UTILITARISMO KANTIANO?

Introdução

No recente ensaio "Could Kant Have Been a Utilitarian", Hare insistiu, mais uma vez, na compatibilidade entre a ética kantiana e o utilitarismo (cf. 2000: 147s.; ver também: 1963: 124; 1981: 4; 1993: 187). Na comunicação apresentada na última ANPOF, tentei argumentar que a outra sugestão de Hare, feita também naquele artigo, a saber, que Kant poderia ter sido um utilitarista é enganadora (cf. Dall’Agnol 2000b: 39). Uma razão para pensar assim é que mesmo que na ética kantiana exista, como Hare corretamente salientou, uma preocupação com a felicidade alheia, esta é apenas um deverimperfeito, isto é, seu não cumprimento não produz culpa, mas apenas mostra uma deficiência no valor moral do agente (MS: 390). Mas a principal razão para rejeitar a sugestão de Hare foi a de que um utilitarista não consegue incorporar no seu sistema ético um princípio kantiano elementar: o de que seres racionais são fins em si. Isto significa, por um lado, que um utilitarista subscreveria uma regra que maximizasse a felicidade para um maior número de pessoas mesmo que isto significasse o sacrifício da felicidade de uma minoria incluindo aí, eventualmente, o desrespeito aos seus supostos direitos individuais. Por outro lado, Kant daria prioridade à uma máxima que ordenasse o respeito à pessoa e não à uma que prescrevesse a sua felicidade.

A teoria ética de Hare pretende-se formalmente kantiana, mas é preenchida com conteúdos utilitaristas. Desde Freedom and Reason, sustenta que o princípio da universalizabilidade dos juízos morais pode dar origem "a um sistema de moralidade que tanto Kant quanto os utilitaristas poderiam aprovar –Kant na sua forma e os utilitaristas o seu conteúdo" (1963: 124). Como veremos, a prescritividade, a universalidade e a sobreposição "autoritativa" (overridingness) seriam as principais características formais kantianas; a satisfação racional de preferências forneceria o conteúdo utilitarista. EmMoral Thinking, sustenta que tanto kantismo quanto utilitarismo são parcialmente verdadeiros e diz que pretende fazer uma síntese destes dois sistemas éticos (p.43) que é supostamente levada a cabo na segunda parte do livro. Em Sorting out Ethics, afirma que a prescritividade, enquanto elemento formal, é importante para construir um sistema utilitarista (2000a: 78). Recentemente, chegou a autodenominar-se um "utilitarista kantiano" (1993: 3).

O objetivo do presente ensaio é discutir até que ponto o projeto de Hare faz sentido. Quer dizer, a questão que pretendo discutir é esta: poderia Hare ter sido, realmente, um kantiano? Minha resposta será idêntica àquela dada à pergunta se Kant poderia ter sido um utilitarista, a saber, será negativa. A principal razão para sustentar este ponto de vista é a seguinte: por um lado, a ética kantiana é anticonseqüencialista e não prima pela maximização do bem-estar geral; por outro lado, o utilitarismo é fundamentalmente conseqüencialista. Dito de outro modo: tentarei mostrar que Hare realmente usa uma estrutura meta-ética formalmente kantiana, mas que também, sob o ponto de vista dos conteúdos, permite a introdução de elementos que são eminentemente anti-kantianos. Portanto, sustentarei que a suposta síntese entre kantismo e utilitarismo só é possível sob o pressuposto do abandono de princípios básicos do kantismo. A conclusão será a de que Hare não pode ser considerado um kantiano, isto é, que é, na verdade, um conseqüencialista.

1 – Meta-ética: a estrutura formal do prescritivismo universal

Hare tem mantido em quase todos os seus escritos éticos ([1952]: 162-179; 1963: 4s.; 1981: 16s.; 1993: 21s; 2000a: 16s.) que a linguagem moral, juntamente com imperativos do tipo "Feche a porta", pertence ao genus da linguagem prescritiva. Isto significa, basicamente, que sua função primária é recomendar cursos de ação. Compreender este ponto e marcar a differentia da linguagem moral dos outros tipos de linguagem prescritiva é essencial para avaliar detalhadamente a crítica que Hare faz às teorias descritivistas: o naturalismo e o intuicionismo. Mas é importante salientar que ele não pretende reduzir a linguagem moral a imperativos e que sublinhar o seu caráter prescritivo não significa negligenciar o seu elemento descritivo ([1952]: 2). O que confere um elemento descritivo aos julgamentos valorativos é o padrão (standard) moral revelado (1963: 23). Por exemplo, no juízo moral "Pedro é uma boa pessoa", o padrão pode ser, por exemplo, a sua coragem. "Coragem" é um termo com significado valorativo secundário que possui conteúdo descritivo (1963: 24). Portanto, é necessário manter estas distinções presentes para evitar mal-entendidos.

O caráter eminentemente prescritivo da linguagem moral tem sido notado, segundo Hare, por vários filósofos da moral. Ele estaria presente na distinção aristotélica entre silogismo teórico e prático, nas suas noções de escolha deliberada e de prudência, na famosa questão levantada por Hume da relação entre ser e dever-ser, na distinção entre autonomia e heteronomia da vontade em Kant, mais especificamente na noção de vontade racional, nas tentativas de Moore de refutar o naturalismo. De acordo com Hare, também Sócrates, Platão e Mill foram prescritivistas (cf. [1952]: 26-30; 2000a: 130). Para notar a proximidade com alguns destes filósofos, principalmente com um que vai nos ocupar neste trabalho, é suficiente salientar que Hare chega a afirmar que prescrições inconsistentes são contradições da vontade no sentido de Kant (cf. 1981: 109).

