O Inconsciente

Jim Hopkins

A teoria psicanalítica descreve uma gama de motivos, estados e processos mentais dos quais as pessoas não estão a par, e dos quais elas só podem se dar conta, manifestar e alterar com muita dificuldade. O nome genérico que Freud utiliza para todos esses eventos mentais e para a divisão funcional da mente a qual ele os atribui é Inconsciente. O termo também tem sido usado para descrever outros estados mentais, tais como crenças hipotetizadas sobre a linguagem, que acabam desempenhando um papel significativo. No que se segue, porém, iremos focalizar o uso psicanalítico.

Freud às vezes ilustra a motivação inconsciente por meio de exemplos provenientes da hipnose. Alguém pode, por exemplo, concordar com uma sugestão pós-hipnótica, enquanto aparentemente não se lembrar de nada que aconteceu, citando algum motivo implausível para se justificar. Aqui, ao que parece, não aceitamos a abordagem do paciente, mas antes supomos que a ação é causada por um motivo (e.g., um desejo de fazer o que o hipnotizador disse) do qual a pessoa não está a par. Pesquisas hipnóticas subseqüentes têm produzido uma variedade de exemplos que aparentemente se encaixam nas descrições freudianas do inconsciente e do seu funcionamento. Embora tais fenômenos pareçam de fato ilustrativos, permanece obscuro o quanto eles devem ser assimilados àqueles encontrados na prática psicanalítica. Vamos então começar com o trabalho clínico de Freud e seus sucessores e então lidar com a metapsicologia mais abstrata baseada no trabalho desse tipo.

Clínica

Freud cedo descobriu que sonhos e sintomas poderiam ser vistos como relacionados causalmente em seus conteúdos a motivos. Em particular, ambos podem ser vistos como realizações de desejo, isto é, como representando a satisfação de desejos e expectativas, que não tenham sido submetidos ao requisito do pensamento racional pela ação intencional. Isto emergia quando o sonho ou sintoma era considerado a partir de um contexto de abordagem não censurada e plena do paciente acerca de pensamento e sentimentos relacionados, enquanto obtidos através do processo de associação livre.

Esse ponto pode ser ilustrado através do exemplo que Freud fornece no início de A Interpretação dos Sonhos sobre o seu próprio sonho com a injeção de Irma. Nesse sonho, Freud encontra Irma, uma paciente amiga da família, a quem ele havia diagnosticado como histérica, e tratado por meio de análise. Ele lhe diz que, se ela ainda continuasse a sentir dores, isso seria culpa dela mesma por não aceitar a solução apresentada por Freud. Ele ficou então preocupado, porém, com a possibilidade de ela sofrer de alguma doença orgânica que ele havia falhado em diagnosticar e isso acabou sendo verdade. Seu colega M examinou Irma e confirmou que ela estava de fato organicamente doente; e tornou-se claro que sua doença havia sido causada por uma injeção tóxica dada por outro colega de Freud, Otto, o médico da família. O sonho acaba com Freud censurando a prática de Otto, dizendo "injeções desse tipo não podem ser dadas tão descuidadamente" e adicionando "provavelmente a seringa não estava limpa".

À primeira vista, esse sonho lida com tópicos que não são prazerosos a Freud, tais como o sofrimento contínuo de uma amiga e paciente, e a possibilidade de  ele ter diagnosticado mal uma doença orgânica, descrita como uma ansiedade constante de alguém que oferece tratamento psicológico. As associações de Freud, no entanto, nos permitem ver que o tratamento desses tópicos no sonho é de fato totalmente realizante. No dia anterior ao sonho, Otto - que tinha visitado Irma e sua família há pouco tempo - tinha discutido brevemente o caso dela com Freud. Otto tinha dito que Irma estava 'melhor, mas não muito bem ainda'; Freud pensara ter detectado um tom de desaprovação nisso, e ficara um tanto perturbado. Naquela noite, a fim de se justificar, Freud começara a escrever o caso de Irma a fim de mostrar os apontamentos a M. que era respeitado tanto por ele quanto por Otto, que aparecia no sonho como diagnosticando a doença deIrma e tornando-se a par do erro de Otto. Do mesmo modo, o que de fato aconteceu é que, enquanto estava na casa de Irma, Otto havia sido procurado para dar uma injeção a alguém, e Freud acabara de receber a notícia indicando que uma outra paciente havia recebido uma injeção descuidada por algum outro médico, e isso o fizera refletir sobre a sua própria prática cuidadosa neste sentido.

