Pensar o sentido de uma proposição

    RESUMO: Linguagem e realidade constituem, no Tractatus de Wittgenstein, domínios estritamente isomorfos, no sentido de que compartilham uma mesma "forma lógica". Para explicar como é possível compreender o sentido de uma proposição, um recurso usual é admitir, entre os membros desse par, uma terceira instância - o pensamento -, que atuaria como o mediumatravés do qual se estabelecem as relações projetivas que conectam os dois domínios. Como resultado dessa interposição, uma dimensão mental, ou psicológica, passa a ser parte integrante da exposição do processo pelo qual a linguagem pode representar a realidade. Neste trabalho pretendo mostrar que esse recurso é incapaz de atingir o resultado pretendido e defendo a idéia de que uma explicação filosófica de como as proposições têm sentido deve ser alcançada por meio de considerações puramente formais, dispensando a introdução de qualquer instância ou atividade mental.

    ABSTRACT: In Wittgenstein's Tractatus, language and reality are strictly isomorphic domains, in the sense that they share a common "logical form". In order to explain the possibility of understanding the sense of a proposition, it has been customary to postulate a third instance - the thought -, that would act as a medium through which both domains get in touch, by means of projective relations. In consequence of this, a mental or psychological dimension is called to play an essential role in the account of how language can represent reality. In this paper I try to show that this does not help to solve the original problem, and that a philosophical explanation of how propositions get their sense must be formulated in purely formal terms, without resort to any mental facts or activities.

I

"Toda minha tarefa", escreveu Wittgenstein no início de 1915, "consiste em explicar a essência da proposição". Essa declaração, lançada entre as anotações que serviram de base para a redação do Tractatus Logico-Philosophicus, não retorna explicitamente no texto da obra acabada, mas é claro que não estaria ali fora de lugar, já que constitui uma etapa indispensável para atingir o objetivo final do livro, que é circunscrever o limite de tudo o que pode ser expresso na linguagem e chegar, com isso, a um entendimento crítico do propósito final da atividade filosófica.. Meu objetivo nesta exposição é examinar brevemente a maneira pela qual Wittgenstein procede para chegar a esse desvendamento da natureza da proposição e discutir algumas dificuldades que comumente são encontradas na interpretação desse procedimento.

O débito geral do Tractatus para com os trabalhos de Frege e Russell está explicitamente reconhecido no Prefácio, e, quanto ao tópico em questão, seu ponto de partida é basicamente o mesmo que o daqueles autores. Deixando de lado as diferentes terminologias empregadas para descrever esse processo, e, mais ainda, as diferentes implicações semânticas e filosóficas de suas exposições, pode-se dizer que os três autores citados concordam em que a proposição deve ser entendida como um complexo formado por elementos mais simples, e o problema que se coloca para todos eles é explicar como a sua significação se determina a partir da significação de seus constituintes.

Partindo desse pressuposto comum, a novidade do tratamento wittgensteiniano da proposição consiste em atribuir-lhe um estatuto inteiramente distinto do das expressões ou nomes que a constituem. Nomes adquirem significação ao atuarem, na linguagem, como representantes de alguma coisa. No Tractatus, são signos cujo significado decorre de que nomeiam um certo objeto - mais exatamente, seu significado é o objeto que nomeiam. A proposição, por sua vez, é uma combinação de nomes, e seu sentido - isto é, aquilo que ela diz ser o caso - é que os objetos nomeados estão combinados na realidade do mesmo modo como os nomes estão combinados na proposição.

