O que é ética pragmatista (lealdade versus justiça)

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Marcus Túlio Tanaka é o jogador brasileiro “quinta-coluna” da seleção do Japão. Ele fez dois gols contra nas últimas duas partidas do Japão, pondo o time oriental em derrota para a Inglaterra e Costa do Marfim. Marcus Túlio só não é um “quinta coluna” perfeito porque ele, certamente, não teve culpa dos gols.

O “quinta coluna” perfeito que conheci atuou nos meus próprios domínios, ou o que eu pensava ser os meus domínios. Foi minha segunda esposa. Em todo conflito entre alguém de nossa casa – exceto ela, é claro – contra qualquer outro de lugares alheios, ela sempre se posicionava de um modo que ela qualificava como neutro, o que significava, na prática, se colocar a favor do elemento exterior. Guardiã de uma suposta imparcialidade da lei, ela se punha na condição de uma espécie de representante de uma justiça transcendental que, enfim, nunca era senão a injustiça aplicada a nós mesmos.  Enquanto estive com essa moça, nunca consegui dar o prêmio de “quinta coluna” para outro, ela levava todos. Foram onze anos de martírio cotidiano.

Felizmente, entre os bípedes-sem-penas, Tanaka e a minha segunda esposa não são a regra, e sim a exceção. Todavia, isso não quer dizer que nossa educação não tenha dificuldade de lidar com o nascimento de quintas-colunas, pois do modo que construímos nossa vida prática, é bem possível sermos surpreendidos até por um filho “quinta coluna”.

A maior parte das pessoas, uma vez em conflitos, age segundo a regra “ele é um de nós e aquele lá não é um de nós”. Isso não é errado, é simplesmente o costumeiro e o normal. Mas, há um conflito nisso, que preocupa a nós filósofos, mas que estoura, mesmo, nas mãos de pais e professores. Pois, de um lado há a justiça, que busca ser cega e, então, aplicar a lei indiscriminadamente, sem privilégios para um ou outro, de outro lado há a lealdade, que é o que cada um espera daqueles que ele qualifica como “um de nós”. Eis aí um problema de educação: como criar os filhos ensinando-os lealdade à família e, ao mesmo tempo, respeito à lei? Para pensar uma educação ética com esse conflito amenizado, creio que o primeiro passo é, antes de lidar com a pedagogia, ter de encontrar na filosofia um modo de borrar as fronteiras excessivamente nítidas dessa dualidade entre justiça e lealdade.

Em tese, a lei da justiça é necessária e é bem desejável tê-la como guardiã de nossa vida social, ao mesmo tempo em que a lealdade é uma virtude e, enfim, nenhum de nós conseguiria viver se não a esperasse brotar no coração dos que consideramos “um de nós”. Eis aí um dos dramas da ética e, conseqüentemente, da pedagogia e da educação: conviver com forças que se põe em lados opostos e que, ao menos em princípio, parecem possuir bastante legitimidade para se efetivarem do modo que se efetivam. Como enfrentar esse problema?

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Alguns filósofos tendem a acreditar que não há como sustentar uma defesa da lealdade e, ainda assim, manter vigente qualquer ética aprovável. Quando a lealdade entra em confronto com a justiça, ao menos em princípio, a segunda precisa ter vantagens. As “éticas do dever”, como as que, no Ocidente, são postas por mandamentos dos pregados pela religião judaico-cristã ou pela voz da consciência lógica do “imperativo categórico” de Kant, são éticas da justiça. A tábua dos Mandamentos vem pela ordem e pela tradição. O imperativo “age como se a máxima de tua ação devesse tornar-se, por tua vontade, lei universal da natureza”, vem da própria razão prática. Independentemente das fontes, elas apelam para o dever e não cedem às “inclinações” deste ou daquele indivíduo.