Considerando o sonho, Freud notou que seu desejo de se justificar com respeito ao caso de Irma e, em particular, de não ser responsável pelo seu sofrimento, era evidente desde o início, no qual ele disse a Irma que suas dores eram culpa dela mesma. Igualmente, ele sentiu que a sua perturbação com relação à sua doença no sonho era inteiramente genuína. Assim, Freud percebeu, parecia que ele estava realmente desejando que Irma estivesse organicamente doente: pois, como ele passou a tratar apenas casos psicológicos, isso também significava que ele não podia ser responsabilizado pela sua condição. Esse tema, realmente, foi levado adiante no resto do sonho, no qual M. descobriu que Otto, não Freud, era responsável pela doença de Irma. O sonho inteiro, de fato, podia ser visto como uma resposta realizante à observação de Otto. De acordo com o sonho, e contrário ao que Freud pensara ter sido indicado por Otto, Freud não era responsável de modo algum pela condição de Irma. Antes, Otto era o único que a fizera sofrer, e isso era o resultado da inabilidade de Otto com injeções, um assunto sobre o qual o próprio Freud era particularmente cuidadoso.

Para ver aqui mais claramente o papel da realização do desejo, é necessário considerar o desejo de Freud de ser inocentado pelo sofrimento de Irma, ou como isso se deu, de um lado, em sua ação intencional, e de outro, em seu sonho. Muito esquematicamente, ele sustenta que em uma ação racional o papel causal de um desejo que P é o de trazer à luz (ou causar) uma situação que P, que satisfaz o desejo e ao mesmo tempo o pacifica, isto é, causa o desejo de não mais atuar. Agir num desejo que P (de ser inocentado) deveria idealmente causar que P, isto é, deveria trazer à luz uma situação que constitua a satisfação de um desejo. Isso, por sua vez, deveria causar a crença que P (de ter sido inocentado), e isto, talvez agindo em conjunto com uma situação realizante, deveria pacificar o desejo que P, de modo que ele cessasse de governar a ação. Esta é aproximadamente a seqüência de resultados que Freud estava procurando produzir, de acordo com uma prática médica padrão, ao escrever o caso de Irma na noite do sonho para discuti-lo com M, seu respeitado amigo. M seria capaz de fornecer uma opinião abalizada e independente sobre o tratamento de Freud a Irma; assim, seu julgamento poderia parcialmente servir para inocentar Freud, e, podemos presumir, a consciência de Freud.

No sonho de Freud, o mesmo motivo estava aparentemente também em funcionamento, mas de uma maneira diferente. Lá ele não produziu nenhuma ação racional, mas sim  criou diretamente a representação (sonhada) de uma situação na qual ele era inocentado, e por M. Essa representação, além disso, era extremamente realizante - Irma tornou-se fisicamente doente, Freud fora inocentado de várias maneiras, Otto fora sistematicamente culpabilizado, e assim por diante. Tomando esse exemplo como típico, podemos contrastar o papel causal do desejo, como entre a ação e a realização do desejo. Na ação racional, um desejo que P serve para trazer à luz uma situação que P, e isso para causar uma crença (justificada e verdadeira) que P, de modo que o desejo acaba sendo pacificado. Na realização do desejo, por contraste, esse processo sofre um curto circuito, de modo a deixar fora uma realidade realizante ou justificável. Aqui o desejo que P causa diretamente uma representação realizante e parecida com uma crença que P, e isso serve para pacificar o desejo, desconsiderando-se a realidade, pelo menos temporariamente. Na ação racional, encontramos tanto a satisfação real quanto a pacificação do desejo, sendo que o último é uma conseqüência causal e racional do primeiro. Na realização do desejo, encontramos apenas pacificação, através uma versão de se imaginar de modo realizante ou de se fingir: isto é, a pacificação imaginária sem a satisfação real. Embora Freud não tenha descrito as coisas nesses termos, ele considerou essa característica como genericamente realizante do desejo.

Podemos, assim, apresentar parte da concepção freudiana dizendo que a realização do desejo parece ser a maneira da mente (ou do cérebro) de pacificar desejos - e assim estabilizar ou redirecionar suas próprias funções de uma certa maneira - sem realmente satisfazê-los. Todavia, o modo de pacificação parece análogo em ambos os casos. Na ação racional, a pacificação é conseqüência da satisfação e da crença verídica, e na realização do desejo, ela é conseqüência da representação parecida com crença. A própria crença, no entanto, pode ser considerada como o caso limite da representação parecida com a crença. Assim, podemos dizer que, em geral, a pacificação procedevia representação desse tipo.

