Relativismo ou Objectivismo?

1. Introdução

O relativismo é uma doutrina filosófica bastante antiga, apesar da sua popularidade ter vindo a flutuar ao longo dos anos. Hoje em dia o relativismo está outra vez na moda, sobretudo nos departamentos de literatura e crítica literária. Podemos assumir uma posição relativista em relação a várias coisas. Mas, em geral, o relativismo caracteriza-se por afirmar que em certas áreas a verdade é relativa a um certo ponto de vista, quer seja do singular quer seja do plural. O relativismo caracteriza-se pela negação de que possamos vir a ter um conhecimento objectivo em relação a certas áreas. Por exemplo, podemos ser relativistas em relação ao valor estético, e assim afirmar que uma obra de arte é boa é algo que depende de um certo ponto de vista. Podemos também ser realistas em relação à ciência, em relação à moral, em relação à verdade em certas áreas do saber e à racionalidade.

O relativismo é, a meu ver, uma das correntes filosóficas mais nefastas de sempre. A razão disto é o facto de pôr em causa toda uma tradição cultural, abolindo os critérios de excelência académica porque tanto lutámos; ideais de verdade e racionalidade são agora rejeitados. Assiste-se assim ao nascimento de duas subculturas universitárias distintas e que John Searle classificou como: a subcultura da universidade tradicional, que se caracteriza pelos seus padrões de racionalidade, verdade e objectividade, onde a disseminação do conhecimento é uma prioridade; e a subcultura do pós-modernismo onde todos os padrões de excelência tradicionalmente aceites são postos em causa.

O que motivou este movimento pós-modernista, foi o espanto de um pensar específico e localizado num tempo e espaço específicos poder atingir algo de universal e objectivo. O reconhecimento destas limitações e da dificuldade em alcançar a objectividade uma vez que toda a representação emana de um ponto de vista e sob alguns aspectos e não sob outros, é um dos aspectos mais importantes que deu origem a esta era de cépticos pós-modernistas. Sem dúvida que no seio deste cepticismo está a falácia do apelo à ignorância, pois do facto de não sabermos se é possível alcançar a objectividade não se segue que não seja de todo possível alcançá-la. Mais adiante faremos as críticas; para já convém situar o objecto dessa crítica.

O maior «inimigo» do relativismo, e aquele que convém «abater», é o realismo. O realismo é aquela doutrina filosófica que está na base de todas as revindicações de objectividade, verdade e racionalidade. A ideia que é veiculada, é a de que apesar de possuirmos representações mentais e linguísticas do mundo em forma de crenças, teorias, afirmações, etc., existe um mundo que é totalmente independente dessas representações. Mas esta ideia é consistente com a existência de certas áreas da realidade que são, de facto, construções sociais. Por exemplo, o dinheiro, as instituições sociais, graus académicos, etc. Se nos extinguíssemos, essas coisas desapareciam connosco, mas as árvores, os animais, o planeta Terra, o universo continuariam a existir. O conhecimento pode ser caracterizado por ser «um conhecimento acerca de uma realidade independente da mente que se exprime numa linguagem pública que contém proposições verdadeiras, e estas proposições são verdadeiras porque representam com precisão essa realidade e chegamos ao conhecimento aplicando os constrangimentos da racionalidade e da lógica a que o conhecimento está sujeito. Os méritos e deméritos de uma teoria são em grande parte uma questão de se coadunarem ou não aos critérios implícitos nesta concepção.» São os princípios implícitos a esta definição de conhecimento que os relativistas pretendem pôr em causa. E são as críticas feitas pelos relativistas e, particularmente, por Richard Rorty, que pretendo analisar.

Este ensaio será assim dividido em três momentos distintos: um primeiro momento onde apresento e exponho as críticas relativistas de Rorty à cultura tradicional, um outro de refutação destas críticas, mostrando porque motivo não colhem, e um último momento onde irei considerar as consequências que advêm para a cultura tradicional da aceitação das críticas relativistas.

2. Relativismo e Objectivismo

Um dos problemas associados às teses relativistas de Rorty ¾ apesar de ele rejeitar o rótulo de relativista ¾ é o facto de ele as expor de um modo elíptico e incompleto. Torna-se, por vezes, bastante difícil saber exactamente quais as teses que defende, dada a sua dificuldade em se comprometer e em clarificar as suas ideias, tornando o seu discurso um pouco vago e impreciso.

A Filosofia e o Espelho da Natureza é considerada a obra maior de Rorty, na qual ele apresenta as suas principais ideias ¾ apesar de modo, por vezes, bastante insuficiente e vago, com demasiadas referência históricas, o que torna o seu discurso excessivamente prolixo. Tal como o nome indica, Filosofia e o Espelho da Natureza é uma metáfora que pretende simbolizar as pretensões de objectividade e conhecimento que têm feito parte da filosofia e, em particular, da filosofia analítica e da ciência. A ideia que se encontra por detrás desta metáfora é a ideia da mente como espelho da natureza. Isto é, a ideia da mente como um meio de aquisição de representações correctas e objectivas acerca do mundo. E é esta ideia que Rorty contesta. Parte das suas objecções vão contra a tese de que é possível obter um conhecimento objectivo do mundo, um conhecimento fundado que explicaria o sucesso da ciência. A noção de representação correcta não implica apenas uma epistemologia, mas também uma teoria da referência que explique o modo como a linguagem consegue referir uma realidade a ela exterior. Daí as críticas de Rorty às noções de conhecimento, mente, linguagem e cultura que perfazem as pretensões da filosofia analítica que se reivindica de colocar a filosofia no verdadeiro caminho da ciência. Após a publicação desta obra em 1979, Rorty dedicou muitos artigos e conferências à disseminação dos seus ataques à metafísica tradicional. Mas toda esta discussão entre relativistas e objectivistas se pode resumir numa questão, a saber: se a primeira pessoa do singular ou do plural se esconde ou não por detrás de tudo o que dizemos ou pensamos.

