O que é o Homem? De que ele é capaz?
A indagação sobre o homem e suas capacidades podem ser tomadas como ponto de partida não só para o entendimento do Homem, do ponto de vista filosófico, mas também como ser capaz de produzir seu mundo. A primeira indagação norteia a antropologia filosófica e a segunda pode ser colocada como base para a compreensão da cultura.
A partir dessas indagações pretendemos, aqui, uma compreensão do Homem e para isso vamos discutir sua relação com o mundo em que vive, com as suas produções e com seus concidadãos. A partir disso pretendemos compreender alguns aspectos da antropologia, disciplina que embora seja nova do ponto de vista de sua estruturação como ciência, tem seus fundamentos nas mais antigas inquietações da humanidade.
Estamos falando de uma antropologia da cultura porque, como veremos adiante, essa é uma das marcas distintivas do Homem. Podemos, repetindo vários autores, dizer que não existe produção humana que não seja cultural. Com ela e a partir dela os humanos se relacionam com o mundo, consigo mesmos e com suas criações.
Antes de discutirmos a cultura ou as diferentes manifestações culturais, precisamos discutir esse ser que a produz. Daí a necessidade desta indagação: quem somos nós? Podemos dizer que essa é uma das principais indagações articuladas pelo Homem. É o Homem se colocando diante de si mesmo, e se dando ao conhecimento. É, portanto, na busca dessa identificação que se coloca a indagação sobre o Homem: que realidade é essa?
Um dos pontos de partida ou uma das formas de entendermos a realidade ser humano, o Homem – e com isso entendermos a nós mesmos – é fazendo comparações. O Homem pode ser comparado com os outros existentes: Isso pode ser feito ao respondermos às indagações: o que diferencia o Homem do mundo em que vive? O que diferencia o Homem dos outros animais? O que diferencia o Homem de sua cultura? O que diferencia as diferentes manifestações culturais?
Temos claro que o conceito de cultura é amplo e complexo. Tanto que permanece sendo um dos pontos mais polêmicos em várias frentes de investigação das várias ciências sociais e humanas.
As reflexões aqui apresentadas não se baseiam nesta ou naquela linha de pensamento, ou pressuposto teórico, são apenas alguns apontamentos que se prestam a um primeiro contato com a antropologia. Nossa preocupação, portanto, não é a discussão teórica desenvolvida pelos diversos autores das várias correntes e escolas, mas apresentar alguns apontamentos que ajudem o leitor a se introduzir na antropologia cultural.
Sabemos que a filiação teórica é um dos elementos essenciais para o pesquisador desenvolver seu trabalho. Nossa preocupação entretanto, reside na tentativa de colher alguns apontamentos, procurando mostrar ao leitor alguns caminhos a serem seguidos. Caso o leitor deseje aprofundamentos eles podem ser buscados não só nas referências das quais nos utilizamos, mas também nas perspectivas de algumas correntes de pensamento, desde o evolucionismo, passando pelo difusionismo, pelo funcionalismo, pelo Estruturalismo até chegar à perspectiva antropológica que se fundamento na leitura marxista das relações sociais. Em termos de escolas de pensamento antropológico podemos dizer que podem ser classificadas a partir de três grandes grupos: a escola americana, a britânica e a francesa.[2]
Aqui, entretanto, nossa preocupação é buscar algumas características do homem, da cultura e da própria antropologia.
Iniciemos com as reflexões que brotam de uma primeira indagação: O que é antropologia?
É evidente que a resposta não se limita ao que podemos entender da etimologia da palavra. Dois vocábulos gregos (Anthropos e Logia) que juntos significam estudo sobre o homem. Como esse significado não resolve nosso problema, devemos buscar a solução entre os antropólogos, mas aí constatamos que entre os autores não há consenso, nem sobre o que se pode entender por antropologia, nem sobre seu objeto específico.