Freud também descobriu que um dado sonho, ou sintoma, ou qualquer outra realização de desejo caracteristicamente envolvia uma gama de desejos, interconectado em seus conteúdos. Vimos que o desejo de Freud em evitar a responsabilidade pela doença de Irma fez com que ele colocasse a culpa em Otto. Mas também as suas associações tornam claro que o desejo era realizador em níveis mais profundos do que a sua atual preocupação com Irma. Por exemplo, ao analisar seu sonho, Freud percebeu que Irma estava ligada em sua mente com duas pessoas que tinham previamente morrido como resultado de intervenções médicas. Um de seus amigos sofria de dor nervosa incurável, e era viciado em morfina usada para apaziguar a dor. Freud sugeriu que seu amigo usasse cocaína em lugar de morfina, sem saber que cocaína também viciava. O amigo morreu um tempo depois de injeções de cocaína. Ao mesmo tempo, Freud prescreveu repetidamente a uma paciente uma medicação padrão que, imprevisivelmente, acabou por matá-la; e ele havia se aconselhado com M. sobre esse caso também.

Essas memórias integravam as associações de Freud, estavam conectadas com muitos outros detalhes do sonho: assim, eles podiam ser vistos como tendo influenciado o sonho da mesma forma. Assim, a afirmação com a qual Freud terminava o sonho - "injeções desse tipo não devem ser usadas de modo descuidado" - era realmente uma com a qual ele poderia muito bem ter reprovado a si mesmo, com respeito aos tratamentos que ele associava com o de Irma. Mas no sonho, essa reprovação mais profunda - em relação ao descuido, ao mal uso de substâncias tóxicas, e a injeções perigosas - era igualmente realizante de modo desviante na figura de Otto. Ao representar Otto, mas não ele mesmo como culpado pelo sofrimento de Irma, Freud também representava Otto e não ele mesmo como carregando precisamente os tipos de responsabilidade envolvidas nas mortes de seu outro amigo e outro paciente. Assim sendo, esse sonho pode também ser considerado como representando a realização de um desejo da parte de Freud no sentido de não ser responsabilizado em relação a esses casos também. Mas esse desejo, e de fato toda a questão de sua própria responsabilidade pela morte, permaneceu no sonho intocada pelo consciente de Freud, e veio à tona apenas através de suas associações.

Esse ponto também ilustra outros mecanismos que Freud descobriu serem comuns em sonhos, e genericamente característicos do funcionamento do inconsciente. No sonho, a figura de Irma, amiga e paciente de Freud, também representava o outro amigo de Freud e o outro paciente que morrera como resultado de suas intervenções terapêuticas. Assim, esse exemplo mostra o que Freud chamou decondensação de várias figuras e questões significativas a partir do conteúdo latente do sonho - os pensamentos e sentimentos revelados pela associação enquanto relacionada ao sonho, que nesse caso incluía as ligações entre Irma e essas pessoas mortas - em uma figura composta que aparece no conteúdo manifesto do qual o sonhador estava a par. Isso também aponta para um deslocamento da culpa de Freud, novamente de uma maneira conectada com todos os três casos na figura de Otto. Esses processos contribuíram para a distorção do conteúdo mental manifesto efetuado pelo que Freud chamou de trabalho do sonho. Como será melhor caracterizado abaixo, Freud descobriu depois que a memória e a crença consciente geralmente estão propensas a distorção semelhante: e algumas delas podem ser visíveis no material conectado com essa análise, por exemplo, na própria inclinação consciente de Freud em considerar Otto como 'descuidado' ou 'concluindo apressadamente' sobre o caso de Irma.

À luz de tais considerações, podemos oferecer a seguinte caracterização preliminar e esquemática do método e do projeto clínico de Freud. Em psicologia popular, interpretamos ações de acordo com uma generalização básica acerca do desejo: o papel de um desejo que P é o de produzir uma situação que P, a qual, por sua vez, deve produzir uma crença que P servindo, juntamente com a situação, para pacificar o desejo, e assim redirecionar a ação. Em nossa compreensão diária das pessoas, utilizamos tacitamente essa generalização e ao mesmo tempo a sustentamos indutivamente, conduzindo-a, através da interpretação bem sucedida do desejo, na ação caso a caso. Essa generalização inclui a idéia de que a representação (crença) que P desempenha um papel na pacificação de desejo que P. Assim, tomamos como um fenômeno inteligível e realmente comum que um desejo que P deve desempenhar um papel causando uma representação imaginativa parecida com a crença que P, a qual tende a pacificar o desejo. Esta é uma outra generalização que usamos e ao mesmo tempo sustentamos, ao entender as muitas formas do imaginar e do fingir realizantes, e assim por diante, com os quais estamos familiarizados.