3. Cepticismo e Racionalidade

Segundo Rorty, só poderíamos justificar o nosso conhecimento acerca do mundo se esse mundo fosse por nós criado. Caso contrário, afirmações como «o mundo é tal e tal» ou «o mundo é objectivamente tal e tal» não fazem sentido. Pois, para ele, «conhecer é representar cuidadosamente o que é exterior à mente; portanto, compreender a possibilidade e natureza do conhecimento é compreender o modo pelo qual a mente se torna apta a construir tais representações.»[Rorty (1979), pp.15]. Assim, saber em que consiste o conhecimento «[...] é descobrir algo acerca da mente, e reciprocamente»[Rorty (1979), pp.15].

O problema que está aqui em causa e que levou Rorty a negar a possibilidade de conhecimento objectivo, é o problema de saber como podem certas representações do mundo, as quais dependem de um ponto de vista da primeira pessoa, situado e temporalmente localizado, fornecer um conhecimento objectivo. Conhecer algo é conhecer algo exterior à nossa mente, mas o meio de aquisição de conhecimento é subjectivo, depende de uma representação perspectívica, que possui elementos não objectivos, não exteriores à mente. Uma vez que todos os processos de aquisição de conhecimento dependem de uma perspectiva da primeira pessoa, esses conhecimento possuem, necessariamente, elementos subjectivos. E logo, o conhecimento objectivo é impossível. Assim sendo, defende Rorty, tudo o que nos resta é comparar as várias descrições que possuímos.

Não penso que este raciocínio esteja correcto, pois do facto de nenhuma das nossas representações do mundo ser impessoal, uma vez que essas representações são indexada a uma mente que as tem, não se segue que elas não possam ser correctas e fornecer um conhecimento objectivo daquilo que representam. Segundo Thomas Nagel, o problema é o de que «uma vez que é impossível abandonar inteiramente o nosso próprio ponto de vista sem deixar de existir, a metáfora de sair para o exterior de nós próprios tem de ter outro significado. Temos de confiar cada vez menos em certos aspectos individuais do nosso ponto de vista, e temos de confiar cada vez mais em qualquer outra coisa, menos individual, que também é parte de nós.» [Nagel (1986), pp.67].

Essa coisa menos individual que faz parte de nós de que Nagel nos fala, é a razão ou a mente racional. Mas para objectar ao relativismo de Rorty não basta dizer que a razão pode funcionar como um quadro objectivo de referência, é preciso mostrar que ela funciona efectivamente como tal. Nagel apresenta várias razões que justificam esta pretensão objectivista da razão. Mas penso que é suficiente para mostrar a implausibilidade das teses cépticas de Rorty o seguinte argumento de Nagel:

O pensamento reconduz-nos sempre ao uso da razão incondicional se tentarmos colocá-lo em causa em termos globais, porque não podemos criticar algo com coisa nenhuma; e não podemos criticar o mais fundamental com o menos fundamental. A lógica não pode ser afastada pela antropologia. A aritmética não pode ser afastada pela sociologia nem pela biologia. E a ética também não pode, segundo julgo. [...] Podemos ser levados a reexaminar as nossas convicções aritméticas ou morais ao apontarem-nos influências culturais, mas o exame terá de efectuar-se usando o raciocínio aritmético ou ético de primeira ordem: não se podem deixar pura e simplesmente esses domínios para trás, substituindo-os pela antropologia cultural. [Nagel (1997), pp.30]

O problema de Rorty ao criticar a possibilidade do conhecimento objectivo é o facto de este não se aperceber que só poderá criticar esta possibilidade de um ponto de partida objectivo. Só se pode criticar uma teoria filosófica com argumentos; por outro lado, esses argumentos pressupõem certos princípios lógicos de inteligibilidade, sem os quais seriam destituídos de sentido. Mas esses princípios lógicos são por sua vez objectivos, são necessários a qualquer discurso dotado de sentido. Pois, como nos diz Kant, «[...] não é a universalidade do assentimento que prova a validade de um juízo (isto é, a validade do mesmo como conhecimento), mas que, se essa validade objectiva fosse encontrada de modo casual, ele não poderia produzir uma prova da concordância com o objecto (Objeckt); pelo contrário, só a validade objectiva constitui o fundamento de um consenso universal necessário.» [Kant (1788), A 25]

O que acontece é que qualquer proposta revisionista implica já um apelo à razão, como condição de inteligibilidade da própria proposta. Qualquer tentativa de pôr em causa a validade objectiva de um raciocínio constitui necessariamente uma tentativa de fornecer razões contra ele, tentativas estas que têm de ser racionalmente avaliadas, se são para serem levadas a sério.