Uma das formas de compreender o caráter específico da linguagem moral, a saber, a sua prescritividade, é discutir algumas teorias que pretendem reduzi-la ao modo indicativo representadas sobretudo pelo descritivismo. Considere o seguinte exemplo. Imagine que alguém diga: "Esta é uma boa maçã". Poderíamos supor, usando explicações naturalistas, que isto não significa outra coisa senão "Esta maçã está madura, é doce, etc.". Mas, de acordo com Hare, então "torna-se impossível para nós dizer certas coisas que na nossa linguagem comum dizemos" ([1952]: 85). O que quotidianamente queremos dizer é que uma maçã é boa porque é doce, porque está madura, etc. e prescrever algo em relação a este estado de coisas. Portanto, "bom" não pode denotar somente propriedades descritivas. A palavra possui um elemento prescritivo que não é capturado por nenhuma teoria naturalista ou descritivista. Esta forma de raciocinar lembra o famoso argumento da questão-em-aberto utilizado por Moore contra o naturalismo (1993: 67; cf. também Dall’Agnol 2000a). Hare apresenta outros argumentos contra o descritivismo como, por exemplo, uma tentativa de reductio ad absurdum (1993: 113s.) e a noção austiniana de uma falácia descritiva (1981: 67; 1993: 120). Discutir estes argumentos, todavia, está além dos limites deste ensaio.

É necessário, agora, esclarecer positivamente o que é a prescritividade. Além da função óbvia que os julgamentos morais teriam de indicar cursos de ação, ela é basicamente entendida como a propriedade formal destes juízos de acarretar (entail) ao menos um imperativo. Mais precisamente, Hare a define deste modo: "algo é prescritivo se e somente se, para um ato A, uma situação S e uma pessoa P, se P concordasse (oralmente) com o que dizemos e não em S fazer A, então ele logicamente estaria concordando de forma não sincera" (1981: 21). Assim, a prescritividade é uma característica formal dos julgamentos morais que acarreta, basicamente, uma recomendação para agir de certa maneira. Como veremos, ter uma preferência é justamente aceitar uma prescrição (1981: 91). Dito de outro modo, ter preferências é fazer uma valoração (2000a: 77). A noção de preferências será melhor esclarecida na segunda parte deste trabalho, pois Hare tenta reformular o utilitarismo exatamente em termos de satisfação racional de preferências.

Apesar do fato de que a linguagem moral é essencialmente distinta da linguagem descritiva, ela é, no entanto, superveniente (supervenient) sobre a linguagem natural ([1952]: 80; 153-5; 1963: 19; 1993: 66s.; 2000a: 21). Hare exemplifica o conceito de superveniência deste modo (1993: 67): imagine duas salas A e B idênticas na forma, com os mesmos móveis e a aparência indistinguível. Se elas são similares em todos os aspectos, então é auto-contraditório dizer que A é agradável, mas B não é. A superveniência dos conceitos éticos é sustentada também por Moore (1993: 287). Quer dizer, se nós valoramos algo como sendo bom, mau, agradável, belo, etc. considerando alguns dos seus traços naturais, então, dado um estado de coisas idêntico, ceteris paribus, ele deve ser avaliado do mesmo modo. Isto significa que noções valorativas dependem, são supervenientes, das propriedades naturais. Todavia, dizer que propriedades morais são supervenientes sobre as não-morais significa dizer, por exemplo, que atos "têm as propriedades morais porque têm as propriedades não-morais (Isto é errado porque foi um ato de infligir dor por pura diversão), embora uma propriedade moral não é a mesma que uma propriedade não-moral nem mesmo é acarretada por ela" (2000a: 22). Segundo Hare, a superveniência (supervenience) não pode ser confundida com o acarretamento (entailment) como faz o naturalista (Idem, p.127). Ao aceitar a superveniência do ético sobre o natural, Hare procura afastar-se das pressuposições metafísicas da ética de Kant.

Uma pergunta relevante, aqui, é esta: podem as prescrições morais serem verdadeiras ou falsas? Freqüentemente, Hare é citado entre os eticistas não-cognitivistas (cf. Warnock 1990: 78; Hudson 1983: 155s.). Todavia, ele sustenta que todas as relações da lógica clássica aplicam-se aos imperativos ([1952]: 17s.). Além disso, mantém que é possível saber, por exemplo, que as pessoas sofrem (1981: 92). Por conseguinte, ele pareceria ser um cognitivista. Mas no livro Sorting out Ethics, afirma que os termos "cognitivista" e "não-cognitivista" são enganadores (2000a: 56). Parece que ele quer permitir conhecimento (sempre insistiu na racionalidade da moralidade contra o emotivismo), mas também não quer se comprometer com a tese da factualidade da moralidade para não cair no descritivismo. Em Essays in Ethical Theory, Hare esclareceu que não quer ser chamado de não-cognitivista (como Wittgenstein no Tractatus), mas de não-descritivista (1993: 18). Em "Ontology in Ethics", a polêmica entre cognitivistas versus não-cognitivistas é considerada uma questão epistemológica, enquanto que a discussão descritivismo versus não-descritivismo é conceitual ou lógica (1993: 82).