O trabalho de Freud sobre os sonhos e sintomas utiliza, estende e dá sustentação a esta última generalização, encontrando inúmeros exemplos e em casos previamente insuspeitos, tais como o do sonho acima descrito. Tal trabalho interpretativo, como Freud sustenta, nos permite ver os sonhos e os sintomas como pacificadores de desejos mais profundos com o mesmo tipo de regularidade que pode ser observada nas ações que os satisfazem. Isso, por sua vez, também serve para estender e dar suporte à generalização básica sobre os desejos (acima): pois cada interpretação de uma realização de desejo adiciona novos valores para P aos conteúdos dos desejos prováveis de um agente e, assim, também dá oportunidade para interpretações subseqüentes e melhores de outros pensamentos e ações do agente. (Nesse sentido, ao procurar entender a interpretação de Freud do sonho com Irma, concebemos explicações subseqüentes e mais profundas de sua perturbação com relação à afirmação de Otto, seu desejo de se justificar, sua contemplação de sua própria conscientização sobre injeções, etc.). Tais atribuições subseqüentes de desejos, por sua vez, podem detectar realizações de desejos subseqüentes, e assim por diante.

Podemos então dizer que Freud buscou estender a psicologia do senso comum por meios internos a ela: a saber, a extensão fundante das generalizações causais básicas que dizem respeito à satisfação e à pacificação do desejo já empregado na prática interpretativa do senso comum. Sua extensão é, portanto, potencialmente válida, cumulativa e radical. Válida, porque as interpretações excedentes podem ganhar suporte das generalizações básicas, e podem também, do mesmo modo, sustentar essas mesmas generalizações, como na própria psicologia popular. Cumulativa porque cada adição aos conteúdos dos desejos ou expectativas prováveis pode facilitar a descoberta de outros. E radical, porque a extensão oferece em geral explicações significativamente mais profundas e mais completas das ações e das realizações de desejos, e com referência a motivos que, no final das contas, não haviam sido contemplados previamente.

Freud descobriu que os motivos inconscientes caracteristicamente pacificados nos sonhos e sintomas adultos podiam ser pesquisados até se chegar na infância, época em que também aparece o amor sensual por um dos pais combinado com a rivalidade, ódio e inveja pelo outro, uma constelação que ele chamou de Complexo de Édipo. Uma versão desse complexo é a de que o amor infantil era pelo parente do sexo oposto, e uma outra na qual o amor era pelo parente do mesmo sexo (e vice versa com respeito à rivalidade correspondente). Parecia que os sentimentos e fantasias de crianças muito jovens mostravam uma plasticidade notável e, em particular, um grau de bissexualidade. Crianças pequenas eram propensas a um conflito psíquico intenso, como entre desejos de machucar ou substituir cada parente, invejado e odiado como um rival pelo amor do outro, e desejos de preservar e proteger aquele mesmo parente amado sensualmente e também tido como um protetor e um modelo. Em conseqüência disso, Freud pensou, esses motivos conflitantes estavam sujeitos a um processo derepressão, que os removia do pensar e do planejar conscientes; e ao mesmo tempo, no desenrolar do desenvolvimento normal, eles foram ambos organizados e modificados pela identificação formativa da criança com o parente do mesmo sexo, isto é, o fato da criança tomar aquele parente como um modelo básico para a ação e a satisfação do desejo. Todavia, os motivos reprimidos continuavam a existir no inconsciente, e a exercitar seu papel causal na produção de sonhos, sintomas e atos falhos; e, naqueles casos em que conflitos permaneciam particularmente extremos, na forma de doenças neuróticas ou psicóticas.

