O «mito dos dois terços»

Um dos mitos mais persistentes em matéria de avaliação é o «mito dos dois terços». Este mito consiste em pensar que se um aluno tiver aproveitamento positivo no primeiro e no segundo período, não pode ter uma classificação final negativa.

O argumento subjacente é este: as classificações do 1.º e 2.º período, sendo positivas, atestam que o trabalho do aluno em dois terços do ano lectivo foi positivo. Ora, sendo a avaliação contínua, o trabalho do último terço, mesmo que seja negativo, não pode sobrepor-se ao trabalho positivo já efectuado, pelo que, tudo considerado, o aluno já não poderá ter classificação negativa no 3.º período.

O objectivo deste texto é mostrar que isto é um erro.


Legislação


Em primeiro lugar, o «mito dos dois terços» viola o disposto no n.º 4.2 do Despacho Normativo 10/2004 que tem a seguinte redacção:

Em cada ano lectivo, o aproveitamento final de cada disciplina é expresso pela classificação atribuída pelo conselho de turma, na reunião de avaliação do 3.º período, pelo que aquela classificação deve exprimir a apreciação global do trabalho desenvolvido pelo aluno e o seu aproveitamento escolar ao longo do ano.

Este artigo do Despacho diz-nos três coisas:

1) o aproveitamento final de cada disciplina é expresso pela classificação atribuída pelo conselho de turma na reunião de avaliação do 3.º período;

2) a classificação deve exprimir a apreciação global do trabalho desenvolvido pelo aluno ao longo do ano lectivo; e

3) a classificação deve exprimir o seu aproveitamento escolar ao longo do ano lectivo.

Como os partidários do «mito dos dois terços» pensam que quando um aluno tem classificação positiva nos dois primeiros períodos não pode ter classificação negativa no 3.º, fazendo com que a classificação final, na prática, seja determinada pela classificação do 2.º período, segue-se que violam 1) e tiram ao 3.º período qualquer razão de ser.

2) e 3) dizem, respectivamente, que a classificação deve exprimir a apreciação global e o aproveitamento ao longo do ano lectivo, o que significa que o trabalho e o aproveitamento do aluno no 3.º período têm de ser tidos em conta para determinar o aproveitamento final (quer faça subir ou descer a classificação). De notar ainda que a redacção de 1), 2) e 3) na lei tem a forma de um argumento: dado 1), segue-se 2) e 3), não deixando assim lugar para dúvidas acerca da intenção do legislador em afirmar que o aproveitamento se reporta à totalidade do ano lectivo.


O conceito de avaliação contínua


Uma vez que a legislação não deixa margem para dúvidas, como se explica a persistência do «mito dos dois terços» no sistema educativo português? Uma das razões está no deficiente conhecimento ou mesmo o desconhecimento da legislação. Esta não é uma razão desculpável. A legislação, apesar de dispersa por vários documentos, não está tão dispersa nem é numa extensão tal que impossibilite o seu conhecimento.

A principal razão parece ser, no entanto, uma concepção errada da noção de «avaliação contínua», quer essa concepção tenha origem na tradição, isto é, na persistência de antigos hábitos, quer não. Uma vez que o conceito de avaliação contínua se presta a tantos equívocos é necessário tentar precisar o seu significado.

O Despacho Normativo 338/1993 no seu artigo n.º 3 do Anexo limita-se a dizer que a avaliação tem «carácter sistemático e contínuo», o que repete no artigo n.º 14, sem especificar, quer num caso quer noutro, o que se entende por isso. Os outros documentos que constituem os diplomas de referência para a actuação das escolas e para informação completa dos alunos no âmbito da avaliação (Despachos Normativos n.os 45/96, de 31 de Outubro, 11/2003, de 3 de Março, e 10/2004 de 2 de Março) também não fazem qualquer tentativa de definir «avaliação contínua». E o mesmo acontece, tanto quanto pudemos verificar, com a Lei de Bases do Sistema Educativo. Apesar, portanto, de não haver uma definição explícita de «avaliação contínua» em nenhum dos despachos ou leis que regulamentam a avaliação, a referência do Despacho Normativo 388/93 ao seu carácter sistemático e contínuo indica que por avaliação contínua se entende uma avaliação que decorre ao longo de todo o ano lectivo. Se isto é correcto, a definição de avaliação contínua coincide, grosso modo, com 2) e 3) do artigo 4.2 do Despacho Normativo 10/2004 e, portanto, é tão incompatível com o «mito dos dois terços» quanto o são 2) e 3) do referido Despacho. Como os defensores do «mito dos dois terços», apesar de dizerem que a avaliação é continua, na prática dividem o ano lectivo em terços, entendem por avaliação contínua a soma destas descontinuidades em que dividem o ano lectivo e violam as disposições consignadas na lei.


Preconceitos


Outra razão para a persistência do «mito dos dois terços» reside nos preconceitos que os professores tomam como verdades evidentes. Um desses preconceitos é o de que os alunos não podem desaprender o que aprenderam. É tão óbvio que esta ideia não tem qualquer justificação que se torna difícil compreender a sua persistência. Todos nos esquecemos de coisas que já soubemos e os alunos não são excepção. E se pensarmos um pouco na forma assistemática com que a maior parte dos alunos estuda, essa conclusão impõe-se como inevitável. Portanto, o facto de um aluno em dada altura dominar um determinado conteúdo e ter tido uma classificação positiva na avaliação sobre esse conteúdo, não impede que num momento posterior, o mesmo aluno sobre o mesmo conteúdo, tenha uma avaliação negativa.

 

Outro preconceito é o de que uma vez apurada uma classificação positiva nos supostos «dois terços» do ano lectivo, é objectivamente impossível que, considerado todo o ano lectivo, os «três terços» a classificação final possa descer.

Outra coisa que torna o mito tão persuasivo é o facto de introduzir sub-repticiamente uma apreciação qualitativa na avaliação. Dessa forma, o mito desvia a atenção dos professores do que está em apreço, a saber, a classificação que o aluno deve ter no 3.º período, para o facto de a classificação proposta ser negativa e o aluno poder ficar retido, e leva-os a concluir que, nesse caso, a classificação do aluno não pode ser negativa. Ora, na maior parte das vezes esta passagem de uma classificação positiva no 2.º período para uma classificação negativa no 3.º corresponde a uma descida de 1 ou 2 valores que, quando ocorre dentro da positiva (por exemplo, 18, 18, 16) ou da negativa (8, 8, 6), é considerada perfeitamente normal. (Ainda é considerada mais normal se se tratar de uma subida como, por exemplo, em 16, 16, 18 ou em 8, 8, 10) O mito inverte, assim, a forma como a classificação do 3.º período é nestes casos determinada, fazendo com que se parta de considerações qualitativas para considerações quantitativas, quando o processo, obviamente, deve ser o inverso. O facto de a classificação do 3.º ser negativa é um factor a ter em conta e o professor deve ponderar e apresentar as razões da sua decisão, a qual, em função das razões que apresentar, pode ou não ser aceite. Mas, isto é muito diferente de inverter o processo de avaliação e assumir à partida que a classificação não pode ser negativa.


Consequências


Uma das consequências práticas do mito é que o 3.º período só serve para um aluno melhorar a classificação que obteve no 2.º período. Com efeito, se se sustenta, como fazem os defensores do «mito dos dois terços» que um aluno, depois ter tido classificação positiva nos dois primeiros períodos não pode ter classificação negativa no terceiro, então ou esse aluno tem a mesma classificação que teve no segundo período ou tem melhor. Se, por exemplo, um aluno que tenha uma classificação de 10 valores no 2.º período, não pode ter 9 no terceiro, então também um aluno que tenha 13 no 2.º não pode ter 12 no 3.º, e assim por diante, isto é, um aluno nunca pode descer a sua classificação do 2.º para o 3.º período. Mas se um aluno não pode descer a sua classificação do 2.º para o 3.º período, isso significa que tem assegurada no 3.º período a classificação do 2.º período. E, portanto, se tem assegurada a classificação do 2.º período no 3.º período, tudo para que o 3.º período pode servir é para subir a classificação. É claro que isto não faz sentido.

 

Além disso, se o aluno estiver satisfeito com a nota do 2.º período, pode não fazer nada no 3.º e, assim, outra implicação do mito é a de que um aluno só tem de estudar se estiver insatisfeito com a classificação do 2.º período.

 

Uma última consequência disto tudo é que o aluno que tenha uma classificação positiva no final do 2.º período tem a disciplina feita nessa altura. Ora, isto viola o disposto no artigo 4.2 do Despacho Normativo 10/2004.

