (ideal, como a "fundação" da polis através da palavra, de acordo com o livro II da República de Platão - 369 c, ou então como o hobbesiano let us make man), mediante o qual se reconstrói a gênese da autoconsciência moderna e livre. A individualidade natural é burilada, universalizada, primeiramente através da servidão, depois, uma vez superado tal estágio, através da Bildung (= formação), que é o nível de elaboração da individualidade mais adequado à "sociedade civil", àquela sociedade, em termos ainda fergusonianos, que já superou o momento o "selvagem" e o "bárbaro". Para que o homem possa ser livre, ter consciência de si e autodeterminar-se (esta é no fundo a "universalidade" da autoconsciência até a qual a consciência deve elevar-se), referir-se a si mediante si mesmo, refletir-se em si mesmo, é necessário que antes perceba a universalidade como alteridade, constrição, "sentido estranho", que só gradualmente e mediante a angústia conduzirá ao "sentido próprio", ao sensus sui: urge que se duplique num outro, que passe através de uma espécie de stade de miroir(= estágio do espelho). A morte é a expressão suprema desta universalidade vazia, deste "abismo do nada" dentro do qual a consciência deve afogar para conseguir sua duplicação e sua conexão em si própria, a "identidade da identidade e da não-identidade". Franco Chiereghin percebeu com muita agudeza o fio que liga a problemática do Contrato Social de Rousseau ao tema hegeliano da morte: assim como em Rousseau é necessária a alienação total da vontade do indivíduo para que "ele fique livre como antes", mas numa comunidade racional, assim em Hegel é necessária a experiência da morte para que se alcance a autoconsciência ou a liberdade. Em termos sociais, poder-se-ia também acrescentar que a negação do esquema contratualista, abandonado por Hegel, implica prioridade do todo sobre as partes, da sociedade ou do Estado sobre os indivíduos, prioridade "por natureza" na linguagem aristotélica. Só se me curvar preventiva e totalmente diante do momento coletivo, recebo de volta algo, ou seja, com as palavras de Althusser referidas a Rousseau: "o indivíduo deve dar-se todo, sem reserva alguma, para receber algo em troca". NaFenomenologia (cap. IV A), Hegel procura, sob certo aspecto, descrever geneticamente o surgimento da universalidade da autoconsciência, que serve de base também para a vontade geral ou substancial, sem passar pelo fingimento contratualista e, contemporaneamente, fazendo surgir, de maneira hobbesiana, a racionalidade a partir do medo da morte, a autoconsciência a partir da paixão, a partir do desejo (Begierde). A grande importância do tema da morte explica também a sucessão, aparentemente bizarra e arbitrária, das figuras fenomenológicas e esclarece, espero, algumas cruces interpretativas mais antigas. Por que depois da relação senhorio-servidão vem o estoicismo? Por que depois do ceticismo, aparece a consciência infeliz? Por que a Igreja universal antecipa a "razão"? No estóico acaba o medo da morte, assiste-se a uma inversão dialética de tendência; na sua obstinação, ele sabe que pode ser interiormente, ou seja, abstratamente, livre "sobre o trono e agrilhoado"; a sua vontade não pode, pois, ser dobrada porque lhe sobra sempre a possibilidade de sair deste mundo através do suicídio. No estóico são interiorizados os dois caracteres da servidão: a Eigensinn, a obstinação, e o Formieren, que se transfere mais decididamente da elaboração do universo das coisas para a elaboração da autoconsciência. O estóico chegou a referir-se a si próprio, mas ainda continua enredado na não-liberdade, enquanto é obrigado a negar as relações mundanas e a separar-se do mundo (que será ulteriormente desagregado nas suas certezas pelo ceticismo). A atitude do estóico parece-me delineada de modo significativamente semelhante àquele dos negros rebeldes das Índias ocidentais: " A escravidão é algo histórico, ou seja, ela desaparece, pertence a um estágio anterior ao direito, é relativa. Toda esta situação não deve permanecer, não é uma situação do direito absoluto: mas no interior de uma situação tal, ela é necessariamente justificada... O errado é assim em si e por si, a saber, é a própria autoconsciência universal, a de não querer ser nem um escravo, nem um senhor, mas da mesma forma nenhum escravo, portanto, nenhum senhor. Mas isto não pode ser culpa deste ou daquele indivíduo, não se pode falar destes ou daqueles, que são escravos, e sim de todos, do todo. Muitas vezes, nas Índias ocidentais, os negros revoltaram-se; nas ilhas ainda hoje lê-se cada ano e com maior freqüência no decurso do ano, a respeito de conspirações, mas os negros tornam-se vítimas da situação geral ( aber sie werden Opfer des allgemeinen Zustands). Contudo, eles podem morrer livres; a situação do indivíduo está condicionada mediante o universal. As conspirações são inclusive a prova de uma disposição de espírito puramente parcial. Da mesma forma, não se pode falar da culpa deste ou daquele, porque eles são patrões. Disso depende a mudança da situação geral". Também os estóicos podem morrer livres, mas a sua morte permanece abstrata, não tem uma ressonância coletiva, são vítimas, precisamente, da situação geral. A morte de Cristo representa, por sua vez, para Hegel, o verdadeiro ponto de mutação na história do mundo porqueela tem valor coletivo, universal, é vivida por todo homem na esfera da representação. Ela é o fulcro que eleva a substância a sujeito. Na "noite de Getsêmani", na qual a substância foi traída e se tornou sujeito, tem início dramático a subjetividade moderna. A "sexta-feira santa especulativa, que já foi histórica", repete-se em cada homem, em cada autoconsciência cristã, universalizada. Com a experiência da morte de Deus, repetida no calvário de cada um e nas "estações" da via crucis especulativa, que é a Fenomenologia, destrói-se tendencialmente toda naturalidade residual: "a morte deixa de ser o que significa imediatamente, ou seja, deixa de ser deste indivíduo, e transfigura-se emuniversalidade do espírito vivo na sua comunidade e nela cada dia morre e ressurge". Esta é a grande função histórica que o cristianismo desempenhou na educação do gênero humano: em lugar do Patrão pôs o Pai, e entre este e os homens pôs o Cristo, o Mediador; no lugar da consciência natural colocou a autoconsciência em grandes parcelas da população; à serenidade pagã contrapôs a dramática aceitação da morte de Deus e da própria morte. Depois da escravidão antiga, do estoicismo, do ceticismo e da "consciência infeliz", a Igreja medieval inicia a conciliação e a reconsagração do mundo. Ao descobrir o "sepulcro" vazio da sua essência efetiva, a consciência "renunciará a buscar a singularidade intransmutável como efetiva ou a mantê-la como singularidade desvanecida; e só assim é capaz de encontrar a singularidade como veraz ou como universal". Surge "a razão". O cristianismo fez nascer a subjetividade moderna por ter instilado nela o fel da morte, a inquietação contínua, a contradição. Do ponto de vista histórico, a "sociedade civil" e a Bildung são possíveis para a autoconsciência européia - e é, portanto, superada também por este aspecto a necessidade da escravidão - exatamente porque o cristianismo forneceu tal energia propulsora.