Por outro lado, só podemos discutir a objectividade da ciência com mais raciocínios científicos, só podemos discutir a objectividade da moral com mais raciocínios morais, só podemos discutir a objectividade da filosofia com mais raciocínios filosóficos, e assim por diante. É claro que daqui não se segue que os resultados alcançados sejam indiscutíveis, mas apenas que só podemos alcançar resultados na continuação do mesmo processo ¾ isto é, aquilo a que Nagel chamou de um discurso de primeira ordem. Daí que qualquer proposta revisionista, como a proposta relativista de Rorty, tenha de se processar como um adiantamento do corpo de crenças, competindo com aquelas que está a tentar eliminar.

Talvez possamos dizer em defesa de Rorty que uma vez que ele recusa o rótulo de relativista, talvez tenha uma proposta que se constitua verdadeiramente como alternativa às teorias objectivistas que ele tanto critica.

3. Verdade como concordância

Rorty rejeita o rótulo de relativista, assumindo-se meramente como pragmatista. Existe uma passagem particularmente explícita a este respeito:

«Relativismo» é o epíteto tradicional aplicado pelos realistas ao pragmatismo. Esta palavra designa geralmente três concepções pragmatistas. A primeira é a concepção de que toda a crença é tão boa quanto qualquer outra. A segunda considera a «verdade» um termo equívoco, tendo tantos significados quantos os procedimentos de justificação existentes. A terceira é a concepção que defende que nada pode ser dito sobre a verdade ou a racionalidade, com excepção das descrições dos procedimentos de justificação familiares que uma sociedade ¾ a nossa ¾ utiliza numa ou noutra área da investigação. O pragmatista adopta a terceira concepção, a etnocêntrica. Não adopta a primeira concepção porque esta se refuta a si própria, nem a segunda porque ela é excêntrica. Ele pensa que as suas concepções são melhores do que as dos realistas, mas não pensa que as suas concepções correspondam à natureza das coisas.[...] Contudo, não é evidente que o termo «relativista» seja apropriado à terceira concepção, a etnocêntrica, aquela que o pragmatista sustenta. Pois este não defende uma teoria positiva que afirme que algo é relativo a qualquer outra coisa. Em vez disso, ele reforça a tese puramente negativa de que deveríamos abandonar a distinção entre a verdade como correspondência aos factos e a verdade como termo de aprovação de crenças justificadas. [Rorty (1984): «Solidariedade ou Objectividade?», pp.48].

Rorty defende que as teorias relativistas acerca da verdade são facilmente refutáveis, sendo a alternativa ao relativismo acerca da justificação do conhecimento o seu «etnocentrismo», isto é, a tese de que a justificação é relativa às nossas práticas. A defesa das nossas crenças relativamente a desafios impostos por outras comunidades tem de ser sempre circular, mas isto não vicia a defesa, uma vez que nenhum outro tipo de defesa é melhor ou mesmo tão boa, e a avaliação tem sempre de ser contra alternativas relevantes.

Há aqui dois momentos a considerar. Um primeiro que irá consistir na exposição do pragmatismo que Rorty defende, e um segundo em que iremos ver por que motivo o pragmatismo de Rorty é tão deficiente quanto aqueles que ele exclui e classifica como relativistas.

O pragmatismo de Rorty pretende-se afirmar como uma crítica ao conhecimento, à verdade como correspondência, à epistemologia fundacionalista, à metafísica tradicional, à ciência, em resumo, a toda uma tradição cultural. O que está por detrás das revindicações pragmatistas é uma tese historicista segundo a qual categorias como verdade, conhecimento e linguagem, não são mais do que funções do seu tempo, essencialmente formadas pela tradição histórica.

Para Rorty, objectividade é concordância com os nossos pares culturais. Ele defende este critério na seguinte base:

Não podemos encontrar um guincho celeste que nos eleve para lá da mera coerência ¾ mera concordância ¾ em direcção a algo como «correspondência com a realidade tal como ela é em si mesma» [...] Os pragmatistas gostariam de substituir o desejo de objectividade ¾ o desejo de estar em contacto com uma realidade que seja mais do que uma comunidade com a qual nos identificamos ¾ pelo desejo de solidariedade com essa comunidade.[ Rorty (1991) : «Science as Solidarity», pp.38-39]

Esta ideia de concordância torna-se bastante implausível se a analisarmos com um pouco mais de detalhe. Em geral, nós achamos que as nossas crenças acerca das verdades da ciência e da matemática, por exemplo, não deixariam de ser verdadeiras se nós não acreditássemos nelas. Mas o que Rorty defende é a coisa bizarra de que verdades como, por exemplo, a de que antes de nós seres humanos povoarmos a terra existiram outros animais muito bem adaptados, os dinossauros, que a habitaram durante milhões de anos, só são verdadeiras depois de nós passarmos a acreditar nelas. Mas se isso é o caso então esta afirmação é falsa, pois ela afirma que existia algo que era verdade antes de nós existirmos. Assim, segundo o critério de verdade de Rorty, frases como esta são verdadeiras se são falsas e se são falsas, são falsas. Em qualquer dos casos não falsas. O que é inaceitável. O problema com este tipo de critérios relativistas é o facto de se mostrar inconsistente com o conteúdo das afirmações em debate, tornando-se bem menos credível que estas.