A justiça pode apresentar sua taça moral se põe a regra máxima a ser seguida antes de qualquer fato ou caso, evitando assim que vontades particulares maculem uma decisão universal. Uma decisão da justiça precisa estar escrita nas estrelas e realmente parece ser moral exatamente pela sua pretensa situação natural, ampla e perene. Todos nós ficamos felizes ao ver que podemos viver em sociedades onde é vigente a lei que, de algum modo, acompanha a “ética do dever”. Enquanto não somos nós mesmos que caímos em julgamento, nenhum de nós ousa sequer pensar em viver em um lugar em que a lei não venha abençoada por esse tipo de ética.

Todavia, o nosso cotidiano seria infernal – como foi o meu com minha segunda esposa – se a cada passo que déssemos junto com nossa família e no interior dela, seguíssemos antes a “ética do dever” que qualquer maneira de afastar de casa o “quinta coluna”. Por exemplo, quando bato o carro em outro, espero que o guarda venha e, por meio do exame técnico, distribua as responsabilidades de modo correto à medida que estabelece quem infringiu regras e quem não infringiu regras. Mas, ao mesmo tempo, ficaria profundamente decepcionado se, lá dentro do carro, minha esposa, de prontidão já me culpasse e, também, falasse em voz alta qualquer coisa que não estivesse em minha defesa. Aliás, ficaria magoado, também, se ela agisse assim em voz baixa. Quero do guarda a justiça e quero da minha esposa a lealdade. O guarda não é visto por mim, naquele momento, como “um de nós”, enquanto que minha esposa, para a minha expectativa, seria “um de nós”. Todavia, se naquele momento um estrangeiro ofende o guarda brasileiro de uma forma muito agressiva, pois levou uma multa ao infringir uma regra, minha primeira reação é considerar o guarda “um de nós” e, então, mesmo sem entender o que ocorreu, falar uma palavra a favor do guarda. O círculo do “um de nós” se amplia e, se eu falasse algo contra o guarda, talvez eu estivesse funcionando como um mero “quinta coluna”.

Sabemos que as coisas se passam dessa maneira. Por isso, se quisermos salvar a justiça e ao mesmo tempo nossa vida cotidiana, parece que não temos muito outra saída senão a de buscar fazer da própria justiça uma lealdade ampliada.

Essa proposta é a do filósofo americano Richard Rorty. Ele imagina que nossa ação social no campo da educação em ética, para não fazermos da lei apenas um incentivo aos “quinta colunas”, é a de tentarmos criar situações em que tenhamos cada vez mais facilidade de ampliar os círculos do “ele é um de nós” como um caminho para que a justiça nada seja senão uma ampliação inteligente e mediada da lealdade.

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A quebra da dualidade entre justiça e lealdade, fazendo da justiça parte da lealdade, é tipicamente pragmatista. Os pragmatistas são os filósofos que, historicamente, se puseram contra a maior parte das dualidades geradas pela filosofia tradicional (sujeito-objeto, corpo-mente etc). Essas dualidades foram quebradas por Hegel. Ele as colocou todas sob o comando e esteio do Espírito (Geist). Mas, para os pragmatistas, o elemento capaz de borrar a linha posta entre os pólos das dualidades não poderia ser uma entidade metafísica e, sim, algo do nosso cotidiano, levado adiante por nós mesmos. Os pragmatistas viram na experiência o elemento cosmológico necessário para poder falar de um modo não dual. É exatamente considerando a experiência – como o que fiz acima descrevendo as relações das situações cotidianas – que aventamos a possibilidade de pensar a justiça não em contraponto à lealdade, mas como uma lealdade que, se ampliando, pode nos fazer cada vez melhores membros de nossas próprias famílias à medida que nos mantemos bons cidadãos.

Parece que se eliminarmos a aparente contradição entre justiça e lealdade, teremos mais facilidade de colocar no campo pedagógico propostas que mostrem que ser justo e ser leal não são coisas completamente incompatíveis. Dissolvida a dualidade no campo filosófico, penso que é mais fácil, então, com criatividade pedagógica, desenvolver situações em que as crianças possam construir a justiça a partir de ampliações dos círculos “é um de nós”. Aqui termina a filosofia e começa a pedagogia. É trabalho dos professores elaborar situações para que cada um aprenda a ser justo sem ser “quinta coluna”.

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