Quanto à proposição, porém, Wittgenstein insiste em que a maneira pela qual ela se torna significativa, ou adquire seu sentido, não pode ser a mesma pela qual os nomes obtém seu significado. A dificuldade de se pretender que a proposição constitui um signo complexo cuja significação, em analogia com os nomes, seria dada por um objeto complexo (um fato, suponhamos) torna-se visível quando se observa que um nome que não representa um objeto é ipso facto um signo desprovido de significação, ao passo que uma proposição não deixa de ser significativa pelo fato de não haver um complexo que lhe corresponda: ela se torna apenas falsa, mas não sem sentido (Tractatus, 3.24)1. E, de fato, a explicação de como ela é capaz de preservar seu sentido independentemente de quaisquer circunstâncias ligadas à existência ou inexistência de complexos constitui o cerne do tratamento da proposição apresentado no Tractatus.

Em 3.1431 Wittgenstein oferece uma ilustração que ele supõe capaz de nos levar a uma concepção iluminadora da essência da proposição. Ele nos pede que a imaginemos composta não de sinais escritos mas de objetos espaciais como mesas, cadeiras, livros. A disposição espacial dessas coisas, uma ao lado das outras, expressará - ele nos diz - o sentido da proposição. Essa ilustração permite discutir diversos aspectos importantes da noção de proposição.

Em primeiro lugar, um tal arranjo de coisas só consegue veicular um sentido, ou dizer-nos alguma coisa, se seus elementos não forem tomados em si mesmos, mas sim como representantes de outros objetos que compõem a situação cuja existência se pretende comunicar. Sem isso, aquelas coisas seriam simbolicamente inertes, e sua disposição espacial um mero fato bruto entre tantos outros de mesmo gênero no mundo. Também as proposições da linguagem, escrita ou falada, são em si mesmas apenas um arranjo de elementos (sons, traços no papel, etc.), e esses arranjos, enquanto tais, constituem apenas outro fatos brutos no mundo. A combinação desses elementos só se torna significativa pela conexão simbólica que eles mantêm com coisas distintas deles mesmos. Essas conexões constituem, no Tractatus, as relações projetivas entre a linguagem e a realidade, e são essas relações que permitem que o signo proposicional nos apareça como uma projeção da situação cuja existência é afirmada.

Em segundo lugar, o exemplo é revelador por acentuar o caráter arbitrário dos elementos que compõem o signo proposicional. Quaisquer outras coisas poderiam ser empregadas com o mesmo resultado, desde que estivessem sendo empregadas para nomear os mesmos objetos. Diferentemente do signo proposicional como um todo, cuja articulação interna nos exibe o sentido da proposição, os nomes são signos não-articulados cujo significado é puramente convencional; eles não nos mostram seu significado. Do mesmo modo, é arbitrário o papel atribuído às relações espaciais entre os elementos do signo proposicional: outras relações poderiam ser igualmente empregadas para o mesmo fim (sucessão temporal, diferenciações cromáticas, etc.), mas não vou estender-me sobre este ponto.

A identificação dos traços arbitrários presentes em qualquer sistema lingüístico concreto serve, no entanto, para isolar aquilo que não é arbitrário na linguagem e no simbolismo em geral. Um sistema de signos capaz de representar deve ter, para Wittgenstein, a mesma "multiplicidade lógica" da realidade que ele representa, isto é, as possibilidades de articulação de seus elementos devem corresponder exatamente às possibilidades de combinação dos objetos que esses elementos designam. A linguagem, entendida como um sistema de signos capaz de veicular todos os sentidos concebíveis, ou seja, capaz de expressar a existência de qualquer situação possível, deve portanto conter tantos nomes quantos são os objetos que compõem o arcabouço da realidade, e deve ser governada por regras sintáticas que espelham em seu funcionamento as combinações admissíveis daqueles objetos.

Este breve apanhado dos aspectos essenciais do signo proposicional permite entender como a proposição pode expressar um sentido independentemente da existência factual de qualquer entidade que estivesse funcionando como seu significado. O sentido da proposição, isto é, o que ela expressa, é um fato, a saber, o fato de que certos objetos estão combinados na realidade. Ela pode expressar isso porque ela mesma é um fato: o fato de que, nela, certos nomes estão combinados. A única exigência necessária para que ela esteja dotada de significação é que esses nomes tenham significado, que eles designem entidades existentes. Portanto, o único contato entre a proposição e a realidade se dá através dos nomes que a compõem, por meio das relações projetivas que conectam esses nomes aos objetos que eles nomeiam. Disto se segue que o sentido da proposição depende exclusivamente do significado de seus elementos constitutivos, e não pressupõe a existência factual do complexo ou combinação de objetos que ela afirma existir. Uma vez determinado o significado dos nomes, o sentido da proposição segue-se de imediato, sem qualquer consideração adicional.

 

II

O problema que quero examinar é: como, para Wittgenstein, os nomes adquirem seu significado? Trata-se de uma questão extremamente difícil de responder com precisão, devido ao caráter obscuro e fragmentário das observações doTractatus sobre o assunto. A situação se torna ainda mais confusa quando se observa que muitos intérpretes não distinguem, de um lado, entre aquilo que Wittgenstein considera a questão filosófica de como é possível um sistema de signos que têm objetos como seus significados e, de outro, a questão psicológica de como os usuários da linguagem chegam a conhecer o significado desses signos.

A conflação dessas duas questões resulta em uma concepção - que poderíamos denominar "ingênua" - de como se estabelece, no Tractatus, o significado de um nome. O ponto de partida dessa explicação é normalmente o aforismo 3.11, onde se lê:

Wir benützen das sinnlich wahrnehmbare Zeichen (Laut- oder Schriftzeichen etc.) des Satzes als Projektion der möglichen Sachlage.

Die Projektionsmethode ist das Denken des Satz-Sinnes.

A primeira sentença não é problemática e refere-se ao fato já mencionado de que o signo proposicional - ou seja, a proposição considerada em seus aspectos materiais visíveis ou audíveis - fornece a projeção de uma situação possível.Qual situação está sendo projetada depende, como já vimos, de quais são os objetos a que os elementos da proposição se associam pelas relações projetivas.

O problema que quero discutir prende-se à interpretação da segunda sentença. Literalmente, ela identifica o método de projeção ao ato de pensar o sentido da proposição. À primeira vista, parece que se está explicando o estabelecimento das relações projetivas pela intervenção de um ato mental - é como se o pensamento realizasse essa ligação entre as coisas e os signos que lhes servem de nomes. Essa leitura introduz uma dimensão psicológica, ou intencional no relato de como a proposição adquire sentido. É uma instância mental que atua estabelecendo essa ligação entre nome e objeto, e que transforma um traço por si mesmo inerte em um elemento dotado de significado.

Há várias dificuldades nessa concepção. Deixando de lado a complexa a questão da inexistência, para Wittgenstein, de um sujeito psicológico de representações, vou levantar apenas algumas objeções que me parecem mais facilmente compreensíveis.

Em primeiro lugar, lembre-se que, no Tractatus, o pensamento tem ele próprio um caráter lingüístico e, como qualquer proposição, constitui uma "figura dos fatos" (3). Também ele é supostamente um arranjo de elementos cuja natureza precisa Wittgenstein afirma desconhecer e cuja determinação, ademais, considera irrelevante do ponto de vista filosófico. Mas não importa a natureza desses elementos: se são entidades mentais ou sinapses neuronais. O que importa é que também sua organização só pode adquirir o poder de significar, ou de veicular um sentido, se seus elementos estiveremeles mesmos em relações projetivas com a realidade. Portanto, o pensamento, enquanto atividade simbólica, tem como pressuposto justamente essa relação projetiva com a realidade, e não pode legitimamente ser apresentado como o fundamento dessas relações.