Uma defesa a este tipo de argumento, é dizer que ele não pretende dizer nada que entre em conflito com o teor das nossas crenças, quer estas sejam matemáticas, científicas, ou outra coisa qualquer. O que ele pretende é meramente explicar como elas funcionam de facto.

O que pessoas como Kuhn, Derrida e eu pensamos é que é inútil perguntar se existem montanhas ou se será meramente conveniente, para nós, falar de montanhas.
Pensamos também que é inútil perguntar, por exemplo, se os neutrinos são entidades reais ou meras ficções heurísticas úteis. Isto é o tipo de coisa que queremos dizer ao afirmar que é inútil perguntar se a realidade é independente dos nossos modos de falar acerca dela. Dado que é compensador falar de montanhas, como sem dúvida é, uma das verdades óbvias acerca de montanhas é que elas já existiam antes de falarmos delas. Se não acreditarmos nisso, não saberemos provavelmente como jogar os jogos de linguagem habituais que usam a palavra montanha. Mas a utilidade desses jogos de linguagem não tem nada a ver com a questão de saber se a Realidade, tal como É Em Si, para lá do modo útil que os seres humanos têm de a descrever, tem montanhas. [Rorty, «Does Academic Freedom Have Philosophical Pressupositions?, in Academe, Novembro/Dezembro de 1994, pp. 56-57]

Mas esta não é uma defesa credível, e continua a entrar em conflito com as nossas crenças mais básicas. Dizer que certas afirmações são parte de um «jogo de linguagem», e que só acreditamos nelas para sabermos como jogar esse jogo é absolutamente inaceitável. Pode até ser compensador falar de «montanhas» ¾ seja lá o que for que isto queira dizer. Mas certamente que não é compensador falar no mal moral, ou falar na existência de milhares de pessoas que morrem todos os anos vítimas de cancro. Será que só é útil acreditarmos nisso para sabermos como jogar certos os jogos de linguagem? Mais grave ainda é quando Rorty explicita o seu critério de verdade como aquilo que é «bom para nós acreditarmos», à maneira de William James. Por que razão seria bom para nós acreditarmos numa doença tão grave como o cancro? Só para podermos participar num jogo de linguagem? Mas não seria melhor para nós que não existisse uma tal doença do que a oportunidade de podermos falar sobre ela? Mas se é bom falar sobre ela para podermos dominar os jogos de linguagem em que esta palavra, «cancro», ocorre, é porque existe de facto algo lá fora que corresponde à nossa linguagem. O que é precisamente aquilo que Rorty não quer aceitar.

Além disso, a ideia de que a objectividade não é mais do que solidariedade entre os nossos pares culturais contradiz, como vimos, as afirmações de que pretendemos estar a falar. Deste modo, Rorty não consegue escapar à autocontradição típica das teses relativistas.

Outro problema associado a esta ideia de concordância ou solidariedade com os pares culturais é o da vacuidade de um tal critério. Pois não se percebe quem devemos incluir como nossos pares culturais. Mas Rorty defende-se desta acusação dizendo:

Dizer que um acordo natural é suficiente origina o espectro do relativismo. Para aqueles que dizem que a doutrina pragmática da racionalidade é perniciosamente relativista perguntam: «Natural concordância entre quem? Nós? Os Nazis? Uma qualquer cultura ou grupo arbitrário?» A resposta é, claro, «nós.» [Rorty (1991): «Science as Solidarity», pp.38]

Mas a pergunta que agora temos de fazer é: Nós, quem? É demasiado vago dizermos que a concordância é entre o nosso grupo, pois não sabemos quem incluir neste grupo. Suponha-se que incluímos no nosso grupo o conjunto dos intelectuais vivos em todo o mundo. É um facto que nem todos aceitamos as mesmas teorias, e é também um facto que a maioria deles não é relativista ¾ aliás, é por esse motivo que Rorty escreveu o que escreveu, para os convencer a mudar de posição. Como a verdade é por Rorty definida como concordância entre «nós», então, à luz dos seus próprios critérios, a sua teoria é falsa. Poderíamos dizer que é falsa agora, mas daqui a uns anos, quando «nós» tivermos sido substituídos por outros «nós» a teoria passa a ser verdadeira. Mas isso é um factor irrelevante ¾ além disso Rorty rejeita contrafactuais achando com são meros «observadores fantasma» ¾, o que importa considerar é que à luz daquilo que Rorty defende, como alternativa à sua cultura, a sua teoria é falsificada pelos seus próprios critérios: é autocontraditória. Note-se que não se trata de uma autocontradição lógica, uma vez que esta inconsistência depende de uma premissa empírica relativamente à cultura. Mas isso não obsta ao carácter auto-refutante da sua teoria, uma vez que esta premissa empírica é uma premissa que poucos contestariam. Logo, à luz do seu critério de verdade, a sua teoria não é verdadeira, não podendo assim constituir-se como alternativa a esta cultura, como ele desejaria.