6. Como se passa, assim, da dependência pessoal àquela impessoal da "sociedade civil"? De Kojève em diante viu-se na inversão da relação senhorio-servidão uma revanche do servo (alegoria do proletário) que derrota o patrão e se torna, por sua vez, patrão. Na realidade, pelo contrário, e embora através de mediações complexas, tal relação não desemboca, em Hegel, numa pura e simples inversão dos papéis, mas na dependência recíproca da sociedade civil, em que cada um depende, para a satisfação das suas necessidades, da cooperação conflitual com os outros, e na independência da autoconsciência em um mundo em que "todos são livres". A autoconsciência moderna conseguiu sua liberdade; já não se precisa de referência a um déspota, a um patrão, para alcançar a si própria: a lei é universalidade mediada com a consciência, a razão é um parlamento ideal. Esta liberdade encontra, porém, o seu contraponto dialético na servidão, também ela abstrata, que se deve a todo o corpo social para sustentar-se e que transforma a existência da maioria dos homens numa "guerra permanente". O domínio pessoal já não existe, mas nem por isso a dependência e a subordinação desapareceram; o mundo tornou-se mais prosaico (há necessidade do Terror e verdadeira guerra para recordar de vez em quando aos indivíduos o poder do negativo), mas o medo de cair no subsolo da sociedade, entre a "plebe" dos deserdados, na miséria extrema, é um memento (=alerta: nota do tradutor) bastante eficaz para estimular a atividade de cada um dos membros da sociedade civil; o trabalho coagido desapareceu, mas existe em termos smithianos, o trabalho comandado, labour commanded, e eu sou rico ou pobre na medida em que posso dispor do trabalho do outro. Enquanto na relação senhorio-servidão era o patrão que se satisfazia (= no sentido de consumir-se, tornar-se insensível: nota do tradutor) no gozo, agora é o trabalhador de fábrica que se satisfaz nas suas operações repetitivas. O trabalho moderno não é apenas Bildung, "educação teórica" e educação "prática", mas é também período de parcelização das faculdades (e é igualmente a esta peculiar cisão, que provoca a "necessidade da filosofia", que vai ao encontro a dialética, a ciência das relações através das contradições reais). O mundo moderno produz os seus antídotos ao aspecto inorgânico da economia e da produção e desenvolve, assim, o momento da universalidade da consciência e da Bildung, privilegia as relações abstratas, luta contra qualquer estagnação, imobilismo e imediatidade. Tudo deve passar pelo crivo da mediação e da universalidade: esta é a nova "consagração" que o particular recebe do pensamento. A decolagem que a autoconsciência européia efetua com respeito à relação de senhorio-servidão, ainda predominante em amplas regiões do mundo, deve-se, segundo Hegel, exatamente à consecução desta espessa rede de mediação, de abstrações, de cisões em contínuo movimento de recomposição, de uniões que incessantemente se rompem. A mobilidade da vida social moderna exige inteligência, não força bruta; astúcia e saber, e não violência ou "positividade"; exige dialética. A partir daí, entre outras coisas, também a polêmica de Hegel contra as afirmações reacionárias de Ludwig von Haller, que afirmava o direito do mais forte, "segundo o qual o corvo estraçalha o inocente cordeiro". A força já não basta: os homens desenvolveram uma autoconsciência livre que pede satisfação racional. A defesa hegeliana é a da segunda natureza contra a primeira natureza, a do mais inteligente e astuto contra o mais forte. A concepção que Hegel tem do direito - conforme observou justamente Manfred Riedel - contrasta seja com o jusnaturalismo racionalista abstrato, de acordo com o qual existem direitos racionais e naturais em si, seja com o positivismo jurídico, segundo o qual o que existe segundo oaltes Recht ( velho direito) é justificado, por exemplo, a servidão: o direito é, pelo contrário, para Hegel, a conquista conflitual de uma racionalidade que se afirma dentro da história. E, sob este aspecto, a força bruta já não tem sentido, nem legitimação.