Em segundo lugar, a concepção ingênua envolve a necessidade de algum tipo de apreensão, pelo pensamento, do objeto ao qual o nome se refere, para que se possa estabelecer a associação entre ambos. Mas recorde-se que os objetos doTractatus (que constituem os referentes últimos dos nomes que ocorrem nas proposições) são entidades muito peculiares, e - seja qual for a sua natureza - não coincidem de modo algum com os objetos com que nos confrontamos em nossa experiência cotidiana. Não estamos em nenhum momento diretamente conscientes desses objetos, e não podemos identificá-los isoladamente. Dada essa circunstância, isto é a impossibilidade de identificar e re-identificar os referentes dos elementos do signo proposicional, torna-se ininteligível a hipótese de que esses elementos possam adquirir significado por meio de algum tipo de associação mental com entidades dadas à nossa experiência.

Algumas outras passagens do Tractatus contribuem para nos convencer de que o que está em jogo na identificação de um objeto é algo muito diverso do mecanismo presente nas chamadas "definições por ostensão". Wittgenstein nos diz, por exemplo, que, para conhecer um objeto, é preciso conhecer todas as suas "propriedades internas" (2.0123 ss.), entendendo com isso suas possibilidades de combinação com outros objetos. Isto está ligado à sua suposição de que objetos não possuem propriedades materiais intrínsecas, mas apenas propriedades formais que se esgotam na determinação de quais são as combinações de objetos em que eles podem ocorrer. Exclui-se portanto que a identificação de um objeto possa ser feita com base em características factuais desse objeto - ao contrário, aponta-se aqui para um processo muito mais abrangente, segundo o qual cada objeto contém uma referência interna a cada um dos outros, e a característica distintiva que permite identificá-lo consiste em sua particular posição no interior de um "espaço lógico" de combinações que engloba, de uma só vez, a totalidade dos objetos.

 

III

Se pretendermos nos aproximar de uma compreensão do modo pelo qual, no Tractatus, um nome adquire significação, é indispensável levar em conta a reiteração, ali, do princípio fregeano do contexto, a saber, que um nome considerado isoladamente não tem significado, que só no interior da proposição um nome pode designar um objeto (3.3). O princípio holístico que governa a identificação dos objetos é estendido aqui para o próprio domínio dos nomes, e a conseqüência disto é que a questão da significação dos nomes não pode ser resolvida através da consideração isolada desses nomes, mas exige o exame das proposições em que ocorrem.

Este ponto é devidamente ressaltado numa das poucas passagens do Tractatus (talvez mesmo a única) em que o problema recebe alguma atenção explícita. Em 3.263, Wittgenstein afirma que o significado dos signos simples (isto é, dos nomes) pode ser esclarecido por meio de "elucidações" (Erläuterungen), que são proposições que contêm esses signos. Mas, a seguir, em uma frase que tem causado merecidamente muita perplexidade entre os comentadores, ele observa que tais proposições só podem ser entendidas se o significado daqueles signos já for conhecido. Ou seja, saber o significado dos nomes exige entender proposições nas quais esses nomes ocorrem; para isso, porém, é preciso saber o que eles nomeiam. A passagem como um todo adquire a aparência de um círculo vicioso, que frustra a expectativa inicial de obter um esclarecimento de como os nomes podem adquirir significado.

Muito já se tem escrito com a finalidade de tornar inteligível essa passagem do Tractatus, e não posso aqui recapitular as várias tentativas de interpretação encontradas na literatura. Vou procurar apenas mostrar que, quando se adota uma outra leitura do aforismo 3.11 mencionado anteriormente, sobre a relação entre "método de projeção" e "pensar o sentido da proposição", uma boa parte da estranheza inicial pode ser dissipada.