Mas, como seria de esperar, Rorty não aceita esta conclusão. Em A Filosofia e o Espelho da Natureza, distingue dois tipos de discurso: o «normal» e o «hermenêutico». No discurso normal, a verdade é definida como concordância com os nossos pares culturais, mas quando não se pode chegar a acordo porque os membros da nossa comunidade estão comprometidos com diferentes paradigmas, então o discurso é hermenêutico. Uma vez que o que acontece no caso das discussões entre os relativistas e os anti-relativistas, é o facto de eles não chegarem a acordo por se encontrarem comprometidos com paradigmas incomensuráveis, o seu discurso é hermenêutico. E logo, as suas afirmações, em si mesmas, não são nem verdadeiras nem falsas. A discussão é assim um mero processo de retórica, um discurso meramente «edificante». Mas Rorty não se escapa assim tão facilmente. O facto de ele achar que dizer de uma teoria que ela é verdadeira não é mais que lhe fazer um elogio, não se segue que nós, objectivistas, tenhamos de concordar com isso. Uma vez que ele não se propõe como alternativa, e uma vez que não consegue refutar o nosso critério de verdade, fica assim provada a falsidade da sua teoria.

4. Ciência e Solidariedade

Rorty defende uma tese historicista porque acha que a própria história da filosofia nos encaminhou até ela. Ele pensa que Dewey, Wittgenstein, Quine, Heidegger e Derrida são os verdadeiros descendentes de Hegel, que à sua maneira reagem contra a tese kantiana que vê a filosofia como um meio de descobrir a estrutura a priori do conhecimento. Para ele, estes filósofos vão pôr em causa esta ideia de que podemos possuir um descrição objectiva do mundo, afirmando que as descrições têm uma mera função utilitária. Do facto de a teoria de Newton, por exemplo, funcionar melhor que a de Aristóteles, não devemos tirar qualquer conclusão epistemológica.

Enganava-se Aristóteles quanto ao movimento estar dividido em natural e forçado? Ou referia-se ele a qualquer coisa diferente daquilo em que falamos quando mencionamos o movimento? Deu Newton respostas certas às perguntas a que Aristóteles havia dado respostas erradas? [...] Porque haveríamos de pensar a pergunta «O que é que eles queriam dizer?» ou «A que se referiam eles?» acabará por ter uma resposta determinada? Porque não haveria ela de ser respondível de qualquer um dos modos, dependendo de quais as condições heurísticas que são relevantes para qualquer propósito historiográfico particular? [Rorty (1979), pp.210]

Segundo Rorty, a ciência é vista como o modelo exemplar de objectividade, porque «na nossa cultura, as noções de "ciência", "racionalidade", "objectividade" e "verdade", estão todas interligadas.» [Rorty (1991): «Science as Solidarity», pp.35]. Daí que não se possa atacar as teorias objectivistas sem se colocar em causa a ciência.

Uma defesa da objectividade da ciência é sempre colocada em termos do seu sucesso. Mas, para Rorty, a questão de saber o que faz com que a ciência tenha sucesso, é uma má questão. Inspirando-se em Thomas Kuhn, ele defende que o sucesso de uma teoria científica advêm não do facto de fornecer uma melhor descrição do mundo, mas de exemplificar o poder de novos vocabulários. O seu ataque ao sucesso da ciência é bastante insatisfatório e não deixa perceber como se processa essa recusa da objectividade da ciência. Acabando por fazer estranhas afirmações como,

Precisamos de deixar de pensar na ciência como um lugar onde a mente humana se confronta com o mundo, e precisamos de deixar de pensar nos cientistas como exibindo uma humildade própria face a forças sobre-humanas.
[...] A minha rejeição das noções tradicionais de racionalidade podem ser resumidas pela afirmação de que o único sentido no qual a ciência é exemplar é porque é um modelo de solidariedade humana.
[...] Se dizemos que a sociologia ou a crítica literária «não é uma ciência,» apenas queremos dizer que a quantidade de acordo entre os sociólogos e os críticos literários no que respeita àquilo que conta como trabalho significativo, trabalho que necessita de ser seguido, é menor do que entre, digamos, os microbiólogos. [Rorty (1991): «Science as Solidarity», pp.39-40]

O que quer ele dizer com a ciência ser um «modelo de solidariedade humana»? É porque existe um maior acordo entre eles do que nas restantes áreas do saber? Mas imagine-se que existe um acordo entre um grupo de sociopatas que acham por bem matar todas as criancinhas com olhos verdes. Eles estão todos de acordo. E são solidários? Solidários com quê? Com a sua causa? Isso não pode ser, porque não se sabe qual é a causa da ciência, uma vez que Rorty rejeita que seja a objectividade, a verdade. Sendo assim o que nos resta? Uma conversa amena em que estejamos todos de acordo? Nesse caso, não precisaríamos de sermos seres racionais, as moscas estão todas de acordo, uma vez que não têm capacidades cognitivas para discordarem. Então, se nós também não as tivéssemos seríamos todos solidários. Mas o que é isso da solidariedade? Um valor moral objectivo? Não se sabe. Uma vez que Rorty se mostra incapaz de explicar por que razão os microbiólogos têm mais acordo entre eles, do que, por exemplo, os sociólogos, então não temos quaisquer motivos para rever as nossas convicções de que o objectivo da ciência é fornecer-nos uma descrição objectiva do mundo. Se não existem noções objectivas, e se tudo se reduz a meras construções linguísticas, porque motivo existe um maior acordo dentro da ciência do que dentro da sociologia? Ou por que motivo são os cientistas mais solidários? Rorty parece estar apenas a dizer que são mais solidários porque são mais solidários, o que não é aceitável se ele se quer afirmar como uma alternativa séria à nossa tradição cultural. Dizer que os cientistas são mais solidários não é um facto bruto, e se o fosse ele teria de o explicar porquê, uma vez que tal não é nada evidente. Assim, não existe nenhuma razão porque devamos rejeitar o objectivismo em prol do seu pragmatismo, uma vez que o modelo objectivista é muito mais credível, contendo maiores capacidades explicativas, do que o dele.