A prescritividade, porém, não é a única característica dos julgamentos de valor. Segundo Hare, a universalizabilidade também é uma marca essencial destes juízos ([1952]: 175; 1963: 4; etc.). A definição da universalizabilidade dos juízos é feita deste modo: "qualquer julgamento descritivo singular é universalizável no sentido que ele compromete o falante à proposição de que qualquer coisa exatamente igual ao sujeito do primeiro julgamento, ou igual a ele nos aspectos relevantes, possui a propriedade atribuída a ele no primeiro julgamento" (1963: 12). Julgamentos morais são, certamente, universalizáveis neste sentido (é um traço que eles possuem em comum com os julgamentos descritivos). Eles são também, entretanto, universalizáveis num outro sentido fundamental, a saber, as regras que governam o uso dos termos morais são princípios morais substanciais (Idem, p.30). Hare enfatiza que julgamentos morais são universalizáveis "somente neste sentido" (1981: 108). Como veremos, esta forma de apresentar a tese da universalizabilidade lembra o teste que Kant faz das máximas de ação através da primeira formulação do Imperativo Categórico. Vou voltar a este ponto a seguir.

A tese da universalizabilidade é uma tese lógica (i.e., depende somente do significado das palavras) e não um princípio moral substancial (1963: 30). Ela compromete, entretanto, o falante com princípios morais. Negar a universalizabilidade levaria a incompreensões parecidas com as inconsistências lógicas, por exemplo, a auto-contradição (1981: 115). Freqüentemente Hare insiste na relação entre lógica modal e universalizabilidade (1981: 7-10) e que os conceitos deônticos "ter-que" e "dever" funcionam como o operador de necessidade governando imperativos (1993: 98; 2000a: 137). Portanto, a tese da universalizabilidade dos julgamentos morais seria lógico-conceitual e não um princípio moral substancial. Em outros termos, é uma tese meta-ética.

É importante esclarecer melhor a relação entre a tese da universalizabilidade de Hare e o Imperativo Categórico de Kant. Parece que Hare, recentemente, re-escreveu a tese da universalizabilidade em termos absolutamente kantianos (cf. 2000a: 131s). Ele chega, como vimos, a afirmar que há uma contradição na vontade em não-universalizar prescrições. Mas ele vai mais longe. Segundo Hare, a pergunta central da ética normativa é: "Posso prescrever, ou querer, que esta máxima torne-se uma lei universal?" (2000a: 141). Este é, certamente, um elemento formal kantiano. Na segunda parte deste ensaio, vou fazer uma análise comparativa mais detalhada deste ponto.

Podemos, agora, ver mais claramente o que está implícito na tese da universalizabilidade da Hare. Universalizar significa "dar a razão" (1963: 5). Por isso, a universalizabilidade, a prescritividade e o elemento descritivo do julgamento moral são "suficientes para estabelecer a racionalidade da moralidade" (Idem, p.17). Assim, a noção de "uma razão traz consigo a noção de uma regra" (Idem, p. 21). Neste sentido, seria interessante comparar este aspecto com os diferentes estágios da universalização elaborados por Mackie (1977: 83-102): desde a desconsideração das diferenças numéricas, passando pela necessidade de colocar-se no lugar dos outros, até o respeito pelos gostos e ideais rivais. Segundo Hare (1981: 78-86; 108s.), Mackie está parcialmente certo e parcialmente errado: só há um sentido no qual julgamentos morais são universalizáveis, mas há uma progressão. Mackie, todavia, não estaria certo ao insistir que a universalizabilidade é um atributo prático e não meramente lógico.

Parece que Hare argumenta em termos puramente lógicos, mas ele também sustenta que a universalizabilidade leva ao direito de igual consideração e respeito, no sentido de Tugendhat e Dworkin, e aos princípios da justiça formal igualitária (1981: 154). É necessário, então, investigar cuidadosamente estas possíveis aplicações do princípio da universalizabilidade. Por outro lado, argumenta que nem a liberdade política nem a igualdade econômica são boas em si mesmas (Idem, 166). Mas o que a tese da universalizabilidade mostra é que uma divisão de um bem é justa se for igualitária (1963: 119). Como? No caso de uma divisão desigual estaríamos fazendo julgamentos diferentes sobre casos idênticos. Além disso, Hare explicitamente afirma que a justiça possui dois aspectos básicos: a legalidade e o tratamento igualitário dos casos similares (Idem, p. 124). Vou voltar a este ponto na segunda parte deste trabalho, quando discutirei a interpretação dos princípios básicos do utilitarismo.