Como entender corretamente o aforismo 3.11? O caminho, parece-me, é abandonar a idéia de que a existência das relações projetivas entre nomes e objetos nomeados possa ser, em qualquer sentido, explicada pelo pensamento. Fazê-lo equivale a tomá-las como relações de caráter quasi-factual, que podem vigorar ou não vigorar em função da atuação de uma instância externa que criaria a ligação entre os dois termos. Ao contrário, 3.11 deve ser entendida como afirmando que é precisamente a existência dessas relações que explica como é possível pensar o sentido da proposição. O que se tem aqui é uma espécie de definição do pensamento: pensar uma proposição, assim como enunciá-la, é empregá-la como projeção de uma situação possível. Não se trata de explicar o suposto mecanismo de projeção por meio da atividade mental de pensar o sentido da proposição, mas sim de empregar a noção filosófica e matematicamente mais clara de projeção para explicar a obscura noção de pensamento.

Uma vez que se reconheça que o problema filosófico da linguagem diz respeito às condições de sua possibilidade e não às condições concretas de sua utilização pelo zoon phonanta, teremos avançado bastante na resolução das dificuldades acima expostas. O ser humano possui a faculdade de construir linguagens pelas quais quaisquer sentidos podem ser expressos, quaisquer situações possíveis podem ser precisamente descritas (4.002). Mais do que o mecanismo envolvido nessa construção, Wittgenstein se interessa pelo que torna possível essa expressão de sentidos perfeitamente determinados, e o associa ao requisito de que signos simples, ou nomes, sejam possíveis (3.23, 4.0312), de que possa, em princípio, existir uma organização de signos que, mediante as regras sintáticas que governam sua associação, constitua um perfeito espelhamento das relações que podem vigorar no domínio dos objetos.

É claro que, nesse quadro, é totalmente descabido perguntar quais signos constituem os nomes de quais objeto, e, conseqüentemente, como nós chegamos a atribuir-lhes significado. A linguagem em sua forma completamente analisada, na qual signos simples ligam-se imediatamente aos objetos, aos constituintes últimos da substância do mundo, não existe concretamente em parte alguma; é apenas sua possibilidade que é afirmada no Tractatus, enquanto condição transcendental para a existência do fenômeno da representação. À pergunta sobre qual seria o "real" nome de um objeto só se poderia responder, segundo o Tractatus, dizendo-se que ele é qualquer signo que ocupa na linguagem uma posição formalmente idêntica à que um objeto ocupa no campo de suas possibilidades de combinação com outros objetos. Rigorosamente falando, os nomes, enquanto signos determinados, são dispensáveis para o funcionamento da linguagem: o sentido de uma proposição pode ser precisamente veiculado mesmo quando ela se apresenta sob a forma completamente generalizada, consistindo apenas de variáveis (5.526). Tudo o que há de relevante para a função simbólica esgota-se totalmente nos aspectos formais que regem a articulação dos nomes, nas regras de sintaxe que os tornam capazes de mimetizar as propriedades combinatórias dos objetos.

A natureza das relações projetivas entre a linguagem e a realidade pode agora ser melhor explicada. Elas não envolvem qualquer associação a posteriori entre signo e significado, mas estão dadas de antemão, em virtude do isomorfismo, no sentido matemático, entre os dois domínios. Esse isomorfismo consiste na existência de "lugares sintáticos" no sistema abstrato da linguagem que correspondem univocamente às posições ocupadas pelos objetos no espaço lógico de suas possíveis combinações. Desse modo, se é verdade que o sentido de uma proposição se determina a partir do significado de seus constituintes, esse significado está determinado exclusivamente pela possibilidade sintática da ocorrência desses constituintes em proposições dotadas de sentido. Voltando ao aforismo 3.263, vemos agora que, longe de descrever uma situação paradoxal em que dois processos distintos parecem exigir, cada qual, a ocorrência prévia do outro, ele surge como a expressão do fato de que a projeção de uma situação pelo signo proposicional resulta essencialmente das propriedades formais desse signo, e envolve uma referência interna a todas as demais proposições em que seus constituintes podem ocorrer; em última análise, à linguagem como um todo. Enquanto estivermos dominados pela idéia de que uma proposição deve adquirir seu sentido de forma isolada das demais proposições, podemos razoavelmente imaginar que ela necessitaria de algum auxílio para essa tarefa, que seria preciso estender externamente algumas linhas ligando os signos que nela ocorrem aos objetos, para que ela pudesse ser "guiada" em seu trajeto rumo à realidade. Só assim, pareceria, ela seria capaz de expressar uma situação definida, uma situação que envolve tais e tais objetos, e não outros. Quando aceitamos, porém, todas as implicações do princípio do contexto presentes no Tractatus, em especial, que é só no interior da linguagem como um todo que qualquer proposição adquire sentido, compreendemos que esse auxílio externo é desnecessário. Pois, em virtude da identidade de forma lógica entre a linguagem e a realidade, em virtude do isomorfismo entre a totalidade das possibilidades combinatórias dos nomes e a dos objetos, só há umamaneira pela qual se pode estabelecer uma correspondência entre os elementos dos dois domínios. Ao se determinar, portanto, o lugar preciso da proposição no sistema formal da linguagem estará determinada ipso facto a referência precisa dos nomes que a compõem, e, conseqüentemente, seu sentido, a situação definida cuja existência ela veicula, sem a necessidade de recorrer a uma instância externa para criar a ligação entre os nomes e suas referências.

