O Escorregão de Freud*

Sebastiano Timpanaro

Apresentação do Editor

Embora a extraordinariamente complexa Interpretação dos Sonhos (1900) demorasse a encontrar ampla receptividade, o jogo de procurar o "significado freudiano" em todas as coisas se tornou imediatamente popular através de um dos mais interessantes e influentes trabalhos de Freud, A Psicopatologia da Vida Cotidiana (1901). O que desde o início tornou esses dois livros atraentes não foi apenas as explicações que ofereceram para encontrar causas profundas em circunstâncias inesperadas; foi também a imagem que projetaram do próprio Freud como um grande investigador, bem ao estilo de seu personagem literário favorito, Sherlock Holmes (ver Welsh, 1994). São certamente trabalhos de ficção policial, retratando um herói que é, sob todos os aspectos, idêntico a Holmes, como um investigador dos mínimos indícios e um infalível solucionador de enigmas, que intimidaria qualquer simples mortal. E nossa admiração é redobrada pela impressão de que não estamos lendo ficção, mas, pelo contrário, ciência em forma agradavelmente narrativa.

O próprio Freud, parece, foi absorvido por sua própria pretensão: ele acreditou que, se fosse possível fornecer uma explicação "dinâmica" para praticamente todo sonho ou erro reportados, a eficiência de seu método estaria assim demonstrada. Ele, assim, negligenciou a exigência mais fundamental da prudência investigativa, confundindo a mera coerência temática produzida por seu método com a prova que era o único método seguro. Começamos a nos aproximar do rigor empírico somente quando perguntamos se algum conjunto antagônico de conjeturas poderia dar sentido plausível aos mesmos dados, embora impondo menos exigência à nossa confiança; mas Freud nunca fez isto, nem na análise do erro nem em qualquer outro âmbito.

Foi precisamente no sentido de comparar e pesar as explicações alternativas que o linguista italiano e crítico textual Sebastiano Timpanaro examinou a teoria dos erros de Freud, em meados dos anos setenta. O ponto de partida de Timpanaro foi sua percepção dos tipos de enganos que caracteristicamente resultam na deturpação de textos. Na transcrição, por exemplo, os escritores poderiam freqüentemente "banalizar" uma palavra ou frase incomum substituindo-a por uma expressão mais familiar ou um termo "impróprio", através de uma inoportuna tentativa de corrigi-lo. Tais correções notavelmente se assemelham a muitos dos atos falhos para os quais Freud forneceu explicações psicodinâmicas "profundas". O ato falho freudiano mostra que uma explicação psicanalítica de qualquer erro pode ser superado por uma mera lista de alternativas que se pode extrair do senso comum, não dos postulados de uma doutrina contestada. A questão de Timpanaro não é a de que uma dada explicação sensata tenha que ser verdadeira, mas que sua probabilidade maior de ser verdadeira destitui a versão freudiana de infalibilidade.

Nossa escolha começa depois que Timpanaro resumiu o segundo dos dois "exemplos de atos falhos" que Freud empregou no início de suaPsicopatologia. Ele nos fascina com sua perspicácia interpretativa, exatamente como tinha feito com um "exemplo de sonho" naInterpretação dos Sonhos (Glymour, 1983). Do resumo de Timpanaro:

Um jovem judeu austríaco, com quem Freud iniciou uma conversa enquanto viajava, lamentou a posição de inferioridade na qual os judeus são mantidos na Áustria-Hungria... Ele fica entusiasmado em discutir este problema, e tenta concluir seu "discurso apaixonadamente ressentido" ...com o verso que Virgílio expressa através de Dido, abandonada por Enéas e à beira do suicídio: Exoriare aliquis nostris ex ossibus ultor (Eneida, IV 625). ("Deixe alguém originar-se de meus ossos como um Vingador" ou "Origina-te de meus ossos, ó Vingador, quem quer que tu possas ser"). Contudo, sua memória está imperfeita, e o que se segue no provérbio é Exoriare ex nostris ossibus ultor: isto é, ele omite aliquis e inverte as palavras nostrix ex (Timpanaro, 1976, pp. 29-30).