Mas existe algo de muito mais grave nesta proposta de substituição de «verdade» por «acordo entre o nosso grupo». Tome-se o seguinte exemplo. Imagine-se que estávamos no tempo da Alemanha Nazi. Uma vez que todos estavam de acordo com a ideia de que os judeus eram uma raça inferior, que eram a praga da humanidade, então isso era o caso. Acho que não há nada moralmente mais repugnante do que uma teoria que defenda ou possibilite este tipo de juízos morais.

Mas Rorty defende-se dizendo que ele não quer propor uma alternativa, mas apenas «minar a confiança do leitor», dizendo que os seus escritos são mais «terapêuticos» do que «construtivos». E acrescenta:

Deve-se afirmar que, na prática, devemos privilegiar o nosso próprio grupo, mesmo que toda a justificação que possamos dar seja circular. Devemos insistir no facto de que embora nada esteja imune à crítica, não significa que tenhamos o dever de tudo justificar. Nós, os intelectuais liberais do ocidente devemos aceitar o facto de que temos de partir de onde estamos, e que significa que existem muitas ideias que nós simplesmente não podemos levar a sério. [Rorty (1984): «Solidariedade ou Objectividade?», pp.55]

É verdade que nada está imune à crítica, mas não se percebe por que razão ele não pode levar a sério certas ideias, quando as únicas que dificilmente se poderão levar a sério são as suas, uma vez que rejeita todos os padrões de verdade, racionalidade, objectividade, coerência, excelência, etc., que fazem com que uma teoria se apresente como séria. Se ele pretende que façamos uma revisão tão drástica nas nossas convicções como aquela que propõe, tem de dar razões para isso, não há outra forma de o fazer. A não ser que o teor das suas obras seja meramente panfletário, o que faz com que o não possamos «levar a sério». Pois, como Thomas Nagel diz:

Esta é a consequência inevitável de tratar a proposta como algo acerca do qual somos convidados a pensar; e qual é a alternativa? Aqueles que colocam em causa a posição racionalista defendendo que, na realidade ela apela, em todos os estádios, a intuições, práticas ou convenções contingentes e talvez localizadas, podem tentar aplicar esta análise até às últimas consequências, sempre que se enfrenta um desafio lançado à razão por meio de raciocínio. Mas não estou a ver como podem pôr termo ao processo lançando um desafio que não nos convida, ele próprio, à avaliação racional. [Nagel (1997), pp. 35]

5. Ciência e Pragmatismo

Ao criticar a ciência como forma de obter um conhecimento objectivo acerca do mundo Rorty comete, a meu ver, um erro bastante grave. Ao contestar que certas teorias fornecem representações objectivas da realidade que descrevem, Rorty acaba por negligenciar o facto de, como já tivemos oportunidade de dizer, só se poder contestar uma teoria científica com outra teoria científica ¾ a objecção tem de ser feita dentro de um discurso de primeira ordem. Não podemos pôr em causa a veracidade de uma teoria científica com argumentos filosóficos.

A diferença entre o que é teórico e o que é observável só a ciência nos pode dizer, uma vez que são as próprias teorias científicas que explicam o que pode ou não contar como observação, ou que é observado. Já os inimigos de Rorty, os positivistas, haviam cometido este erro, caracterizando e louvando a ciência pelo seu respeito pelos factos brutos.

Um das características da ciência é o facto de ela poder muitas vezes explicar a verdade das suas teorias. Quando se coloca uma teoria de pé, ela tem de conseguir explicar uma série de fenómenos para ser considerada credível, se não conseguir, se falhar na sua previsão é porque a sua capacidade explicativa é fraca e aquilo que objectivamente aconteceu explica a razão por que tem de rejeitar ou modificar a teoria em causa ¾ o que aqui está em causa é uma espécie de falsificacionismo popperiano. Assim, dentro da própria ciência, podemos explicar por que motivo uma teoria foi preterida em prol de outra ¾ a que foi seleccionada tem maior capacidade explicativa. É isto que explica o avanço na ciência e porque motivo a física newtoniana é melhor que a aristotélica; não é uma mera «mudança de vocabulário» como Rorty defende.

[Os pragmatistas] recomendam que nos preocupemos apenas com a escolha entre duas hipóteses, antes de nos preocuparmos com a existência ou não de algo que «torne» uma delas verdadeira. Tomar uma tal posição afasta-nos de questões acerca da objectividade do valor, da racionalidade da ciência, e das causas da viabilidade de todos os nossas jogos de linguagem. Todas estas questões teóricas serão substituídas por questões práticas sobre se devemos manter os nossos valores actuais, as nossas teorias e práticas ou se devemos tentar substituí-las por outras. [Rorty (1991): «Science as Solidarity», pp.41]

Mesmo defendendo que a questão de saber se devemos ou não manter os nossos valores actuais é prática, Rorty não consegue explicar por que devemos abandonar as nossas concepções tradicionais. Limita-se a sugerir que não vale a pena levar a cabo o pesado trabalho de reflexão filosófica acerca dos nossos valores actuais, das nossas teorias e métodos. É claro que ele pode defender o que quer que seja, mas a sua proposta não é credível e deve ser preterida relativamente à explicação tradicional, dada a sua ineficácia explicativa.