 

IV

 

Em minha interpretação de como, no Tractatus, as proposições adquirem seu sentido procurei criticar a introdução do pensamento como algo que estabelece a conexão entre os elementos do signo proposicional e os aspectos da realidade a que eles se referem, insistindo em que o significado de um signo está determinado exclusivamente pelas regras sintáticas que governam seu emprego na linguagem, e que nenhuma associação factual com o objeto é necessária e nem mesmo possível. Isto leva-me, para finalizar, a uma observação sobre tentativas recentes de avançar nesta linha de raciocínio até o ponto de expurgar do Tractatus a própria noção de uma realidade extra-lingüística. Nessa concepção, o significado dos nomes se esgota totalmente no interior da própria linguagem, e não se supõe que eles estejam "no lugar" de alguma coisa, que sejam representantes de entidades exteriores à linguagem.

Por engenhosa que possa ser, na medida em que consegue dar conta de muitas questões ainda problemáticas na interpretação do Tractatus, essa posição não me parece sustentável e não deve ser tomada como uma conseqüência do que estou propondo aqui. O principal problema é como dar conta, nesse caso, da questão da verdade de uma proposição, que Wittgenstein insiste ser determinada pela comparação com a realidade, isto é por referência a uma instância não-lingüística. É verdade que o desvendamento da essência da proposição foi considerado por Wittgenstein, na passagem datada de janeiro de 1915 que citei no início, como constituindo "toda a sua tarefa", mas é relevante notar que ele complementa imediatamente essa afirmação dizendo que essa tarefa se identifica à de especificar a essência de todos os fatos dos quais a proposição é uma figura, a essência de todo o ser. E ainda, que poucos meses depois ele tenha registrado em seus cadernos de notas as seguintes palavras: "O grande problema em torno do qual gira tudo o que escrevo é: Há uma ordem a priori no mundo e, se houver, qual é ela?"

As observações de cunho ontológico no Tractatus, longe de constituírem apenas um material introdutório destinado a ser dialeticamente superado no decorrer do livro, fazem parte integrante do seu sistema e surgem mesmo em passagens tão avançadas da exposição como 5.471, onde se associa mais uma vez o problema de fornecer a essência da proposição ao desvendamento da essência do mundo. Seja como for que se interprete o posterior desenvolvimento filosófico de Wittgenstein, é indubitável que, no Tractatus, está firmemente presente o viés realista que admite uma realidade exterior e independente de nossa linguagem ou nosso pensamento, e o desafio de explicar a relação entre esses dois domínios.

 


Referências Bibliográficas

  • WITTGENSTEIN, L. Logisch-philosophische Abhandlung. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1989.
  • WITTGENSTEIN, L. Tagebücher 1914-1916. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1984
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