Na visão de Timpanaro, isto parece ser um caso provável de "banalização". O verso de Virgilio é provocantemente ambíguo; trata-se, certamente, um famoso dilema para os latinistas. Porém,

um jovem austríaco de cultura média, para quem as palavras de Dido sem dúvida eram pouco mais do que uma distante lembrança da gramática escolar, foi conduzido inconscientemente a banalizar o texto, isto é, a assimilá-lo à sua própria sensibilidade linguística. A eliminação inconsciente de aliquis corresponde precisamente a esta tendência: exoriare ex nostris ossibus ultor é uma sentença que pode ser transportada perfeitamente para o alemão sem qualquer necessidade de distorcer a ordem das palavras (Timpanaro, 1976, pp. 33-34).

Contudo, como veremos, Freud desconsiderou qualquer explicação rotineira semelhante e, ao invés disso, se lançou numa minipsicanálise de seu compatriota, inferindo ostensivamente que o esquecimento de aliquis deve ter sido determinado pelo medo do jovem austríaco de que uma certa senhora pudesse inconvenientemente ter ficado grávida.

Ao contrário da maioria dos leitores, que ficam admirados com a sofisticação cultural de Freud e ansiosos em expor seu talento, Timpanaro não está contaminado pela seqüência de trocadilhos multilinguais que Freud "reconstrói", como a cadeia de associações do jovem austríaco de gravidez a aliquis. O estudioso de textos nota desconfiadamente saltos ligeiros entre vários idiomas – tão característicos da mente idiossincrática de Freud, mas não tão característicos do modo como a maioria de nós pensa. E, de fato, nas notas de Timpanaro, as "associações" cruciais foram supridas diretamente pelo jovem austríaco e, então, analisadas como se tivessem sido suas próprias.

Sobretudo, Timpanaro mostra que qualquer outra palavra no verso de Virgílio além de aliquis poderia ser associada, se alguém se interessar em tentar, à mesma preocupação com a gravidez que presumivelmente bloqueou aliquis na memória. Considerando que Freud se vangloria de que tantas informações encadeadas que rodeiam aliquis não poderiam ter sido reunidas por acaso, Timpanaro brilhantemente contrapõe que, se você mesmo permitir tantas etapas para induzir de um ato falho a sua causa hipotética, confundindo suas próprias associações com aquelas do sujeito, o "sucesso" de seu procedimento é uma conclusão antecipada.

Embora Timpanaro, nos anos setenta, tivesse questionado as razões apontadas por Freud acerca do episódio de aliquis, ele não deixou de considerá-lo biograficamente genuíno. Freud, todavia, não estava longe de inventar tais histórias para adornar suas teorias; ele havia mesmo confessado outras tantas em um de seus artigos sobre "sedução" (SE, 3: 196-197). Há, então uma boa razão para suspeitar que seu encontro com o jovem austríaco nunca ocorreu absolutamente. (Ver, Swales, 1982a). Nesse caso, é notável que Freud não pudesse construir mesmo um caso fictício que justificaria logicamente seu método de interpretação.

Já aposentado, Sebastiano Timpanaro estudou filologia clássica na Universidade de Florença antes de seguir uma carreira como professor de escola secundária, editor, e autor prolífico. Suas áreas de interesse incluem o pensamento marxista e a história cultural dos séculos dezoito e dezenove. The Freudian Slip (O Escorregão de Freud) foi recentemente seguido de um estudo a ele relacionado, até agora não traduzido para o inglês (Timpanaro, 1992).