Com base nisso já podemos entender que o problema da antropologia não se limita ao seu campo de ação, mas também à sua identidade. Voltamos, portanto, à indagação: O que é antropologia? Rabuske (1999) faz uma primeira e básica distinção. Ele considera necessário “distinguir entre Antropologia Filosófica e as Antropologias Empíricas ou Científicas” (RABUSKE, 1999, p. 14). Afirma que:
“O campo das Antropologias Empíricas é muito amplo, é um continuum de conteúdos diversos, embora de algum modo interligados. Muitas vezes é dividida em dois grandes setores: Antropologia Física e Antropologia Social ou Cultural” (RABUSKE, 1999, p. 14)
Visitando o site da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da USP, leremos que “a Antropologia é o estudo do homem como ser biológico, social e cultural” (ANTROPOLOGIA, 2008). Essa página apresenta uma caracterização da antropologia por períodos, temas e conceitos, além de apresentar alguns dos principais representantes de cada escola ou paradigma antropológico. A indagação que pode ser feita, a partir dessa visão, refere-se às dimensões do homem. O ser humano é só isso: biologia, sociedade e cultural? Ou outras possíveis dimensões do ser humano não interessam à antropologia?
Outras formas de apresentar a antropologia podem ser vistas em Mello (1982), como também em Laplantine (2000). E, do ponto de vista da antropologia filosófica podemos mencionar as obras de Mondin (1981) e de Rabuske, (1999). Podemos dizer que cada autor, a seu modo, fala da complexidade que é a conceituação e delimitação do campo de estudo desta ciência, reafirmando, com isso, a complexidade do próprio ser humano.
Um ponto que parece ser inegável é que desde os primórdios o Homem procura entender seu mundo e a si mesmo. Podemos dizer, inclusive, que as diferentes manifestações religiosas e míticas – que são manifestações culturais – foram criadas para produzir explicações sobre si mesmo. Não tendo respostas satisfatórias, e nem sendo capaz de criá-las, o Homem atribui a um ser transcendente a sua origem e, dessa fora, as explicações sobre as origens. Os mistérios religiosos podem ser vistos como formas pelas quais o Homem se explica. O mesmo pode ser dito das diferentes narrativas míticas sobre as origens do Homem e da Natureza. Podemos observar, inclusive que as divindades, tanto da religião como dos mitos, possuem várias semelhanças com o ser humano. Além disso as narrativas míticas possuem muitas semelhanças entre si. Só a título de exemplo, são conhecidas as narrativas mesopotâmicas, bíblicas e dos indígenas brasileiros que falam de dilúvio. E do ponto de vista religioso, a narrativa bíblica fala da criação do homem como ser semelhante ao seu criador: “Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus ele os criou, homem e mulher ele os criou” (Gn, 1, 27); além disso as palavras do salmista, falando da grandiosidade divina, são exemplos de uma antropologia, pois entre outros elementos são uma explicação sobre a essência humana:
“Que é o homem, para dele te lembrares,
e um filho de Adão, para que venhas visitá-lo?
E o fizeste pouco menos que um deus,
coroando-o de glória e beleza.
Para que domine as obras de tuas mãos,
sob seus pés tudo colocaste” (salmo 8, 5-7, grifos nossos)
O fato é que tanto a explicação religiosa como aquelas dos mitos foram insuficientes. Por isso a filosofia, sistematizada pelos gregos, procura ao mesmo tempo superar a visão mítico-religiosa e explicar o ser humano. Essa indagação, entretanto, acompanhou toda a história da filosofia. Nesse sentido a filosofia é uma antropologia pois as diferentes visões sobre o mundo e o Homem nada mais são do que tentativas de satisfazer à indagação original. Mas foi principalmente a partir do século XX[3] que a Antropologia se separou da filosofia e se estruturou com métodos e objetos específicos, ganhando status de ciência; ou pretendendo assim ser reconhecida. Por esse motivo essa disciplina não se limita a um grupo social “a um espaço geográfico, cultural ou histórico particular” (LAPLANTINE, 2000, p. 16). Ela vai além, podendo ser vista como um novo olhar voltado para o homem. Como afirma Mello (1982)
“O que caracteriza a antropologia como disciplina científica não é apenas o objeto material. Ao contrário, o que, na verdade, caracteriza as disciplinas científicas – como que dando-lhes forma – é o objeto formal. Como já foi dito, inúmeras disciplinas tratam do homem e de seu comportamento. No entanto, o que a distingue das demais ciências sociais e humanas é o objetivo que nutre de estudar o homem como um todo”. (MELLO, 1982, p. 34, grifo nosso)
Da mesma forma que a filosofia, a antropologia se coloca o objetivo de entender o homem em sua totalidade. Essa também é a afirmação de Laplantine (2000) falando da pretensão de estudar “o homem inteiro” e social ou “em todas as sociedades”, sem as limitações temporais e espaciais:
“Pois a antropologia não é senão um certo olhar, um certo enfoque que consiste em:
a) o estudo do homem inteiro;
b) o estudo do homem em todas as sociedades, sob todas as latitudes em todos os seus estados e em todas as épocas”. (LAPLANTINE, 2000, p. 16, grifo nosso)
A afirmação de que a Antropologia pretende “estudar o homem inteiro” pode ser vista como, uma reformulação da postura filosófica. A diferenciação se dá pela utilização da metodologia científica, ou seja os antropólogos criaram uma metodologia que implica em desenvolver uma nova postura e um novo olhar
“A abordagem antropológica provoca, assim, uma verdadeira revolução epistemológica, que começa por uma revolução do olhar. Ela implica um descentramento radical, uma ruptura com a idéia de que existe um ‘centro do mundo’, e, correlativamente, uma ampliação do saber e uma mutilação de si mesmo.” (LAPLANTINE, 2000, p. 22, grifo nosso)
O estudo do homem por inteiro, não é saudade da filosofia, mas uma dimensão metodológica que visa a integridade científica.
“Só pode ser considerada como antropológica uma abordagem integrativa que objetive levar em consideração as múltiplas dimensões do ser humano em sociedade. Certamente, o acúmulo dos dados colhidos a partir de observações diretas, bem como o aperfeiçoamento das técnicas de investigação, conduzem necessariamente a uma especialização do saber. Porém, uma das vocações maiores de nossa abordagem consiste em não parcelar o homem mas, ao contrário, em tentar relacionar campos de investigação freqüentemente separados”. (IDEM, IBIDEM, p. 16)
Ou seja, o Homem, para a antropologia, não é um amontoado de partes, mas uma só realidade. Possui, sim, características e dimensões que podem ser vistas separadamente, mas não são partes separadas ou estanques; nem uma dessas dimensões explica ou esgota o ser do Homem. Além disso, quando falamos Homem, nos referimos a uma entidade genérica que só se concretiza nos homens concretos que são diversos e se agrupam formando sociedades, evidenciando a grande diversidade humana. Assim sendo, para estudar o Homem a partir e em sua diversidade “a antropologia não é apenas o estudo de tudo que compõe uma sociedade. Ela é o estudo de todas as sociedades humanas (a nossa inclusive), ou seja, das culturas da humanidade como um todo em suas diversidades históricas e geográficas.” (IDEM, IBIDEM, p. 20).
Opinião semelhante é expressada por Mello (1982), referindo-se ao paradoxo da antropologia: uma disciplina altamente especializada e ao mesmo tempo geral:
“Essa nossa disciplina é, com efeito, bastante paradoxal: é uma das disciplinas mais especializadas e ao mesmo tempo urna das mais gerais. Especializada enquanto trata apenas assuntos relacionados com o homem e sua experiência; geral, no que concerne à variedade incrível de aspectos da realidade humana que envolve temas estudados por geneticistas, psicólogos, sociólogos, biólogos, geógrafos etc”. (MELLO, 1982, p.35, grifos nossos).