Algumas objeções são comumente feitas à tese da universalizabilidade, principalmente, pelos comunitaristas (MacIntyre 1985). Por exemplo, é argumentado que ela é trivial (1963: 15s.), pois se é meramente formal, então ela não pode dizer nada de substancial em termos normativos e práticos. Outra crítica é que, tal como Hare define a universalizabilidade, ela é supérflua, pois não existiria duas ou mais situações "exatamente iguais". Mas, talvez, Hare consiga superar estas e outras objeções numa aplicação conjunta da prescritividade e da universalizabilidade. Afinal, o prescritivismo universal é composto por vários elementos (1963: 16): p (prescritividade); u (universalizabilidade) e d’ (um elemento descritivo). A discussão de um caso mostrará que devemos aplicar tanto a universalizabilidade quanto a prescritividade (1963: 91). Imagine que A deva dinheiro a B que este deva para C e que ele viva num país onde exista uma lei que permita colocar-se um devedor na prisão. Suponha que B pergunte-se se ele pode valer-se da lei como uma medida para forçar A a pagar-lhe a quantia devida. Ele realmente quer isto. Se não se colocar nenhuma questão acerca da universalizabilidade de suas prescrições, então estamos diante de uma prescrição singular de B: "Vou colocar A na prisão". Mas imagine que ele, então, transforme esta prescrição no seguinte julgamento moral: "Eu devo colocar A na prisão porque ele não vai pagar-me o que deve" e reflita sobre o princípio que ele envolve, a saber, "Qualquer um que está na minha posição deve colocar seu devedor na prisão se ele não pagar." Mas depois lembra que C está na mesma posição em relação a ele, pois também é devedor. Estes casos seriam idênticos. De acordo com Hare, "todo o argumento falharia se ‘dever’ não está sendo usado tanto universavelmente quanto prescritivamente" (cf. 1963: 91;195).

Parece que Hare usa o argumento "podemos universalizar nossas prescrições?" como o teste mais importante para saber se algo é moral ou imoral (1963: 171; 224). Ele certamente fala da "demanda pela universalização" (1963: 102). Mas também parece que a tese da universalizabilidade é simplesmente traduzida em termos do princípio "coloque-se na pele do outro" nas discussões práticas que ele faz no Freedom and Reason: do credor (citado a pouco), do fanático, do racista, etc.. Uma estratégia similar é usada em Essays on Bioethics para formular um argumento kantiano contra o aborto (2000b: 168s.) Portanto, parece que o próprio Hare também interpretou a tese da universalizabilidade apenas em termos da Regra de Ouro.

Recentemente, Hare sustentou que outras propriedades lógicas constituem os juízos morais. Em Moral Thinking, ele modifica um pouco sua posição em relação aos trabalhos anteriores. Em primeiro lugar, afirma que a prescritividade "não é possuída por todos os julgamentos morais, mas somente por uma classe central deles" (1981: 21). Em segundo lugar, ele explicitamente afirma que a universalizabilidade e a prescritividade são características dos julgamentos-de-valor, mas que elas não são suficientes para distinguir um julgamento moral. Ele, então, introduz a sobreposição (overridingness) como differentia (Idem,p. 24). Este novo elemento aproxima, certamente, Hare muito mais do kantismo do que as outras características meta-éticas da sua teoria. Como sabemos, Kant sustentava que razões morais sobrepõem-se à razões prudenciais, que julgamentos morais são imperativos categóricos.

Tendo esclarecido a estrutura meta-ética da teoria de Hare, podemos agora analisar a sua tentativa de construir uma teoria ética normativa. Antes de fazer isto, é necessário esclarecer que a relação entre sua meta-ética e a sua teoria normativa não é a de dedução de algo a partir de princípios auto-evidentes. Tal visão fundacionalista seria descartada por Hare como ilusória. Como vimos, ele pretende compatibilizar forma e conteúdo, isto é, o kantismo com o utilitarismo.

2 – Ética normativa: Utilitarismo kantiano

Há várias tentativas, hoje, de (re)construir-se teorias éticas utilitaristas que supostamente superariam os problemas do utilitarismo hedonista clássico. O que se faz é, basicamente, substituir o prazer por algum outro fim último das ações humanas, por exemplo, a satisfação de desejos ou de interesses (Mackie) ou de alguma forma de bem-estar. Brink (1989) elaborou a teoria normativa mais impressionante nesta última direção salientando a necessidade de pensarmos objetivamente na qualidade de vida como bem supremo. Em outros termos, o bem-estar deve ser maximizado. Todavia, como veremos, Hare argumenta que a satisfação racional de preferências deve ser usada para evitar os problemas do hedonismo subjacentes ao utilitarismo clássico (cf. 1963: 129; ver também 1981 e 1993).

Os problemas do utilitarismo clássico são vários: a tensão entre maximização e equalização (estes dois princípios estão em conflito no interior do mesmo sistema ético); a comensurabilidade (ou não) das inclinações, desejos, interesses, etc.; o problema da comparação interpessoal de preferências; o aparente antagonismo entre, de um lado, a utilidade, e, de outro, o direito e a justiça; etc.. Segundo Hare, estes problemas tradicionais surgem somente no nível intuitivo, mas os princípios prima facie que são validados no nível crítico não estariam ameaçados por estas objeções (cf. 1981: 130-168). Veremos agora, como ele mostra isto.

Antes de analisarmos a reformulação proposta por Hare, é necessário introduzir a distinção que ele faz entre dois níveis do pensamento moral: o intuitivo e o crítico (1981: 25; 1993: 221). Eles são personificados como "a prole" e "o arcanjo" (p.45-6): um é unicamente intuitivo e outro exclusivamente crítico (1981: 44). O arcanjo é imaginado desta maneira:

"consider a being with superhuman powers of thought, superhuman knowledge and no human weakness (...). He will need to use only critical thinking. When presented with a novel situation, he will be able at once to scan all its properties, including the consequences of alternatives actions, and frame a universal principle (perhaps a highly specific one) which he can accept for action in that situation, no matter what role he himself were to occupy in it" (Idem, p. 44).

"A prole" é characterizada assim:

"Not only does he, like most of us, have to rely on intuitions and sound prima facie principles and good dispositions for most of the time; he is totally incapable of critical thinking (let alone sage or sound critical thinking) even when there is leisure for it. Such a person, if he is to have the prima facie principles he needs, will have to get them from other people by education and imitation" (Idem, p. 45).

Como veremos, esta distinção permite Hare superar, teoricamente, algumas das objeções mais comuns ao utilitarismo.

A reformulação proposta por Hare foi, primeiramente, esta: não se deve considerar a maximização da felicidade de todas as partes coletivamente, mas do que é fazer justiça aos interesses das diferentes partes (cf. 1963: 129). O conceito de interesse é definido desta forma: "ter um interesse é, brevemente falando, haver algo que alguém quer, ou que ele provavelmente desejará num futuro, ou que é (ou provavelmente será) um meio necessário ou suficiente para obter algo que alguém quer (ou provavelmente) desejará" (Idem, p. 122; 157). Todavia, logo Hare percebeu alguns problemas neste seu projeto (por exemplo, os interesses estão baseados em inclinações e desejos conflitantes) e substituiu a noção de satisfação de interesses pela satisfação racional de preferências. Ele reconhece que a transição da formulação do utilitarismo de interesses para o de satisfação de preferências não é fácil (1993: 217). Certamente, várias questões imediatamente surgem: o que são preferências racionais? Hare, aparentemente, afirma que ser racional é deixar-se guiar pelos fatos e pela lógica (1981: 214). Dito de outro modo, há dois importantes elementos na explicitação da racionalidade das escolhas e prescrições: primeiro, deve-se esclarecer o significado dos termos usados; segundo, deve-se fazer predições factuais de suas possíveis conseqüências. Todavia, ainda assim, um ponto problemático parece ser o conflito entre convicções morais e preferências.

É interessante notar que Hare tenderia a superar esta dificuldade apelando para o princípio "Imagine-se no lugar do outro" (1981: 92). Neste ponto, ele tenta compatibilizar a tese da universalizabilidade com Regra de Ouro, a saber, com o princípio ético que diz: não podemos fazer aos outros aquilo que não queremos que nos façam. Disto seguir-se-ia, provavelmente, o altruísmo e a imparcialidade (1981: 129). Assim, quando surgisse um conflito de interesses, o princípio para dissolvê-lo é: colocar-se imaginativamente no lugar do outro (1963: 123). A questão é saber se isto é suficiente. E o caso do fanático? (cf. 1963: 157, ver especialmente 171). Quer dizer, um nazista fanático preferiria ser morto, se descobrisse que na verdade ele era judeu. A crítica de Carvalho (1991-2: 115s.) parece válida neste ponto, quer dizer, o máximo que a ética de Hare permite dizer é que temos que torcer para que o número de fanáticos não seja muito grande. Resta saber, se alguma teoria ética pode fazer melhor.

Mas a questão central que deve ser respondida é esta: o que é que permite Hare qualificar a sua versão do utilitarismo dekantiano? Acredito que podemos responder a esta pergunta aproximando a ética normativa de Hare das principais formulações do Imperativo Categórico de Kant. Antes de fazer isto, gostaria de chamar a atenção para um ponto que me parece digno de nota. Segundo Hare, o utilitarismo pode cobrir somente parte da moralidade (1963: 119). Aparentemente, algumas questões morais nada têm a ver com a felicidade. Neste sentido, Hare parece estar realmente mais próximo do kantismo do que do utilitarismo: afirma que o conceito de felicidade está longe de ser um conceito empírico (1963: 129). Por exemplo, problemas de justiça estão fora das questões relacionadas com a felicidade (Idem, p.126). Por isso, o princípio utilitarista "the greatest happiness of the greatest number" (a maior felicidade para o maior número) é problemático. É preciso reformular o utilitarismo neste ponto. Ao invés do fim último ser a felicidade (este conceito é realmente muito "indeterminado" [Idem, p.125]), o conceito de satisfação racional de preferências, como vimos, foi usado.

Podemos, então, tentar aproximar este princípio utilitarista (vou chamá-lo PU1), a saber, o da maior felicidade para o maior número, da ética kantiana. Sabemos que a primeira formulação do Imperativo Categórico (IC), seguindo aqui as distinções feitas por Paton (1967: 129), é esta: "Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal" (Grundlegung BA31). Ora, alguém poderia pensar que o PU1 não apenas é compatível com esta formulação como também que ele possui uma extensão maior. Esta foi a opinião de Mill que vou discutir mais tarde. Todavia, o PU1 pode, efetivamente, conduzir apenas a uma generalidade e não a uma estrita universalidade. Ou melhor, embora o PU1 é formulado de tal modo que ele pode cobrir o universo inteiro dos agentes ou daqueles que são objetos de consideração moral, ele também pode meramente levar à satisfação das preferências domaior número e isto pode significar de uma maioria simples. O princípio da utilidade pode, por conseguinte, levar simplesmente ao majoritarianismo. Por isso, ele não apenas não parece ser mais extenso que o Imperativo Categórico como também não chega, no sentido estrito, à universalidade. Neste ponto, o PU1 e o IC1 não são complementares nem deixam-se compatibilizar. Além disso, como vimos anteriormente, a preocupação com a felicidade alheia é, em Kant, apenas um dever imperfeito.

O outro princípio básico do utilitarismo é este: "Everybody to count for one, nobody for more than one" (todos devem contar por um, ninguém por mais que um) e foi enunciado por Bentham (cf. Mill 1987: 57s.). Vou chamar este princípio de PU2. Hare sustenta que o que este princípio significa é que todos devem ser tratados com igual consideração. Este também seria um corolário da tese da universalizabilidade (1963: 118). Ele argumenta que, assim como a tese da universalizabilidade, este princípio é puramente formal, isto é, segue-se do significado dos termos morais. Podemos, então, tentar aproximar o PU2 da segunda formulação do IC2 de Kant: "Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio" (Idem, BA 66-67). Mas, neste ponto, não há compatibilidade alguma entre o PU2 e a noção kantiana de que seres racionais são fins em si. Como já argumentei noutro lugar (2000b), não basta tomar os objetivos das outras pessoas como metas minhas para tratá-los como fins em si. O que a segunda formulação do IC demanda é o respeito absoluto da pessoa qua ser racional, isto é, como capaz de representar-se como ser que possui dignidade e não preço. Ora, o PU2 é somente igualitário na distribuição da felicidade. Ele não coíbe, todavia, a maximização da felicidade para alguns e, eventualmente, pode levar ao desrespeito pelos direitos individuais dos outros, até mesmo da dignidade de certos agentes, se isto for necessário para o incremento da felicidade geral. Contra-exemplos ao utilitarismo florescem por todos os lados e o mais famoso é o dos cinco doentes, cada um necessitando de um órgão para transplante, que prefeririam, sob pressupostos utilitaristas, matar uma pessoa inocente, mas sadia, para tomar-lhe os órgãos. Por isso, como Moore chamou a atenção (1993: 158), e o próprio Hare parece estar consciente do fato (1963: 123), existe uma inconsistência entre o PU1 e o PU2 no interior de utilitarismo. Além disso, a crítica de Tugendhat a Hare parece pertinente neste ponto, a saber, que uma moral do respeito universal não se segue de um princípio meramente lógico (1994: 177).

Pode-se, até mesmo, comparar o princípio de Hare da satisfação racional de preferências, que poderíamos chamar PU3, com a terceira formulação do IC3. Segundo Kant, devemos agir de tal forma que a máxima de nossa ação possa expressar a "vontade de todo o ser racional concebida como vontade legisladora universal" (BA70). Quer dizer, a vontade é autônoma e isto significa basicamente que ela é auto-legisladora. Ora, se sublinharmos o fato de que não basta termos uma preferência, mas que devemos ter uma preferência racional, então poderíamos aproximar bastante os possíveis conteúdos pretensamente utilitaristas de Hare da noção kantiana de vontade auto-legisladora. Quer dizer, somente poderíamos considerar uma preferência racional, e, por conseguinte, digna de ser satisfeita, se ela pudesse ser universalizada para fazer parte de uma legislação que é a expressão da vontade comum.

Há várias outras questões que deveriam ser consideradas numa tentativa de sintetizar o kantismo e o utilitarismo. Uma forma de verificar se a sua proposta faz sentido é discutir o valor que cada uma destas teorias éticas atribui, por exemplo, às virtudes e que valor elas ocupam no novo sistema ético. Como é sabido, os utilitaristas normalmente sustentam que as virtudes são meramente instrumentais para aquilo que é valioso em si mesmo enquanto que Kant sustentaria que as virtudes possuem valor intrínseco. Em Moral Thinking, Hare argumenta que há "virtudes morais instrumentais" que são necessárias tanto para o egoísmo quanto para a moralidade (cf. 1981: 192). Tais virtudes são: a coragem, o auto-controle, a perseverança, etc.. Neste caso, a prudência e a moralidade coincidem. Mas há também "virtudes intrínsecas", isto é, valiosas em si mesmas tais como a beneficência e a justiça. As primeiras são instrumentos necessários para as últimas. Assim, Hare parece superar a dicotomia entre, de um lado, virtudes morais e, de outro, virtudes instrumentais. Há virtudes morais instrumentais para outras virtudes puramente morais. No livro Essays in Ethical Theory, sustenta que uma pessoa com "bom caráter moral" é alguém que têm princípios (p.63). Com isto tanto kantianos quanto utilitaristas poderiam concordar, mas a questão central é esta: quais são estes princípios? O Imperativo Categórico ou o Princípio da Utilidade? Vou tentar responder a esta questão a seguir.

Antes de fazer isto, gostaria de dizer que Hare considera-se utilitarista, mas na verdade parece ser kantiano quando sustenta que certas questões morais não se relacionam com interesses, mas com ideais (1963: 147). Certos comportamentos são imorais porque eles atentam contra "um ideal de excelência humana" (Idem, Ibid.). Segundo Hare, o erro de Mill foi tentar incorporar ideais numa teoria utilitarista que não os comporta (Idem, p. 121). Portanto, a moralidade é composta de dois elementos centrais: regras e ideais pessoais (Idem, p.151). A questão é saber até que ponto ideais podem ser incorporados num sistema ético utilitarista. Se concebermos o bem maior a ser maximizado como algo complexo, então podemos, pace Hare, incorporar tanto o prazer, o conhecimento, as virtudes, quanto outros ingredientes e, certamente, ideais morais entre eles, àquilo que consideramos o fim último das nossas ações. Isto estaria próximo da "reformulação" que Moore fez do utilitarismo clássico e que é, talvez equivocadamente, conhecido como "utilitarismo ideal".

Apesar de todos os problemas aqui apontados e outras prováveis dificuldades que porventura existirem, Hare parece poder aproximar bastante o kantismo do utilitarismo. Todavia, há outro ponto que deve ser considerado e que mostra a completa oposição entre utilitarismo e kantismo. O utilitarismo é, essencialmente, uma teoria ética conseqüencialista. Quer dizer, para estabelecer se uma ação, uma atitude, uma prática, uma virtude, etc. é correta ou não, devemos considerar todos os seus possíveis resultados no mundo: se ela produz mais bem do que mal, então está moralmentepermitida. Além disso, se não existe nenhuma alternativa que produza mais bem, então ela é uma obrigação moral. Vou chamar a este princípio de PU4, a saber, o princípio conseqüencialista. Ora, é notório que a ética de Kant é absolutamente anticonseqüencialista. Basta lembrarmos, aqui, da famosa objeção feita à ética de Kant por Benjamin Constant, a saber, que não devemos falar sempre a verdade, mas apenas àqueles que são dignos dela. Kant responde à esta objeção no famoso ensaio "Sobre o Suposto Direito de Mentir por Amor à Humanidade" insistindo no caráter incondicional das leis morais. Quer dizer, mesmo que um amigo nosso, sendo perseguido por um assassino, venha a refugiar-se na nossa casa e este nos perguntar se aquele está, devemos contar a verdade, seja lá quais forem as conseqüências. Posição ético-filosófica esta que pode ser inferida da própria definição de Imperativo Categórico enquanto mandamento que nos representa uma ação como objetivamente necessária "sem relação com qualquer outra finalidade" (Grundlegung BA39). Kant revela, aqui, todo o seu absolutismo moral. Para termos clareza sobre este ponto, basta lembrarmos que não basta que uma máxima seja legitimada pelo Imperativo Categórico passando assim a ser uma lei prática: devemos seguir a regra moral motivados exclusivamente pela idéia do dever enquanto dever e não simplesmente agir em conformidade com ela. Em suma, é a boa vontade que confere valor moral às ações e não as suas conseqüências.

Como poderia alguém autodenominar-se um "utilitarista kantiano" levando em consideração a completa oposição entre uma teoria ética conseqüencialista e uma absolutamente anticonseqüencialista? Penso que de nenhuma forma. Aqui devemos simplesmente escolher o IC ou o PU. Por isso, a mais relevante das questões da ética normativa atual é saber se existe algum tipo de apoio sobre o qual tal decisão poderia ser tomada. De forma não surpreendente, desde os seus primeiros escritos, Hare sustenta que existe um modo de decidir quais os princípios que devem orientar nossas ações. Ele escreveu em The Language of Morals:

"Thus a complete justification of a decision would consist of a complete account of its effects, together with a complete of the principles which it observed, and the effects of observing those principles –for of course, it is the effects (what obeying them in fact consists in) which give content to the principles too." (itálicos acrescentados)" ([1952]: 69).

Como podemos perceber, Hare justifica a validade dos próprios princípios pelas suas conseqüências, isto é, de forma utilitarista.

Se devemos decidir qual princípio devemos escolher, o IC ou o PU, e se estabelecemos como procedimento de escolha de princípios a consideração das conseqüências de tais princípios, então já fizemos nossa escolha: decidimos pelo Princípio da Utilidade. Quer dizer, entre conseqüencialismo e anticonseqüencialismo, Hare já optou pelo primeiro. Isto significa uma só coisa: que ele é por demais utilitarista inviabilizando assim qualquer tentativa de reaproximação com o kantismo.

Isto nos leva de volta ao argumento utilizado por Mill, contra Kant, no Utilitarianism. Mill reconhece a importância da ética kantiana, mas também argumenta que a justificação de Kant do porquê é que devemos agir a partir de máximas legitimadas pelo IC é falha. Mill escreveu:

"But when he [Kant] begins to deduce from this precept any of the actual duties of morality, he fails, almost grotesquely, to show that there would be any contradiction, any logical (not to say physical) impossibility, in the adoption by all rational beings of the most outrageously immoral rules of conduct. All he shows is that the consequences of their universal adoption would be such as no one would choose to incur." (1976: 13)

O que Mill quer dizer é que Kant pretende ser anticonseqüencialista, mas na verdade só consegue justificar as suas máximas de ação a partir de seus resultados. Por conseguinte, o princípio conseqüencialista seria, segundo Mill, mais extenso e conteria o próprio Imperativo Categórico kantiano.

A questão, todavia, de saber se Kant testa, extra-oficialmente e de forma não intencionada, suas máximas de ação a partir de seus efeitos, é polêmica. Um kantiano ortodoxo poderia sustentar que quando Kant testa suas máximas pelas possíveis conseqüências, ele faz isto da mesma maneira que podemos testar, numa prova indireta, uma hipótese pelas suas conseqüências indesejáveis, por exemplo, numa redução ao absurdo de uma proposição qualquer. Quer dizer, Kant estaria pensando nas conseqüências lógicas e não práticas; não nos resultados de uma ação. Este realmente parece ser o caso em algumas máximas. Considere o caso do manter as promessas (cf. Grundlegung BA54). Do ponto de vista estritamente kantiano, o argumento contra uma máxima que permita a quebra da confiança nas promessas não é que isto vai trazer conseqüências desastrosas para a sociedade, mas que ela aniquilaria a própria instituição da promessa. Quer dizer, nem se chegaria a cogitar as possíveis conseqüências maléficas. Por conseguinte, a objeção de Kant fundar-se-ia somente na universalidade da suposta lei enquanto que o utilitarismo leva em consideração as conseqüências práticas.

Esta tentativa de salvar o anticonseqüencialismo da ética kantiana, pode fazer sentido para algumas regras de ação. Todavia, ela não cobre a totalidade das leis morais. Isto pode ser claramente percebido quando consideramos outras máximas de ação. Por exemplo, os argumentos que Kant apresenta para coibir o suicídio (cf. Grundlegung BA53; 67)) são tais que não podemos querer universalizar tal máxima, pois implica no fim da vida natural. Ora, em primeiro lugar, o não poder querer algo aqui não significa nada parecido com uma impossibilidade lógica. Nem mesmo, como Korsgaard equivocadamente defendeu (1996: 92s.), seguindo M. Singer e O. O’Neil, algum tipo de contradição prática e não lógica, pois contradições existem apenas entre proposições. Em segundo lugar, parece claro que as circunstâncias caracterizadas por Kant no caso do suicida, são tais que ele poderia querer o seu próprio fim, mas não a transformação de sua máxima de ação em lei universal. Isto é tão evidente, e tanto mais plausível, quanto mais sabemos que a vida não é dada somente nas circunstâncias quase-trágicas pintadas por Kant. Em terceiro lugar, um suicida pode coerentemente querer não apenas o seu próprio fim, mas também achar que o fim total da existência é algo melhor do que a sua continuação. Desta maneira, foi Kant quem julgou que as melhores conseqüências seriam dadas pela continuidade da existência como um todo. Portanto, apesar de seu anticonseqüencialismo oficial, ele parece sucumbir à crítica de Mill, isto é, ele acaba testando suas máximas pelas suas conseqüências.

Talvez seja por ter isto presente que Hare aceite o procedimento utilitarista para decidir sob qual princípio devemos agir, isto é, que devemos considerar as conseqüências dos princípios em questão. Até onde sei, nada é mais anti-kantiano e isto mostra que a adjetivação que ele utiliza para qualificar a sua teoria ética normativa, essencialmente utilitarista, pressupõe um predicado que é incompatível com ela. O conteúdo utilitarista deforma a forma kantiana.

Observações finais

Voltarei, agora, à questão "Poderia Hare ter sido um kantiano?" É claro que uma resposta a esta pergunta pressupõe que esclareçamos até que ponto estamos usando "kantiano" para além da letra de Kant, mas ainda assim mantendo o seuespírito. Obviamente, o caráter imperativo dos julgamentos morais e a sua universalizabilidade são característicasformais da linguagem moral e tanto Kant quanto Hare concordam neste ponto. As possíveis diferenças de conteúdospoderiam até ser superadas por um entendimento comum sobre o que seria ter uma preferência racional, pois ambos são racionalistas. Mas o conseqüencialismo como critério de decisão de princípios morais é um divisor de águas e torna a ética de Kant e a teoria normativa de Hare absolutamente incompatíveis. Portanto, Hare não pode ser visto como um kantiano na medida em que é um conseqüencialista.

Para reconhecer definitivamente este ponto, podemos considerar mais amplamente como funcionaria a ética normativa de Hare. A verdade é que ela deveria aceitar aquelas regras que são universalizáveis pelo Imperativo Categórico simplesmente como deveres prima facie, mas que o critério último da correção e da obrigatoriedade seria o PU4, isto é, o princípio conseqüencialista. A conclusão seria que este é o princípio supremo da moralidade. Portanto, Mill estaria certo quanto a maior extensão do princípio utilitarista. Ainda assim precisamos esclarecer como o PU4 pode funcionar harmoniosamente com os outros princípios básicos do utilitarismo.

É claro que ainda resta discutir se o próprio conseqüencialismo é verdadeiro ou não. E, neste ponto, alguém poderia manifestar sua simpatia, usando a distinção webberiana, por uma ética da responsabilidade (conseqüencialismo) contra uma da convicção (kantismo). Certamente, o conseqüencialismo tem apelos muito fortes tanto no senso moral comum (por exemplo, quando estamos preparados para escolher "dos males o menor") quanto na filosofia moral, pois considerar os efeitos de uma ação não é importante somente sob o ponto de vista da deliberação como também serve para determinar a correção moral da ação e a sua eventual obrigatoriedade. Além disso, a consideração das conseqüências das ações faz parte da nossa noção de responsabilização moral. Todavia, penso que devemos ser mooreanos neste ponto: tanto as intenções quanto os resultados devem contar para decidir qual alternativa de ação trará ao mundo mais valor intrínseco. Defender esta posição é outra história.

Nenhum comentário: