Passamos por ciclos ao longo da vida e, muitas vezes, sequer sabemos porque os adentramos. Nem temos certeza se o modo como estamos nos conduzindo em meio a eles é o mais correto. E ficamos torcendo para que se fechem logo, para iniciarmos outros ciclos, de preferência com menos dor de cabeça e alguma tranqüilidade.
Esses processos não dão trégua: é a religião cuja prática evidencia não ser suficiente, a relação amorosa cuja vivência se torna um tormento, o trabalho que vai fazendo com que botemos os pés no chão, a insensibilidade e brutalidade humana que nos destroçam...
Certo equilíbrio é importante em meio a tudo isso. E quem deu boa contribuição sobre o equilíbrio ou serenidade (ataraxia) foi Epicuro (341-270 a.C.). Nascido em Samos, antiga Grécia, esse filósofo passou para a história da filosofia como figura de destaque do período helenístico. Sua escola tinha o nome de Jardim, por funcionar no quintal de sua casa. Tratava-se de uma escola que aceitava homens, mulheres e crianças, característica importante em um tempo em que a tradição legitimava apenas a presença masculina nesse tipo de espaço social.
Epicuro vê no corpo a âncora da existência e assegura que a felicidade humana é possível pela via do prazer. Não qualquer prazer. Segundo ele:
“Quando dizemos que o fim último [da vida humana] é o prazer, não nos referimos aos prazeres dos intemperantes ou aos que consistem no gozo dos sentidos, como acreditam certas pessoas que ignoram o nosso pensamento, ou não concordam com ele, ou o interpretam erroneamente, mas ao prazer que é a ausência de sofrimentos físicos e de perturbações da alma” (Carta sobre a felicidade - CSF, p. 41)**.
Veja: o prazer consiste em evitar a dor e buscar a moderação dos desejos. Valem, pois, os prazeres naturais e necessários, qualificados pela serenidade, a ataraxia:
"... todo prazer constitui um bem por sua própria natureza; não obstante isso, nem todos são escolhidos; do mesmo modo, toda dor é um mal, mas nem toda dor deve ser evitada. Convém avaliar todos os prazeres e sofrimentos de acordo com o critério dos benefícios e dos danos" (CSF, p. 38-39)**.
Como o ser humano pode alcançar tal estado de imperturbabilidade? Segundo Epicuro, fazendo uso de Quatro Remédios (tetrapharmakon), comentados na Carta sobre a felicidade citada acima, quais sejam:
1 - Não é preciso temer os deuses.
"Ímpio não é quem rejeita os deuses em que a maioria crê, mas sim quem atribui aos deuses os falsos juízos dessa maioria. Com efeito, os juízos do povo a respeito dos deuses não se baseiam em noções inatas, mas em opiniões falsas. Daí a crença de que eles causam os maiores malefícios aos maus e os maiores benefícios aos bons" (CSF, p. 25)**.
2 - Não é preciso se preocupar com a morte.
"Acostuma-te à idéia de que a morte para nós não é nada, visto que todo bem e todo mal residem nas sensações. A consciência clara de que a morte não significa nada para nós proporciona a fruição da vida efêmera, sem querer acrescentar-lhe tempo infinito e eliminando o desejo de imortalidade" (CSF, p. 27)**.
3 - É fácil alcançar o bem.
"...em razão dele [o prazer] praticamos toda escolha e toda recusa, e a ele chegamos escolhendo todo bem de acordo com a distinção entre prazer e dor" (CSF, p. 35)**.
4 - É fácil suportar o que nos amedronta.
“Medita, pois, todas essas coisas e muitas outras a elas congêneres, dia e noite, contigo mesmo e com teus semelhantes, e nunca mais te sentirás perturbado, quer acordado, quer dormindo, mas viverás como um deus entre os homens” (CSF, p. 51)**.
Outro dia me lembrei do tetrapharmakon epicurista ao ler li algo que dizia que a saúde mental de uma pessoa está diretamente ligada à quantidade de “dane-se!” que ela é capaz de dizer em meio a ciclos e processos que, de outra forma, poderiam causar preocupação e todo tipo de desgaste pessoal. Não se trata de irresponsabilidade, mas de certa maturidade.
Penso que esse "dane-se" é o outro nome da serenidade ataráxica de que fala Epicuro. Se assim é, em nome do prazer natural possível que aplaca os desejos e dá felicidade, o melhor mesmo é “não estar nem aí" para certas coisas, fatos e pessoas, sobretudo para os seres humanos que teimam em não agir como gente digna de si mesmos e daqueles que os cercam. Então, que se danem, juntamente com aqueles que insistem em não querer entender o que Epicuro quis dizer.
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* Wilson Correia. Desenvolve pesquisa de doutoramento na UNICAMP. É mestre em Educação pela UFU. Cursou especialização em Psicopedagogia pela UFG. Graduou-se em Filosofia pela UCG. É professor universitário. É autor de Saber Ensinar. São Paulo: EPU, 2006. Endereço eletrônico: wilfc2002@yahoo.com.br.
**EPICURO. Carta sobre a felicidade –a Meneceu. Trad. Á. Lorencini e E. D. Carratore. São Paulo: Ed. da UNESP, 1997.
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