Uma das características da ciência tradicional a que Rorty parece não dar importância, é o facto de ela conseguir explicar o motivo por que funciona e como é possível que criaturas limitadas como nós possamos descobrir algo acerca do mundo. Dizer que as descobertas levadas a cabo por teorias como a da relatividade de Einstein ou a da selecção natural de Darwin são meras trivialidades é um erro grosseiro e um desrespeito para com a comunidade científica. Diria mesmo uma tremenda falta de solidariedade para com os seus pares culturais.

Teorias científicas como as que atrás referimos, alargam a nossa visão do mundo. Estas contribuem não só para um aumento da nossa cognição como para um aumento do nosso reportório conceptual e perceptivo ¾ passamos a saber mais do que sabíamos antes. Rorty defende que uma tal concepção da ciência é mera ilusão. Mas, se o é, não é mero produto de um erro filosófico que possa ser explicado através da história da filosofia, através de uma referência a Kant e aos seus sucessores.

Admitindo-se, disseram os filósofos, que o balanço livresco da alteração das teorias é enganador, mesmo assim a filosofia pode fornecer tudo aquilo de que precisar o historiador da ciência. Procuraremos descobrir as condições em que sucessivas alterações de convicções produzem algo que não é meramente uma alteração de convicção mas uma alteração de «esquema conceptual». A noção de que não faria mal relativizar a igualdade de significado, a objectividade e a verdade a um esquema conceptual, na medida em que existem critérios para saber quando e como é que a adopção de um novo esquema conceptual era racional, foi tentadora por pouco tempo. Porque agora o filósofo, o guardião da racionalidade, tornou-se no homem que dizia quando é que se podia começar a significar algo de diferente, em vez de ser apenas o homem que dizia que se significava. [Rorty (1979), pp. 213-214]

Com esta ideia de que tudo o que podemos fazer, tanto os filósofos como os cientistas, é entrar no jogo de criação de novos esquemas conceptuais, Rorty não só pretende refutar a ideia que está por detrás das motivações científicas de descoberta do mundo, como levantar problemas à própria teoria pragmatista. Uma vez que os pragmatistas definem verdade como «aquilo que é bom que acreditemos», ficamos na dúvida se será bom ou não acreditar na sua proposta acerca do papel da ciência. Que motivos temos nós para achar que as afirmações dos pragmatistas acerca da ciência são melhores, que funcionam melhor, do que as dos cientistas? Não é necessário perguntar se a ciência nos fornece ou não um conhecimento perfeito do mundo tal como ele é em si, basta dizer que é melhor (porque é bom para nós) acreditarmos nas afirmações dos cientistas acerca do que é a ciência porque isso motiva-os a continuarem o seu trabalho. Assim, e mais uma vez, recusamos as pretensões pragmatistas acerca do que é a ciência com base nos próprios critérios que eles propõem.

No seu livro A Filosofia e o Espelho da Natureza, Rorty apresenta várias passagens onde afirma que nós achamos tremendamente conveniente pensar que a física descreve o mundo tal como ele é em si mesmo, em vez que pensarmos que o mundo muda conforme mudam as nossas práticas linguísticas. Mas se isso é assim tão tremendamente conveniente, se é assim tão bom, e uma vez que o único critério é precisamente o de conveniência, então seria melhor limitar-nos a afirmar que a física descreve o mundo tal como ele é em si mesmo. Não se compreende porque nos alerta Rorty para não pensarmos assim.

Uma defesa de Rorty, e talvez a única possível, seria dizer que sem a sua alerta inicial seríamos induzido em erro, acabaríamos por ser levados a acreditar em falsas imagens. Mas em que erro é que cairíamos? E quem nos induziria a cair nele? Rorty diria que eram os filósofos tradicionais, aqueles que se encontram na esteira de Kant. Mas isso não é correcto. Se alguém fosse o responsável do nosso erro não eram apenas os filósofos, eram acima de tudo os cientistas, pois são ele que nos prometem fornecer um reflexo objectivo a partir do espelho da natureza.

Mas, seja o que for que Rorty diga em sua defesa, há um problema a que ele não pode escapar. Nomeadamente, o problema de saber qual o conteúdo do nosso erro ao acreditarmos na objectividade da ciência. Ele não têm meios de responder a uma tal questão a não ser que tente reocupar o tal ponto transcendental, exterior às nossas práticas e à nossa linguagem, que é, precisamente, o que ele pretende negar.

Apesar de Rorty recusar o rótulo de relativista e acusar os relativistas ou de se auto-refutarem ou de serem excêntricos, parece que Rorty não só não se consegue livrar do rótulo, uma vez que ele é anti-objectivista e defende que as noções como as de verdade e conhecimento são relativas a uma cultura, como acaba por se mostrar excêntrico naquilo que defende, e está o tempo todo a cair em auto-contradições.