Essa especialização e variedade justificam as divisões da antropologia de acordo com as áreas de atuação. Assim aquela divisão proposta por Rabuske (1999), que mostramos acima, torna-se mais detalhada agora. Não só Antropologia Filosófica e Científica, mas esta última tem suas especificidades que vai desde uma Antropologia Física que se volta não só para as “populações hodiernas, mas também o estudo da evolução da espécie humana” (MELLO, 1982, p. 36). Outro ramo desta ciência é o que se chama de “Antropologia Cultural” a qual se propõe a estudar “a obra humana” que chamamos de cultura. Destacando que:
“Dentro da cultura estão assuntos relacionados com política, religião, arte, artesanato, economia, linguagem, práticas e teorias, crença e razão, um mundo realmente de aspectos os mais complexos. Como se não bastasse a amplitude de assuntos a serem estudados, ainda surgem problemas os mais variados. Exemplos disso são os seguintes temas que pertencem ao campo da antropologia cultural: onde termina a biologia humana e se inicia a cultura? Quais as influências da biologia sobre a cultura e desta sobre a biologia humana? O ambiente tem a ver com a cultura? Que dizer da influência da cultura sobre o ambiente?” (MELLO, 1982, p. 37)
Em vista dessas especificidades é que se fala não só de antropologia, como de suas grandes áreas de atuação: etnologia, etnografia, antropologia social, arqueologia. Tudo isso é antropologia cultural, mas com caráter específico para cada atividade humana. Essas especificidades e ao mesmo tempo amplidão de possibilidades além de mostrar a amplidão de possibilidades da antropologia, evidencia a complexidade que é o próprio ser humano. Complexidade que exige um “esforço para ver e fazer ver o que passa a ser e o que exige o Homem, quando o inserimos, todo inteiro e até o fim, no quadro das aparências” (CHARDIN, 1986, p. 25). Esse será o norte de nossas reflexões seguintes: inserir o Homem no quadro de nossas indagações; veremos o Homem, essa realidade que se pergunta.
Referências
A BIBLIA DE JERUSALÉM. 4 reim. São Paulo: Paulinas, 1989
ANTROPOLOGIA http://www.fflch.usp.br/da/vagner/antropo.html> acesso: 18/10/2008
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Viver de criar cultura, cultura popular, arte e educação. In. SILVA, René Marc da Costa (Org). Cultura popular e educação. Brasília: Salto para o futuro/TV Escola/SEED/MEC, 2008.
CARNEIRO, Neri P. As Múltiplas Inteligências e Inteligência Musical. Disponível em Publicado em www.webartigos.com em 20/05/2008
CHARDIN, P. Teilhard. O fenômeno humano. São Paulo: Cultrix, 1986
COUCEIRO, Sylvia. Os desafios da história cultural. In. BURITY, Cultura e Identidade: perspectivas insterdisciplinares. Rio de Janeiro: DP&A, 2002
DA MATTA, Roberto. Carnaval, Malandros e Heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. 6 ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997
HOMERO A Ilíada, São Paulo: Europa-América. [1980?]
LAPLANTINE, François. Aprender Antropologia. 12 reimp da 1 ed, (1988), São Paulo: Brasiliense, 2000.
MELLO, Luiz Gonzaga de. Antropologia Cultural iniciação, teoria e temas. Petrópolis: Vozes, 1982
MONDIN. Batista. Introdução à filosofia. Problemas, sistemas, autores e obras. São Paulo: Paulinas, 1981
________________. O Homem, quem é ele? Elementos de antropologia filosófica. 2 ed. São Paulo: Paulinas, 1982
NIETZSCHE, F. Além do bem e do mal. São Paulo: Escala, [2005] (a)
________________. Crepúsculo dos Ídolos. São Paulo: Escala, [2005] (b)
RABUSKE, E. A. Antropologia filosófica 7 ed. Petrópolis: Vozes, 1999
SILVA, René Marc da Costa (Org). Cultura popular e educação. Brasília: Salto para o futuro/TV Escola/SEED/MEC, 2008.
TITIEV, Mischa. Introdução à Antropologia Cultural. 9ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 2002.
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* Texto preparado como material complementar às aulas de Antropologia Cultural, ministradas aos alunos do 2º período de Administração de Empresas, da FAP, durante o primeiro semestre de 2009. Esta leitura se completa com Uma Antropologia da Cultura II e Uma Antropologia da Cultura III
Neri de Paula Carneiro - Mestre em Educação (UFMS). Especialista em Educação; Especialista em Didática do Ensino Superior; Especialista em Teologia; Professor de História e Filosofia na rede estadual, em Rolim de Moura – RO. Filósofo; Teólogo; Historiador; Professor de Filosofia e Ética na Faculdade de Pimenta Bueno (FAP). Jornalista, produtor e apresentador de programa radiofônico.
[2] Caso o leitor deseje mais informações sobre as correntes e escolas antropológicas elas podem ser buscadas, em Laplantine (2000), Mello (1982), Rabuske (1999), entre outros.
[3] LAPLANTINE (2000), em nota, afirma que a antropologia passou a ser ensinada nas universidades européias a partir do século XX. 1908, na Grã-Bretanha e 1943, na França.
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