É o saber, portanto, e não a pura força que domina impessoalmente ( e como concentração de relações abstratas) o mundo moderno na "parte racional" da Terra. "Aquele que não sabe não é livre", mas quem não é livre não sabe, ficando preso ao Timor Domini, no início do saber e não no seu desenvolvimento. O surgimento da Bildung moderna inclui, no âmbito da "sociedade civil", a epistemofilia européia e a garantia do seu domínio. Agora já não é preciso que as sociedades européias seja divididas em livres e escravos, senhores e servos da gleba, em possuidores do l o g o z por natureza e homens excluídos do saber por natureza. Tal divisão, porém, deslocou-se para o mundo colonial, que ainda deve sofrer a dura disciplina dos novos patrões brancos antes de alcançar a liberdade, com a obtenção da maioridade política. O conhecer é o fundamento mais sólido do poder europeu no mundo. "O espírito europeu põe o mundo diante de si, dele se liberta, mas supera de novo esta oposição, retomando em si, na sua simplicidade, o seu outro, o múltiplo; aqui, por isso predomina um impulso infinito para o saber, que é estranho às outras raças. Ao europeu interessa o mundo; ele quer conhecê-lo, apropriar-se do outro que se lhe contrapõe, conseguir, nas particularizações do mundo, a intuição do gênero, da lei, do universal, do pensamento, da racionalidade interior. Assim como no teórico, também no prático o espírito europeu busca atingir a unidade a ser produzida, entre ele e o mundo exterior: submete o mundo exterior a seus fins com uma energia que lhe assegurou a dominação do mundo". Por mais que se diga o contrário, a filosofia não tem de fato em Hegel valor exclusivamente contemplativo e não se realiza in interiore homine. Ela, acima de tudo, é domínio/saber que toma conta do mundo, que adquire sua força da alienação e da exteriorização no mundo e que, depois, volta a si, a fim de reverter-se de novo para o mundo (a partir disso também nasce a importância paradigmática da morte como alienação total). O idealismo hegeliano não é contemplação pacífica das idéias eternas, pura resignação senil, mas está fundamentado na "coragem de conhecer", na pressão das paixões e de interesses incandescentes, na dominação progressiva da Wirklichkeit (= realidade) e no escárnio da subjetividade vazia ou das fugas para frente na utopia romântica, ou para trás, na restauração da força bruta, do ancien régime. Hegel é estreitamente solidário com o seu mundo "prosaico", sangüíneo. Ele é, segundo a expressão de Jean Paul, um "vampiro dialético do homem interior". Hegel procura dissolver qualquer "infinitude má" para focalizar o olhar da subjetividade moderna sobre a realidade efetiva, para fazê-la "engrenar" perfeitamente nos mecanismos que nela estão em movimento. Esta é a grande astúcia dos tempos modernos, em que a realidade é dominada com a inteligência, com os conceitos, com a visão de um quadro global e conjunto de mediação, com o poder prático da teoria. E se a Wirklichkeit é a porta estreita para se chegar à filosofia, também a filosofia é, por sua vez, a porta estreita para penetrar na Wirklichkeit.

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Remo BODEI

(Tradução portuguesa de Selvino J. Assmann: "Macchine, astuzia, passione: per la genesi della società civile in Hegel". In: LUGARINI, L., RIEDEL, M e BODEI, R. Filosofia e società in Hegel (a cura di Franco Chiereghin). Trento, Quaderni di Verifiche 2,1977, pp. 61-89)

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