6. Considerações Finais

Toda a posição de Rorty que poderíamos designar como «anti-ismos», é definida por aquilo que ele nega. Ele diz mesmo que a sua filosofia é mais «edificante» do que «construtiva», seja lá o que for que ele quer dizer com isto. Mas, no essencial, defende uma posição anti-fundacionalista, no que diz respeito à epistemologia, uma posição anti-representacionalista no que diz respeito à filosofia da linguagem, uma posição anti-essencialista, relativamente à metafísica, e uma posição anti-realista e anti-anti-realista. Nenhum destas posições constitui uma teoria, mas uma colecção de considerações acerca da rejeição destas teorias.Segundo Rorty, os filósofos devem imitar as virtudes morais que as comunidades científicas exemplificam, mas devem conjuntamente abandonar a ideia de método científico ou método filosófico. O trabalho deles é encorajar a invenção de novas metáforas, criando novos vocabulários. Os filósofos devem limitar-se a um trabalho de hermenêutica, ajudando diferentes áreas da cultura a relacionarem-se com outras, evitando os conflitos, tal como os liberais políticos tentam acalmar os conflitos entre diferentes desejos e esperanças. Só assim haverá espaço para um tipo de filosofia pós-filosófica, um tipo de critica cultural, para a qual não é necessário qualquer experiência especial. O trabalho principal dos filósofos é o de afastar a má filosofia e as más ideias que estão a tornar-se um obstáculo ao trabalho útil de fazer com que as pessoas sejam mais felizes.

Penso que o projecto de Rorty, para além dos problemas internos que já discutimos, dificilmente se poderá constituir como credível. É no mínimo estranho achar que se pode propor uma nova cultura que se limita a brincar com os textos da cultura tradicional, a qual é essencialmente objectivista, sobretudo quando acreditamos que essa cultura tradicional é impraticável.

Acho no entanto que a filosofia de Rorty afecta não apenas a filosofia, mas toda uma cultura. Ele põe em causa tudo aquilo por que achávamos digno lutar, tudo aquilo em que acreditávamos. Por exemplo, que sentido faz continuar a fazer ciência, como ele pretende que se continue, se o objectivo da ciência é impossível de alcançar? Penso que o que Rorty nos propõe é que abandonemos os padrões tradicionais de objectividade, verdade e racionalidade, pretendendo abrir caminho a uma transformação social e política altamente limitada. Ao abandonarmos a noção de verdade objectiva e os nossos critérios de excelência, tanto faz ler o jornal Crime como Os Miseráveis de Victor Hugo, e tanto faz que adoptemos uma teoria patética como aquela que afirma da Lua que ela é feita de queijo, como uma teoria que afirma que a lua é feita de minerais e rochas. Searle chega mesmo a dizer que nos departamentos de literatura, onde o relativismo é mais popular, já não se fala de «clássicos» ou de «as grandes obras de literatura», mas, indistintamente, de textos, que tem a implicação de evitar juízos de valor acerca da qualidade desses mesmos textos.

Não tenho dúvidas em afirmar que se optarmos por seguir as propostas relativistas, estamos condenados a uma era de irracionalidade. Mas, não penso que o relativismo vá muito longe. Afinal, todos os géneros de relativismo, até mesmo o de Rorty, como tivemos oportunidade de provar, são auto-refutantes. A não ser que sejamos de facto irracionais, não podemos adoptar uma posição em que tudo vale.

Em defesa do objectivismo apenas posso dizer que este é a condição de possibilidade de certas práticas, principalmente das nossas práticas linguísticas. Não podemos coerentemente negar o objectivismo ou o realismo argumentando a favor de outra alternativa, pois só podemos argumentar coerentemente se pressupusermos o objectivismo. Caso contrário, o nosso discurso torna-se ininteligível, e então já não o poderemos refutar.

Em relação à questão do nosso ensaio, «Relativismo ou Objectivismo?», penso que ficou provado que, a não ser que sejamos irracionais, só nos resta optar pelo objectivismo.

7. Bibliografia

Rorty, R. (1979), A Filosofia e o Espelho da Natureza (Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1988).
(1989), Contingência Ironia e Solidariedade (Lisboa: Ed. Presença, 1988).
(1991) Objectivity, Realism and Truth: Philosophical Papers, vol. 1 (Cambridge: CUP).
(1998) Thuth an Progress: Philosophical Papers, vol. 31 (Cambridge: CUP).
(1984) «Solidariedade ou Objectivismo» in Crítica nº 3 (Abril, 1988), pp.45-62. (Este artigo encontra-se em: Objectivity, Realism and Truth: Philosophical Papers). Kant, I. (1788) Crítica da Razão Prática, Trad. Artur Morão, Edições 70, Liboa, 1994. Nagel, T. (1997) A Última Palavra, Gradiva Lisboa, 1999. (Crítica ao relativismo, em geral).
(1986) The View from Nowhere, OUP, Oxford. Malachowski, A. (ed.) (1990) Reading Rorty, Blackwell, Oxford. (Contém muitos artigos de crítica a Rorty). Putnam, H. (1992) Renovar a Filosofia, Instituto Piaget, Lisboa, 1998.
(1990) Realism With a Human Face, Harvard University Press, Cambridge. (Crítica ao relativismo de Rorty)
(1983) «Why Reason can´t be Naturalized» in Realism and Reason: Philosophical Papers, vol. 3, CUP, Cambridge.
Searle, J. «Rationality and Realism: What is at Stake?» in Dødalus, Vol. 122, No. 4, Fall 1992, pp.55-84. (Crítica à influência do relativismo na academia).

Nenhum comentário: