Riqueza, Pobreza e Afins

"O primeiro homem que cercou um pedaço de terra e disse que era sua propriedade e encontrou pessoas que acreditaram nele foi o fundador da sociedade civil. Daí vieram muitos crimes, muitas guerras, horrores e assassinatos que poderiam ter sido evitados se alguém tivesse arrancado as cercas e alertado para que ninguém aceitasse este impostor. Não podemos esquecer que os frutos da terra pertencem a todos nós e a terra a ninguém" (Rousseau1 em Discurso da Desigualdade.)

Autopiedade nunca é aconselhada pelos psicólogos, talvez por ser um fator desmotivador do ser. O miserável não deve sentir pena de sua condição, nem o pobre sentir vergonha da sua. Quem deve se envergonhar de algo são os milionários (não todos, mas a maioria) e os ricos. As pessoas de classe média satisfeitas atingiram o bom senso.

O miserável é uma vítima do pecado capital de sua sociedade, a saber o Adão que cercou o pedaço de terra que cita Rousseau no excerto que abre esta discussão. Além do mais, o miserável é vítima duas vezes. Uma pela fortuna, e outra pela crueldade. A primeira diz respeito ao nascimento deste em condições impróprias ao exercício da dignidade (ter acesso a tudo o que é necessário e ser reconhecido por todos como uma pessoa, no pleno sentido da palavra) e a segunda diz respeito a negação dos direitos civis deste homem. Esta negação por sua vez se dá de duas formas, a primeira é mecânica por força da lei ou sua ausência, e a segunda é humana pela dependência das pessoas entre si.

Esta separação é apenas formal, uma vez que os dois tipos de negação se dão em comunhão no mais das vezes. Por exemplo, um andarilho espancado por um grupo de jovens embriagados que derramaram álcool nele não é levado a sério por algum delegado, que, a julgar pelos trajes e pelo odor de álcool que o indivíduo apresenta supõe que este esteve envolvido em alguma briga de bar que, provavelmente, ele mesmo tenha provocado. Este caso é clássico, pois apresenta a omissão do estado (a lei) que garantisse dignidade a esta pessoa para que não precisasse residir nas vias públicas, e uma vez isto faltando, uma cobertura policial para que evitasse o espancamento daquela pessoa por aqueles jovens. A outra negação tem a ver com o juízo pré-concebido e gerado pela generalização dos fatos cotidianos que leva a este juízo, embora o delegado não seja a autoridade responsável por julgar, de que aquele "senhor bêbado" não merece atenção.
Cá, por efeito didático, vamos nomear o fator ou os fatores que levam a impossibilidade do exercício da dignidade humana como "pecado social". Escolho a palavra pecado, uma vez que em seu sentido clássico pecado é uma atitude que vai contra um conjunto de princípios e que será punido por uma autoridade maior. Expresso neste termo meu otimismo (esperançoso, é claro) de que em algum dia o Estado será uma autoridade maior de um povo, e tudo que atentar contra a dignidade deste povo será devidamente eliminado.

Segundo Durkheim2 o crime é "normal" em uma sociedade. Eu vou mais além e digo que além do crime ser normal, no caso do miserável, é até desculpável. Justiça implacável só é razoável uma sociedade justa. Se por um acaso o miserável rouba para se alimentar, é desculpável, se rouba para comprar um artigo em um shopping center, é desculpável pois os outdoors daquele mesmo tênis o despertaram o desejo de adquirir aquele produto, se se mata por ter desenvolvido uma raiva contra a sociedade que o criou e o deserdou ao nada, é desculpável. O miserável é a categoria mais desumana a que uma pessoa pode ser relegada. Na literatura, o exemplo de miserável que Victor Hugo3 traça em obra homônima pode ser aplicado, com as devidas adaptações, para o contexto atual e global, só que com um requinte de crueldade bem mais desenvolvido e menos refinado.

O pobre é um indivíduo cuja a fortuna não o colocou em uma condição tão hostil quanto o miserável. Em linhas gerais, o pobre é nascido em uma família erroneamente nomeada de "humilde", ou seja, uma família com baixo poder aquisitivo (ao contrário do miserável que não tem poder aquisitivo algum). Em uma visão otimista, um dos membros da família é um assalariado em um serviço de baixa remuneração, que embora possa ser indispensável e essencial (como é o caso do gari, do auxiliar de limpeza, etc...) é desprestigiado pelo senso comum como sendo sub-emprego. Ainda na visão otimista, o assalariado possuí alguns benefícios assegurados (ainda que vagamente) pelo estado que o dotam de uma já significante dignidade, a saber, documentos, título de eleitor, carteira assinada, direito a utilizar o SUS, o sistema de educação e a previdência social. É alfabetizado e possuí pelo menos o ensino fundamental.

Em uma visão pessimista do mesmo caso, o indivíduo que constituí – ou constituiria – o potencial econômico daquela família está desempregado, é analfabeto ou semi-alfabetizado, tem documentos desatualizados ou não os tem, não tem acesso pelo motivo anterior aos direitos "assegurados" pelo Estado, sustenta a família com bicos, emprega os filhos e o conjugue em sub-empregos, o popular bico.

A condição do caso otimista é de progresso, na medida em que os filhos têm – devido aos avanços das políticas sociais, que não são perfeitas mas existem – a um nível de instrução maior que o dos pais, no futuro podendo aumentar a renda familiar e galgar degraus sociais.

A condição do caso pessimista é a estagnação ou o declínio sucessivo, podendo não excluir a possibilidade de atingir a miséria.

O rico comete pecados sociais conscientes e inconscientes, tornando a riqueza uma fonte de danos maior que de benefícios. O rico pode cometer pecados socais conscientes quando enriquece por explorar as oportunidades causando danos aos outros. Um comerciante que por algum acaso, retém a exclusividade de um produto essencial e exagera nos preços. Em um exemplo industrial, Marx4 expressa de forma avançada este conceito através da sua teoria de mais valia. Este comerciante sofrerá quando outros oportunistas desenvolverem produtos semelhantes aos seus, as vezes até por meio que espionagem industrial, que também é um crime social. O rico pode cometer pecados sociais inconscientes quando, mesmo que acumulando riqueza honestamente, com anos de trabalho e dedicação, lega a sua prole sem restrições o acesso a sua riqueza, negando a estes o aprendizado sobre o valor do dinheiro, não no sentido econômico mas no sentido da medida pessoal do empenho de alguém em algum determinado exercício para conseguir aquele montante. É o que no popular se diz "estragar os filhos".

Os milionários são a categoria em que os sintomas da riqueza são mais graves, embora semelhantes, em maior escala do que os dos ricos.

Porém, os ricos e milionários podem bem fazer de seu poder econômico e político quando emprestam do Estado alguma obrigação, chamada atualmente de "responsabilidade social" e de alguma forma distribuem a renda. Um rico ou milionário e benéfico quando de alguma forma distribui a renda. A vantagem em se ter um rico ou milionário é diretamente proporcional ao número de pessoas que por ele são auxiliadas. O pecado social que se pode cometer neste caso, é utilizar a "responsabilidade social" como propaganda para acumular mais capital ainda. O altruísmo é o ideal nesse caso. A responsabilidade social só é verdadeira quando anônima. Um exemplo que posso me referir é que uma companhia jurídica de proporções milionárias tenha parte de seus recursos destinado a educação da higiene bucal e do tratamento gratuito e de qualidade a grupos sociais que carecem de fato deste tipo de orientação, sem com isso, ostentar a marca de sua empresa em veiculações publicitárias destinadas aos utilizadores pagantes que, de boa fé, recrutam e satisfazem-se mais com a utilização daquela determinada empresa por agir "responsavelmente".

Finalmente chegamos a classe média. Esta existe em duas esferas, a medíocre e a satisfatória. O que estas tem em comum é que ambas tem seus direitos assegurados pelo estado, podem se desejarem ter acesso a saber quais são estes direitos, e podem no caso do estado falhar em seu papel de assegurá-los, contratar um serviço dos profissionais das leis. A diferença é que, a esfera medíocre não se satisfaz com sua condição, e embora não seja capaz de atingir a riqueza a desejam e a tentam de formas socialmente pecaminosas. Um exemplo, é o cidadão de classe média que tem economias para pagar seus impostos e compra notas frias para sonegar, alegando vagamente que "os impostos não vão para o lugar devido", cometendo outro pecado social que é o de justificar um erro pelo erro alheio. A esfera satisfatória é aquele que satisfaz-se com o nível de conforto e estabilidade que atingiu, e ainda que possua pretensões de riquezas, não se utiliza de subterfúgios ilícitos para saciar esta sede de riqueza, que é comedida e saciada vez ou outra com um ou outro artigo incomum a sua condição social.

A classe média é a classe ideal e o objetivo ideal de um Estado que se pretenda justo, é o mínimo, ainda que existam ricos e milionários que os miseráveis e os pobres atinjam a classe média. Pois trata-se, economicamente, do equilíbrio entre o essencial e o luxo. Proporciona conforto necessário e a estabilidade merecida aos trabalhadores.
Campinas, março de 2009

1 Jean-Jacques Rousseau (Genebra, 28 de Junho de 1712 — Ermenonville, 2 de Julho de 1778) foi um filósofo suíço, escritor, teórico político e um compositor musical autodidata. Uma das figuras marcantes do Iluminismo francês, Rousseau é também um precursor do romantismo.

2 Émile Durkheim (Épinal, 15 de abril de 1858 — Paris, 15 de novembro de 1917) é considerado um dos pais da sociologia moderna. Durkheim foi o fundador da escola francesa de sociologia, posterior a Marx, que combinava a pesquisa empírica com a teoria sociológica. É reconhecido amplamente como um dos melhores teóricos do conceito da coesão social.

3 Victor-Marie Hugo (Besançon, 26 de fevereiro de 1802 — Paris, 22 de maio de 1885) foi um escritor e poeta francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables, sua melhor peça e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras.

4 Karl Heinrich Marx (Tréveris, 5 de maio de 1818 — Londres, 14 de março de 1883) foi um intelectual e revolucionário alemão, fundador da doutrina comunista moderna, que atuou como economista, filósofo, historiador, teórico político e jornalista.

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