 

Em resumo, o «mito dos dois terços» tem como consequência que o 3.º período é apenas para aqueles alunos que

1) têm classificação positiva no final do 2.º período, mas não estão satisfeitos com ela; ou

2) têm classificação negativa no final do 2.º período.

O facto de um aluno que tenha classificação positiva no final do 2.º período não necessitar de estudar é uma consequência suficientemente má do «mito dos dois terços» para que se justifique o seu abandono. Mas, se aplicarmos rigorosamente o princípio que subjaz ao mito, as consequências serão ainda mais impressionantes.

 

Com efeito, tudo o que um aluno precisa de fazer para obter classificação positiva no final do 2.º período é obter classificação positiva no primeiro e ter uma avaliação positiva no primeiro dia de aulas do 2.º período (ou na 1.ª hora, etc.). Dessa forma, o aluno tem avaliação positiva em mais de um terço do ano e, portanto, classificação positiva no final do 2.º período e, consequentemente, do 3.º. Assim, se um aluno tiver, por hipótese, avaliação positiva em um terço do ano mais um dia, o resto do 2.º período e todo o 3.º servem apenas para melhorar a sua classificação, caso não esteja, apesar de tudo, satisfeito com ela. Mas caso esteja satisfeito, não precisa de estudar mais porque a classificação positiva no final do 3.º período está assegurada.

 

Podemos ilustrar as consequências desastrosas do «mito dos dois terços» e destruir o preconceito de que é objectivamente impossível que um aluno, depois de ter classificação positiva em dois terços do ano lectivo, possa ter, considerando o terceiro terço, classificação negativa com alguns exemplos. Apresentamos as classificações de testes com a respectiva média no fim do 2.º período e no fim do 3.º período. Claro que estes exemplos são simplificações e que não têm em conta outros elementos de avaliação, mas seria fácil introduzir esses outros factores de modo a acompanharem os resultados obtidos em testes.


Alunos que transitam tendo classificação positiva apenas no 1.º teste


Testes dos 1.º 
e 2.º Períodos
Média no final 
do 2.º Período
Teste do
3.º Período
Média no final
do 3.º Período
12 9 9 8 (9,5) 6 (8,9)
12 9 9 8 (9,5) 7 (9,1)
13 9 8 8 (9,5) 7 (9,1)
13 9 7 9 (9,5) 6 (8,9)

Dado que a média no final do 2.º período é positiva, estes alunos teriam, pela aplicação rigorosa do mito, a transição assegurada.


Outros alunos que transitam tendo obtido apenas uma classificação positiva durante todo o ano lectivo.

 

Dir-se-ia que a progressão negativa do aluno, nos exemplos anteriores, é suficiente para que os professores atribuam no 2.º período uma classificação negativa. Nesse caso bastará alterar a ordem das classificações dos testes dos 1.º e 2.º períodos para que esse critério se torne irrelevante. Exemplos:


Testes dos 1.º 
e 2.º Períodos
Média no final 
do 2.º Período
Teste do
3.º Período
Média no final
do 3.º Período
9 12 8 9 (9,5) 6 (8,9)
9 13 7 9 (9,5) 6 (8,9)

É mais fácil transitar com progressão negativa do que com progressão positiva!

 

O mito assegura a transição deste aluno apesar da maioria de classificações negativas e da progressão claramente negativa:


Testes dos 1.º 
e 2.º Períodos
Média no final 
do 2.º Período
Teste do
3.º Período
Média no final
do 3.º Período
12 11 9 8 (10) 6 (9,2)

A média de 10 no 2.º período assegura os «dois terços positivos» tornando irrelevante as classificações obtidas no 3.º período. Mas, com as mesmas classificações na ordem inversa, o mito já impossibilita a transição apesar da progressão claramente positiva!


Testes dos 1.º 
e 2.º Períodos
Média no final 
do 2.º Período
Teste do
3.º Período
Média no final
do 3.º Período
6 8 9 11 (8,5) 12 (9,2)

Em regra os defensores do mito aceitam a transição dos alunos que obtiveram os dois últimos conjuntos de classificações. No primeiro caso, apelam ao mito; no segundo caso, põem de lado o mito e apelam à progressão positiva para justificar a transição. A aplicação inconsistente de critérios parece não ser problema desde que a transição seja assegurada.


Os alunos podem transitar ou ter aprovação a uma disciplina no 11.º ano apenas com uma classificação positiva a essa disciplina durante os 10.º e 11.º anos


Testes dos 1.º 
e 2.º Períodos
Média no final 
do 2.º Período
Teste do
3.º Período
Média no final
do 3.º Período
8 9 8 9 (8,5) 9 (8) Classificação do 10.º ano: 9
9 13 7 9 (9,5) 6 (8,9) Classificação do 11.º ano: 10

Este aluno, consideradas todas as avaliações ao longo dos dois anos, obteve a média de 8,6 valores. Não teve avaliações positivas no 10.º e teve apenas uma, de 13 valores, no 11.º ano. Essa solitária positiva assegura-lhe, no entanto, a classificação de 10 valores no 2.º período e, graças ao mito, também no 3.º.


Para as disciplinas trianuais não é preciso estudar no 12.º ano

 

Esta é uma curiosa consequência do mito: numa disciplina trianual, a média positiva dos 10.º e 11.º anos, obtida no final do 11.º ano, correspondendo a dois terços da disciplina, assegura a classificação positiva no final do 12.º ano. Claro que isto (ainda?) não acontece de facto, mas apenas porque os defensores do mito são inconsistentes.


Considerámos nos nossos exemplos que o aluno faria apenas um teste no 3. Período. Mas, apesar de isso se ter tornado habitual nos últimos anos, nada impedia o professor de fazer dois testes. Afinal a avaliação contínua opõe-se à divisão do ano escolar em blocos e, por isso, o professor poderia avaliar cedo matérias cujo ensino iniciou ainda no 2º período.

 

É frequente os defensores do «mito dos dois terços», quando algum professor pretende atribuir uma classificação negativa no 3.º período depois de ter atribuído classificação positiva no final do 1.º e do 2.º períodos, afirmarem que o professor deveria ter atribuído classificação negativa no 2.º período, de modo a salvaguardar a possibilidade do aluno descer ou deixar de trabalhar no 3.º e que, o facto de não o ter feito, o obriga a atribuir uma classificação positiva no 3.º período. Esta solução é inadequada por várias razões.

 

Em primeiro lugar, o professor não tem de ser adivinho ou comportar-se como tal. Não faz ― e não deve fazer ― parte das competências do professor prever o futuro. No entanto, é comum nos conselhos de turma do 1.º e 2.º períodos, os professores apelarem à progressão dos alunos para fazer previsões e, dessa forma, justificar as classificações que atribuem. É de notar, contudo, que a progressão não tem como função fazer previsões e, ainda menos, fazer previsões que se reflictam nas classificações. Uma progressão positiva ou negativa dos resultados deve servir apenas para informar o professor sobre a presença ou ausência de esforço de aquisição e consolidação de competências.

 

Em segundo lugar, e mais importante, mesmo que o professor fosse capaz de prever o futuro, a classificação do final de um período deve ser atribuída em função do que o aluno fez nesse período e não em função do que possa ou não fazer no 3.º período. Utilizar a estratégia de atribuir uma classificação negativa a um aluno no 2.º período para prevenir o que quer que seja que possa ocorrer no 3.º é injusto e, por isso, inaceitável.

 

Em terceiro lugar, esta estratégia esquece que a finalidade dos conselhos de turma é avaliar o desempenho do aluno e não do professor. Mesmo que o professor, por hipótese, tenha atribuído uma classificação incorrecta ao aluno (salvaguardando, bem entendido, casos em que a incorrecção vá para além de tudo o que seja de esperar, como atribuir um 15 quando o aluno deveria ter 9, por exemplo), o que está em causa é a classificação que o aluno deve ter. Acusar o professor de ter cometido um (suposto) erro e com isso pretender obrigá-lo a atribuir uma classificação positiva no 3.º período a um aluno que, de facto, deve ter uma classificação negativa é inaceitável, porque não é o professor que está a ser avaliado, mas o aluno.


Conclusão


Se as razões que apontámos estão correctas, o «mito dos dois terços» viola a legislação em vigor sobre avaliação e tem pressupostos e consequências inaceitáveis. A persistência do mito é, então, injustificada. Está, portanto, na altura de o substituir por outro sistema de avaliação. Mas isso, claro, é outra história.

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