BEM

Em geral, tudo o que
possui valor, preço, dignidade, a qualquer título.
Na verdade, B. é a palavra tradicional para
indicar o que, na linguagem moderna, se chama
valor (v.). Um B. é um livro, um cavalo, um
alimento, qualquer coisa que se possa vender
ou comprar; um B. também é beleza, dignidade
ou virtude humana, bem como uma ação
virtuosa, um comportamento aprovável. Em correspondência
com essa extrema variedade de
significados, o adjetivo bom tem uma idêntica
variedade de aplicações. Podemos falar de "uma
boa chave de fenda" ou de "um bom automóvel"
como também de "uma boa ação" ou de
"uma pessoa boa". Dizemos também "um bom
prato", para indicar algo que corresponde ao
nosso paladar, ou "um bom quadro", para indicar
um quadro bem-feito.


Dessa esfera do significado geral, pela qual
a palavra se refere a tudo o que tem um valor
qualquer, pode-se recortar a esfera do significado específico, em que a palavra se refere particularmente
ao domínio da moralidade, isto é,
dos mores, da conduta, dos comportamentos
humanos intersubjetivos, designando, assim, o
valor específico de tais comportamentos. Nesse
segundo significado, isto é, como B. moral, o B.
é objeto da ética e o registro dos seus diferentes
significados históricos é encontrado no verbete
Ética (v). Por ora, deveremos tratar da noção
de B. só no primeiro sentido, isto é, na sua
acepção mais geral. Podemos, então, distinguir
dois pontos de vista fundamentais, que apresentam
intersecção na história da filosofia: ls a
teoria metafísica, segundo a qual o B. é a realidade,
mais precisamente a realidade perfeita
ou suprema, e é desejado como tal; 2" a teoria
subjetivista, segundo a qual o B. é o que é desejado
ou o que agrada, e é tal só nesse aspecto.

1° O modelo de todas as teorias metafísicas
é a teoria de Platão, segundo a qual o B. é o
que confere verdade aos objetos cognoscíveis,
que confere ao homem o poder de conhecêlos,
que confere luz e beleza às coisas, etc; em
uma palavra, é fonte de todo ser, no homem e
fora do homem (Rep., VI, 508 e 509 b). Platão
compara o B. ao Sol, que dá aos objetos não só
a possibilidade de serem vistos como também
a de serem gerados, de crescerem e de nutrirse;
e, assim como o Sol que, mesmo sendo a
causa dessas coisas, não é nenhuma delas, também
o B. como fonte da verdade, do belo, da
cognoscibilidade, etc. e, em geral, do ser, não
é nenhuma dessas coisas e está além delas (ibid.,
509 b). Analogamente, Plotino vê no B. a primeira
Hipóstase, isto é, a origem da realidade,
o próprio Deus, considerando-o como causa,
ao mesmo tempo, do ser, da ciência (Enn., VI,
7, 16) e, em geral, de tudo o que é ou vale um
título qualquer (ibid., V, 4, 1). Essas noções
tornaram-se correntes na filosofia medieval,
que identificou, segundo o exemplo neoplatônico,
o B. com Deus mesmo, de modo que só
pode ser considerado "bom" o que é, de algum
modo, semelhante a Deus (S. TOMÁS. S. Th., I.
q. 6, a. 4).

O teorema característico dessa concepção
de B. é o que afirma a identidade do que é B.
com o que existe. "Bonum e em-são a mesma
coisa na realidade", diz S. Tomás, "embora possam
distinguir-se um do outro racionalmente.
O B., com efeito, é o ente como objeto de
desejo, o que não é o ente" (S. Th., 1, q. 5, a. 1).
Por isso, "todo ente, como ente, é bom" (ibid.,
I, q. 5, a. 3). De fato, todo ente como tal está em  ato e enquanto está em ato é perfeito: mas o
que é perfeito é também apetecível e é bom.
Esse teorema revela a natureza da concepção
metafísica do B., cujo princípio é que o B. é
apetecível só como realidade perfeita ou perfeição
real. Pode-se, por isso, reconhecer uma
teoria metafísica do B. precisamente por essa
característica, que subordina a apetecibilidade
à realidade e, por fim, considera o próprio B.
como a realidade suprema. Assim faz Hegel,
p. ex., quando afirma que "a realidade efetiva
coincide em si com o B." {PhilosophischePropãdeutik,
III, § 83), ou que o B. é "a liberdade
realizada, o objetivo final absoluto do mundo"
{Fil. do dir., § 129). Todas as formas de idealismo
e de espiritualismo constituem outras tantas
doutrinas metafísicas do B., já que todas
identificam o B. com a realidade e, em última
instância, com a realidade suprema; é o que
fazem, p. ex., Rosmini, que identifica ser e bem
(Principí dela scienza morale, ed. nac, p. 78),
e Gentile, que identifica o B. com o espírito em
ato: "O B. ou valor moral outra coisa não é
senão a realidade espiritual em sua idealidade,
como produção de si mesma ou liberdade" {Lógica,
1, p. 110). Algumas filosofias contemporâneas
que preferem falar de valor em vez de B.,
considerando o valor como uma realidade absoluta
e última, inscrevem-se na mesma concepção
tradicional de bem.

2° Por outro lado, a teoria subjetivista do B.
é o inverso simétrico da teoria metafísica. Para
ela, o B. não é desejado por ser perfeição e
realidade, mas é perfeição e realidade por ser
desejado. Ser desejado ou apetecido é o que
define o B. Foi assim que Aristóteles o definiu
várias vezes {Et. nic, I, 1, 1.094 a 3). Todavia,
nesse autor, a doutrina não deixa de ter conexões
ou misturas com a doutrina oposta. Quando
precisa determinar os critérios de preferência
entre os vários bens, recorre à noção
metafísica de perfeição, isto é, à noção que
fundamenta a teoria oposta de B. Assim, p. ex.,
ele diz que o que é B. em absoluto é mais
desejável do que aquilo que é um B. para alguém,
como p. ex. curar-se é preferível a sofrer
uma operação cirúrgica; que o que é um B. por
natureza (p. ex., a justiça) é preferível ao que é
um B. por aquisição (p. ex., o homem justo).
Além disso, "mais desejável é o que pertence a
um objeto melhor e mais digno, de tal modo
que o que pertence à divindade é preferível ao
que pertence ao homem, e o que tange à alma
é preferível ao que tange ao corpo" {Top., III, 1, 116 b 17). Assim, Aristóteles delineia um sistema
de preferências que parece orientar-se para
o caráter de perfeição que os bens possuem
objetivamente e que, portanto, mal se concilia
com a definição do B. como objeto de desejo.

Essa definição é validada pela primeira vez,
em todo o seu rigor, pelos estóicos. Estes consideraram
o B. exclusivamente como objeto de
escolha obrigatória ou preferencial; portanto,
foram também os primeiros a introduzir na ética
a noção de valor{v.). "Assim como é próprio
do calor aquecer, e não esfriar, também é
próprio do B. ajudar, e não prejudicar", diziam
eles (DiÓG. L., VII, 103). B., em sentido absoluto,
é somente o que se conforma à razão, que
tem, por isso, um valor em si; mas são também
B., embora de modo subordinado ou mediato,
as coisas que fazem apelo à escolha e enquanto
tais têm valor, como o talento, a arte, a vida,
a saúde, a força, a beleza, etc. iibid., 104-5; cf.
CÍCERO, De finibus, III, 6, 20). Essa tábua de
valores prescindia completamente da perfeição
objetiva a que se referiam as tábuas de
valores da concepção clássica grega.


Obliterada durante toda a Idade Média, a
concepção subjetivista de B. volta, no Renascimento,
com as alusões à ética do móbil, que
se repetem nesse período (v. ÉTICA), mas foi
afirmada na sua forma mais nítida por Hobbes.
"O homem chama de bom o objeto de seu apetite
ou de seu desejo, de mauo objeto de seu ódio
ou de sua aversão, de vil o objeto de seu desprezo.
As palavras 'bom', 'mau', 'vil' são sempre
entendidas em relação a quem as emprega,
porque nada há de absoluto e simplesmente
tal, e não há nenhuma norma comum para o B.
e para o mal que derive da natureza das coisas"
(Leviath., I, 6). Spinoza aceitou com entusiasmo
esse ponto de vista. "Nós não nos propomos,
não queremos, não desejamos, não ansiámos
por uma coisa porque a julguemos boa,
mas, ao contrário, julgamo-la boa pelo fato de
a propormos, querermos, desejarmos e ansiarmos"
{Et., III, 9, escól.). E, no prefácio ao IV
Livro, reitera: "O B. e o mal não indicam nada
positivo que esteja nas coisas consideradas em
si, mas são nada mais do que modos de pensar
ou noções que formamos, ao confrontar as coisas.
Realmente, uma mesma coisa pode ser, ao
mesmo tempo, boa, má e até indiferente". Por
sua vez, Locke afirmou que "chamamos de B.
o que é capaz de produzir prazer em nós e de
mal o que é capaz de produzir sofrimento"
{Ensaio, II, 21, 43); definições que encontram concordância em Leibniz: "O B. divide-se em
honesto, agradável e útil, mas, no fundo, creio
que deve ser agradável por si mesmo ou servir
a algo que nos dê sentimento de prazer: o B. é
agradável ou útil e mesmo a honestidade consiste
em um prazer do espírito" (Nouv. ess., II,
20, 2). Kant aceitou essas observações, acrescentando-
lhes um elemento importante, isto é,
a exigência de uma referência conceituai. "O
B." diz ele, "é o que, por intermédio da razão,
agrada pelo seu conceito puro. Dizemos que
alguma coisa é boa para (útil) quando ela agrada
só como um meio; aquela que, ao contrário,
agrada por si mesma, dizemos que é boa em si.
Em ambas, estão sempre contidos o conceito
de finalidade e a relação entre razão e vontade
(pelo menos possível); conseqüentemente, o
prazer está ligado à existência de um objeto ou
de uma ação, vale dizer, a um interesse" (Crít.
dojuízo, § 4). A presença do conceito, isto é, do
fim a que a coisa tende ou da norma a que deve
adequar-se, é o que distingue o bom do agradável.
Kant nota que um alimento agradável,
para ser considerado "bom", deve agradar também
à razão, isto é, deve ser considerado bom
em relação ao objetivo da nutrição, da saúde
física. Todavia, o agradável e o bom estão ligados
pelo fato de dependerem ambos do interesse
pelo seu objeto; além disso, "o que é B
absolutamente sob todos os aspectos, o B. moral,
inclui o mais alto interesse, pois o B. é o
objeto da vontade, isto é, de uma faculdade de
desejar determinada pela razão. Mas querer
alguma coisa e ter prazer por sua existência,
isto é, sentir interesse por ela, são a mesma
coisa" (íbid., fim). Nesse sentido, o B. é aquilo
que se aprecia, que se aprova e a que se atribui
"um valor objetivo" (ibid, § 5). Assim, no seio
da própria teoria subjetivista, Kant valida a exigência
objetivista que constituía a força da teoria
metafísica. O B., para Kant, só é B. em relação
ao homem, isto é, em face do interesse
que o homem tem por sua existência. Mas isso
não o torna exclusivamente subjetivo, isto é,
não o identifica pura e simplesmente com o
prazer porque ao reconhecimento do B. está
vinculada a valorização conceituai de sua eficiência
em relação a certos fins e é isto que
constitui o B. como "um valor objetivo"

Depois de Kant, a noção de valor tende a
suplantar a de B. nas discussões morais, e pode
ser considerada como sucessora do conceito
subjetivo de B., dotada que é de suas mesmas
conexões sistemáticas. Em seu lugar, porém, renascerá, com forma pouco alterada, a alternativa
entre uma concepção objetivista e uma concepção
subjetivista: alternativa que ainda hoje
constitui um dos temas fundamentais da discussão
moral (v. VALOR).

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