Com o consentimento do jovem austríaco, Freud o submete a uma "análise" minuciosa. Obviamente, isto não pode ser considerado como uma autêntica sessão psicanalítica – do mesmo modo que, em geral, A Psicopatologia da Vida Cotidiana não se refere a neuroses reais, mas àqueles mecanismos "microneuróticos" que se manifestam igualmente em pessoas fundamentalmente saudáveis. Entretanto, a técnica empregada para voltar à causa do distúrbio de memória do jovem austríaco é, neste caso, a da "livre associação". Freud afirma: "Eu apenas preciso pedir a você que me fale sinceramente e sem criticismo tudo o que vier à sua mente se você dirigir sua atenção à palavra esquecida sem qualquer propósito definido". Assim, ocorre que o jovem judeu, iniciando com o pensamento de a-liquis, e oportunamente conduzido pelo método de Freud, associa esta palavra sucessivamente a ReliquienLiquidationFlüssigkeitFluid. Depois, recorrendo a São Simão de Trento, ele nos faz lembrar da criança cujo assassinato foi atribuído caluniosamente aos judeus no século XV, e cujas relíquias em Trento haviam sido visitadas recentemente pelo jovem judeu. Em seguida – através de uma sucessão de santos – o jovem chega a San Gennaro (São Januário) e ao milagre do sangue coagulado que se liquefaz, bem como à excitação que fascina as pessoas mais supersticiosas de Nápoles sobre se este processo de liquefação é retardado, uma excitação expressa por injúria pitoresca e ameaças lançadas ao santo. Finalmente, a associação evidencia o seu pensamento atormentado por um "fluxo ausente de líquido", visto que estava apreensivo de ter engravidado uma mulher italiana com quem havia estado – entre outros lugares – em Nápoles, e estava na expectativa de receber a confirmação de seu pior temor a qualquer momento.

Contudo, há mais: um dos santos em que o jovem austríaco pensa depois de São Simão é Santo Agostinho. Ora, Agostinho e Januário estão ambos associados ao calendário (agosto e janeiro), isto é, às datas de expiração que devem ter tido uma repercussão desastrosa para um jovem amedrontado em se tornar pai... Ainda mais: São Simão foi um santo criança, outra idéia desagradável. Ele havia sido assassinado enquanto ainda era bebê: isto se conecta à tentação de infanticídio – ou aborto como equivalente ao infanticídio. "Devo deixar isto a seu próprio julgamento", Freud conclui com satisfação, "para decidir se você pode explicar todas estas conexões pela suposição de que elas são questões de possibilidade. Eu posso, contudo, lhe falar que todo caso semelhante a este que você se interessar em analisar o conduzirá a "questões de possibilidade" que são exatamente como descobertas".

Será que a cadeia de associações ligando o esquecimento, por parte do jovem judeu, do termo aliquis, naquele verso de Virgílio, à sua confissão do medo que o aflige na ocasião, é tão inflexível como pareceu a Freud quanto parece a todos, ou ao menos à maioria, dos freudianos de hoje? Eu responderia que não; certamente, sou da opinião de que, sob o brilho dos fogos de artifícios intelectuais, poucos procedimentos podem ser considerados tão anticientíficos quanto aquele seguido por Freud nesse e em tantos outros casos análogos.

As "associações" que Freud, de acordo com seu bem conhecido método, permite ao seu paciente gerar espontaneamente, são de vários tipos. Há semelhanças fonéticas entre palavras tendo significados bem diferentes ou pertencendo até mesmo a idiomas diferentes (por exemplo, entre aliquis e Reliquien). Há afinidades entre os significados de palavras foneticamente dessemelhantes (e aqui novamente é irrelevante se elas pertencem ao mesmo idioma ou não – por exemplo, a afinidade entre Liquidation e Flüssigkeit – Fluído). Há também todos os tipos de conexões factuais e conceituais (Simão, Agostinho, e Januário eram todos santos; São Januário – San Gennaro – é associado a Nápoles, e o milagre de San Gennaro diz respeito à liquefação do sangue, etc.). Ora, não estamos preocupados em negar, em tese, a possibilidade de todas estas formas de associação (exceto em um caso: a facilidade excessiva com que, numa tradução, a língua materna do tradutor se sobressai e se torna dominante). Antes, nossa preocupação é salientar que, passando por tão variada gama de transições, é possível se chegar a um único ponto partindo-se de qualquer outro.

Se realmente existiu uma relação causal entre o esquecimento de aliquis pelo jovem austríaco e o seu medo da gravidez da mulher napolitana, ...então dever-se-ia concluir que o jovem austríaco tinha que se perturbar com aquela palavra e nenhuma outra – ou esquecendo-a, ou lembrando-a de forma alterada, ou introduzindo-a num contexto onde ela não era necessária. Indo um pouco além do limite, alguém poderia até admitir que um único pensamento desagradável, se conscientemente reprimido, poderia dar origem a sintomas diversos – neste caso particular, o esquecimento de várias palavras. Entretanto, alguém certamente não poderia admitir que a evocação imperfeita ou o esquecimento completo de qualquer palavra no verso de Virgílio poderia muito bem ser considerado um sintoma. Nesse caso, com uma causa produzindo qualquer número de efeitos, o conceito de relação causal perderia toda significação. Assim, poderíamos esperar que, se tomarmos uma série de contra-exemplos – isto é, se supusermos que alguma outra palavra naquele verso de Eneida fosse esquecida – então, a cadeia de associações se romperia, ou seria menos convincente do que no "autêntico" caso narrado por Freud.

Vamos supor que, aos invés de esquecer aliquis, o jovem austríaco se enganasse em exoriare, "renascer". Ele não teria tido nenhuma dificuldade em associar a idéia de "renascer" à de "nascer" (exoriare pode ter esses dois significados): o nascimento, ai!, de uma criança – tão temido por ele. Agora, vamos supor que ele esqueceu "nostris": o adjetivo latino noster teria trazido à mente o Pater noster católico..., e ele facilmente poderia associar Deus Pai aos santos, e – passando de santo a santo – eventualmente por San Gennaro e pela temida falta de menstruação da mulher; ou, mais diretamente, o pensamento do Pai no céu poderia ter provocado no jovem austríaco seu temor de logo se tornar um pai nesta terra. Ora, vamos supor que ele esqueceu ossibus: ossos são típicas relíquias de santos católicos, e tendo uma vez alcançado o pensamento de relíquias de vários tipos, o caminho estava novamente escancarado a San Gennaro. Do mesmo modo, o jovem austríaco poderia ter associado os "ossos" a os (pronunciado com um ? longo) “dentes” e, portanto, aos beijos apaixonados que ele dava em sua amante, e a todos os eventos comprometedores que se seguiram aos beijos (talvez Freud tivesse nesse ponto acrescentado uma daquelas digressões poliglotas de que tanto gostava, e.g., o uso eufemístico do verbo baiser em francês). Finalmente, o que aconteceria se ele esquecesse ultor? Nesse caso, muitos itinerários seriam possíveis. Ultor não soa muito diferente de Eltern ("pais" em alemão), e esta palavra teria reconduzido nosso jovem ao doloroso pensamento de si mesmo e da mulher como pais da criança que talvez já tivesse sido concebida...

Será que estas conexões que acabei de fazer (e que poderiam ser alteradas e expandidas à vontade) são coisas grotescas? Certamente que são. Contudo, será que as conexões por via das quais Freud explica, ou antes, faz seu interlocutor explicar, o esquecimento de aliquis são menos grotescas ou menos ao "acaso"?...

O "mecanismo interpretativo" da psicanálise, observa corretamente Gilles Deleuze, "pode ser resumido como se segue: tudo o que você diz significa algo mais". Em conformidade com esta norma, Freud pede ao jovem para "levar em conta mesmo assim as associações provenientes de exoriare"; o jovem, por sua vez, chega à palavra Exorzismus. Esta resposta, vale notar, não causaria nenhuma surpresa porque, se consultarmos um dicionário alemão, descobriremos que, excetuando-se as palavras Exordium e Exorbitanz, ambas raras, a única palavra alemã começando com exor – é precisamente Exorzismus. Contudo, Freud imediatamente vê na palavra Exorzismus um retorno aos nomes dos santos (na medida em que eles são dotados do poder para exorcizar o demônio) e à possibilidade de conexão com San Gennaro e tudo o que se segue.

Mais tarde, em um adendo a esta mesma nota de rodapé escrita em 1924, Freud se refere à opinião expressa por P. Wilson, o qual atribuiu ainda mais significado à idéia de exorcismo, mas a interpretou ainda de outro modo, sem passar por San Gennaro: "O exorcismo poderia ser o melhor representante simbólico para pensamentos reprimidos sobre livrar-se de uma criança indesejada através do aborto". Aqui está um tranqüilo comentário de Freud: "Eu aceito esta correção de bom grado, pois ela não enfraquece a validade [literalmente: o caráter inexorável,Verbindlichkeit] da análise". Assim, somos levados a considerar que, no momento em que eventualmente somos bem sucedidos em estabelecer uma conexão causal entre a desafortunada citação que o jovem faz de Virgílio e o seu medo da gravidez da mulher, é irrelevante se apontamos como sintoma o seu esquecimento de aliquis ou a sua recordação particularmente intensa, de exoriare (explicada, como temos visto, de dois modos diferentes)! O curioso é que Freud vê esta profusão de explicações competitivas como confirmação da validade de seu método, sem jamais perguntar a si mesmo se esta superabundância, esta ilimitada substituição de explicações, não poderia ser uma indicação da deficiência construção psicanalítica, ou de sua "infalseabilidade" e, conseqüentemente, a ausência de qualquer valor probatório, do método que ele emprega.

O termo "falseabilidade" pode legitimamente dar origem a intermináveis disputas epistemológicas – discussões entre "verificacionistas" e "falseacionistas"; discussões sobre o assim chamado experimentum crucis, ao qual fortes objeções têm sido feitas e cuja validade é agora geralmente negada; discussões sobre a distinção entre "verificação" e "confirmação" e sobre a prioridade da última. No entanto, eu poderia sustentar que os contra-exemplos aqui dados e outros desenvolvidos posteriormente são pertinentes a um nível muito mais modesto e artesanal, e porque muitas razões são válidas sem levar em conta refinados debates epistemológicos... Sempre será verdade que uma teoria, ou uma explicação particular que pretende ser científica, deva ser de um tal modo que não frustre todas as formas de controle. É necessário poder dizer de um fato empírico que, se ele for verdadeiro, invalidará a teoria ou a explicação em questão. Se isto não for possível, se a explicação para um determinado fato puder com igual facilidade explicar qualquer outro fato, então será necessário concluir que esta explicação não tem valor científico. Tal objeção está sendo cada vez mais freqüentemente dirigida à psicanálise; e, pelo que sei, ela ainda não foi respondida...

Também podemos notar o caráter "sugestivo" de muitas das intervenções nos diálogos de Freud. O método da "livre associação" (livre de interferências externas e de interpelações críticas do próprio sujeito, e precisamente por esta razão adaptada a uma estrita concatenação causal), que a pessoa sob análise é solicitada a fazer, devia, como sabemos, ser comparado a um método correspondente de "suspensão de juízo" da parte do analista: até o momento da interpretação, o analista, tal como seu paciente, se absteria de qualquer depuração crítica do discurso que poderia prematuramente privilegiar qualquer dos seus elementos à custa de outros. A adesão a este modelo é difícil, senão impossível, e esta parece ser uma das principais razões – há outras – pelas quais ele permanece como uma questão polêmica entre os sucessores de Freud, muitos dos quais o têm abandonado.

Por outro lado, em pouquíssimos casos de análise essa polêmica parece ser também abertamente desprezada, como no episódio que ora ocupa nossa atenção... Por exemplo, quando o jovem austríaco diz que ele se recorda de um companheiro de nome Benedito, que encontrou numa viagem na semana anterior, Freud intervém para dizer que este nome, do mesmo modo que aqueles anteriormente recordados, Simão e Agostinho, é de um santo, e então apresenta a seqüência de recordações anteriormente constituída e da qaual ele havia ameaçado se desviar. A essa altura, tendo o amigo Benedito sido descrito pelo jovem austríaco como ein wahrer Original (uma fonte real)", Freud acrescenta, com aparente indiferença: "certa vez conheci um padre de igreja chamado Origen". O comentário é indireto, representando uma espécie de "carta escondida na manga" cujo valor de forma alguma é desprezível. Na verdade, a principal pretensão de enfatizar a palavra Origen reside no fato desta simbolizar autocastração, ou no fato de que o segundo elemento do nome, derivado da raiz grega que designa geração ou nascimento, pode reunir adiante várias associações de natureza sexual, caso haja necessidade disso.

Mais significativo, contudo, do que as intervenções particulares de Freud no diálogo, é a atmosfera geralmente sugestiva na qual o jovem austríaco se encontra imerso no começo da conversa. Embora ele tivesse encontrado Freud pessoalmente uma única vez, numa viagem de férias, ele conhecia os escritos de Freud sobre psicologia – como o próprio Freud nos revela... Ele sabe que está face a face com o terrível Doutor Freud que, dizem – e isto também se destaca em suas obras – é capaz de obter confissões até mesmo do que é menos confessável. Ele está intrigado quanto a se Freud terá sucesso com ele também, embora ele já esteja meio convencido de que terá; e essa crença é posteriormente confirmada, pois Freud trapaceia um pouco: se no passado ele havia admitido que as análises tinham falhado porque as resistências eram muito fortes, nesta ocasião ele ostentou uma confiança completa, reivindicando que a análise "não deveria nos tomar muito tempo". Antes que a análise vá muito longe, o jovem pergunta: "já descobriu alguma coisa?" É a criação desta espécie de convicção fatalista – de que "alguém não pode se opor a Freud"; que não importa quão forte é a resistência de alguém, a vontade secreta de alguém certamente será extraída – que, mais do que qualquer dos pontos específicos que temos notado, é o mais poderoso meio de sugestão no relato de Freud.

Isto é ainda mais real no presente caso, onde o segredo não está escondido nas profundidades do inconsciente: a ansiedade do jovem sobre a possível gravidez da mulher italiana era real e presente, e não um pensamento reprimido... Isto precisamente porque o medo de se tornar pai era o que "dominava" secretamente os pensamentos do jovem que era também a idéia que ele achou a mais desagradável de revelar, e ainda, se conscientemente ou não, a mais evocada para confessar. Se esta era a situação, pouco importa que o que originou a interrogação foi o esquecimento de aliquis. Algum outro "ato falho", alguma manifestação mais trivial de nervosismo, podia ter funcionado apenas como o ponto de partida para uma análise, que em cada caso teria levado à mesma conclusão...

Contudo, Freud ainda induziu seu interlocutor não apenas a confessar sua ansiedade, mas também... a admitir a exatidão da explicação freudiana de seu "ato falho". Tocamos aqui num problema que Freud se ocupou explicitamente na terceira de suas Lições Introdutórias de 1915-16, onde ele especula sobre a possibilidade de uma explicação psicanalítica ser rejeitada pela pessoa que cometeu o "ato falho". Em quem devemos acreditar em tal situação? De acordo com Freud, no analista. Porém, continua ele a dizer, seus leitores objetarão: "Essa é sua técnica[...] Quando uma pessoa que tem cometido um "ato falho" diz algo sobre aquilo que convém a você [i.e., imputa ao pensamento reprimido responsabilidade por sua produção] você afirma ser ele a autoridade decisiva final no assunto. [...]Contudo, quando o que ele diz não se ajusta à sua obra, então subitamente você diz que ele não tem nenhuma importância – não há necessidade de acreditar nele". Freud então responde: "Que isso é completamente verdadeiro. Entretanto, eu posso apresentar um caso parecido a você no qual o mesmo evento monstruoso ocorre. Quando alguém acusado de um crime confessa seu ato ao juiz, o juiz acredita nessa confissão. Se fosse de outro modo, não haveria nenhuma administração de justiça, e apesar de eventuais erros devemos permitir que o sistema funcione". Mas o interlocutor não se dá por satisfeito: "Então você é um juiz? E a pessoa que cometeu um "ato falho" é tratado por você como uma ré? Assim, cometer um "ato falho" é um crime,?" Ele responde. "Talvez não precisamos rejeitar a comparação", e propõe a seus leitores (ênfase minha) "um compromisso provisório, baseado na analogia com o juiz e o acusado. Sugiro que você concorde comigo que não pode haver dúvida no fato de que um ato falho faça sentido se o próprio o admite. Eu admitirei em troca que não podemos chegar a uma prova direta do sentido imaginado se o sujeito nos nega informação, ...e igualmente, de fato, se ele não tem à mão a informação para nos dar".

A comparação entre a relação de juiz e acusado e a de analista e paciente revela uma concepção geralmente autoritária da psiquiatria e da medicina; além disso, até mesmo dentro da estrutura de uma tal concepção os critérios psicológicos aos quais ele apela são extraordinariamente deficientes. Poder-se-ia dizer que este investigador das muitas complexidades da "psicologia profunda" tinha uma visão estranhamente simplista quando ela chega a certos mecanismos da "psicologia superficial", com os quais até mesmo um juiz burguês sem tendência particularmente retrógrada nem um professor moderadamente iluminado esteja familiarizado - e não estaria mesmo no tempo de Freud. A veracidade de qualquer confissão é aceita por Freud sem questionamento, e o juiz (e o psicólogo e o professor) não precisa, desse modo, verificá-la. A possibilidade de que, até mesmo fora de qualquer forma violenta de coação, um acusado (ou paciente, ou aluno, ou criança) seja induzido pelas sugestões de um interrogatório a "confessar" coisas que ele não fez – tomando por "coisas" para ações não apenas em si mesmas, mas também pensamentos, intenções, motivações – é prontamente ignorada.

Além disso, quando Freud fala da "admissão do sentido de um ato falho", ele confunde dois fatos bem diferentes. Já comentamos a diferença entre eles em nosso tratamento do esquecimento de aliquis: de um lado, há o fato – isto, por certo, é inegável – de que o jovem austríaco temia a notícia da gravidez da mulher italiana; de outro lado, há a cadeia causal presumida como ligando este fato com o esquecimento de aliquis. Agora, confrontado com um Freud já de posse de uma teoria dos "atos falhos" - o qual está numa posição de associar tudo com tudo (isso se segue das acrobáticas e "infalseáveis" associações que acabei de apresentar), e que responde a uma dúvida manifestada pelo jovem austríaco quanto à relação entre dois pensamentos com abrupta autoridade: "Você pode deixar a conexão para mim", - o paciente está numa situação obviamente inferior, porque ele não tem nenhuma explicação alternativa à sua disposição. Ele é, portanto, inevitavelmente induzido a acreditar que se Freud, que elaborou sua explicação com base em um fato verdadeiro (o esquecimento de aliquis), encontrou uma maneira de fazê-lo "deixar escapar" um outro fato verdadeiro cuja confissão é desagradável (o medo de gravidez da mulher), então o procedimento adotado deve ter sido cientificamente correto. Entretanto, os contra-exemplos que já tenho dado nos mostram que as coisas não são tão diretas assim.

Igualmente, para Freud, qualquer recusa de responsabilidade pelo acusado, ou de explicação do "ato falho" pelo paciente, embora seja certamente considerado como um fator complicador no trabalho do juiz ou o do analista, não pode ser admitido com tanto valor quanto a convicção de que a responsabilidade ou a explicação é justificada. Prestemos atenção àquelas palavras que acabamos de citar: "compromisso provisório". Freud se satisfaz com esta fórmula porque ele não pode desejar numa única conferência superar o ceticismo e, acima de tudo, as "resistências" de seus leitores. Contudo, a palavra "compromisso" claramente indica que, em sua opinião, a solução real é alguma coisa que não esta: o paciente está sempre, ou quase sempre, errado quando recusa uma explicação porque toda negação de sua parte é, na verdade, uma manifestação de resistência, e assim uma confissão involuntária...

Um professor nota alguma quebra de disciplina, e pergunta: "Quem fez isso?" Um jovem aluno, ou porque sabe que já está sob suspeita por seu mau comportamento em outras ocasiões ou porque ele vê, ou pensa que vê, o olhar do professor fixado nele, se apressa em responder: "Não fui eu!" Se o professor (embora o mesmo se aplique, com pequenas modificações, ao agente da lei ou ao psicanalista) conclui: "Então foi ele", ele estará enganado na grande maioria dos casos. Assim, uma vez mais registramos o modo pelo qual seu entusiasmo por suas próprias teses fez com que o mestre da psicologia profunda não se apercebesse das sutilezas da "psicologia superficial".

*In The Freudian Slip: Psychoanalysis and Textual Criticism, 1974, cap.8 pp. 94-105. In: Unauthorized Freud: Doubters Confront a Legend, editado por Frederick Crews, New York, 1998. Tradução: Lígia Maria Cardoso. Revisão: Marco A. Frangiotti. Florianópolis, 2002.

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