Seguindo a descrição de Freud do papel da representação parecida com a crença na pacificação do desejo, os psicanalistas agora comumente descrevem o tipo de representação que serve para pacificar o desejo inconsciente como fantasia. Fantasias particulares, além disso, podem ser vistas como constituindo ou implementando muitos dos processos mentais inconscientes, incluindo aqueles do desenvolvimento e da defesa, que são descritos na teoria psicanalítica. Assim, pessoas formam fantasias de si mesmas aos moldes de outras pessoas. Tais fantasias as acompanham durante toda a vida, chegando mesmo a constituí-la. Além disso, por meio delas, as pessoas estabelecem identificações com outras pessoas, como foi mencionado acima. Igualmente, as pessoas representam outras como tendo, e elas mesmas como não tendo, alguns de seus próprios impulsos, aspectos da mente, ou traços de caráter, e assim realizam a projeção desses itens em outros. A projeção, ou localização fantasiada, de partes de si mesmo em outros pode criar um tipo particular de identificação espelhada com aquele outro, freqüentemente chamada de identificação projetiva. Tal processo pode também efetuar a clivagem da mente, por exemplo, em bom e mau, com o mau localizado em outro lugar; e do mesmo modo, a representação do outro pode, pelos mesmos meios, ser dividida em boa e má, assim como com a imagem da boa mãe e da mãe ruim (ou madrasta) no conto de fadas. (Esses processos são similares àqueles observados nos sonhos e sintomas; por exemplo, o sonho acima apresentado pode ser tomado como exemplificando uma fantasia na qual Freud representou motivos conectados com a falta de atenção profissional, como no caso de Otto e não dele mesmo, e assim como na instância da clivagem e projeção da parte de Freud).

Embora a hipótese freudiana sobre a infância fosse baseada principalmente nos dados de adultos, analistas posteriores e em particular Anna Freud e Melanie Klein foram capazes de estender suas técnicas a crianças. Mesmo crianças muito pequenas têm com freqüência sintomas e dificuldades análogas àquelas de adultos; mas eles caracteristicamente não podem produzir tais pensamentos articulados e sentimentos a eles atrelados, como Freud usara ao analisar adultos. Entretanto, elas de fato representam coisas brincando com bonecas, brinquedos, barro, tintas e jogos de faz-de-conta. Analistas de crianças têm sido capazes de compreender essas representações do mesmo modo que Freud interpretava os sonhos, isto é, como motivo e estado mental sistematicamente reflexivos, e em particular como fantasia que personifica a realização do desejo. Isso torna possível analisar crianças perturbadas, e assim aprender mais sobre a vida mental delas. Tal trabalho não apenas confirma, mas também estende hipóteses baseadas na analise de adultos. Assim, consideremos um material a partir do tratamento de um menino pequeno a fim de ilustrar algumas das idéias apresentadas acima.

O menino em questão sofria de pesadelos - por exemplo 'monstros vermelhos em forma de lagosta' - e também se comportava de uma maneira exageradamente efeminada. Aos dois anos ele desejava ser uma 'mamãe' quando crescesse. Pouco tempo depois ele passou a cobrir o peito com a toalha ao sair do banho, como se tivesse seios. Quando começou a terapia aos quatro anos e meio, ele gostava de fingir que tinha seios, e a se vestir como uma dama requintada em roupas femininas, e a andar e a falar de acordo com isso. Ele sempre representava papéis femininos ao brincar com outras crianças, e brincava sozinho com bonecas Barbie; em seus sonhos diurnos ele se imaginava a Mulher Maravilha.

Em parte, esse comportamento mostrava uma identificação com a sensual e elegante mãe de seu pai, sua 'extravagante avó', com quem ele costumava ficar bastante quando bebê. Essa mulher não apenas se comportava de maneira sedutora em relação ao menino, mas também encorajava os seus modos femininos. Assim, ela tirava as suas roupas na frente dele e também pedia que ele sentisse o couro suave da calça que vestia; em conseqüência disso, ele chegou a ter uma ereção e se sentiu ansioso. Ela também o deixava usar seus sapatos de salto alto, e colocava 'make-up' em seu rosto, jóias e outras coisas femininas das quais ele se apoderou. Podemos ver que, desse comportamento aparentemente contraditório, era possível se retirar uma mensagem coerente e simples, com relação ao forte poder e sensualidade do encanto feminino de sua própria avó; e parecia que o menino havia feito exatamente isso. Em sua primeira sessão de terapia, ele brincou com bonecas Barbie, uma das quais ele vestiu com roupas comuns, a outra com uma extravagante mini-saia. A primeira boneca ele chamava de mãe e a segunda, de 'rainha mãe'.

O menino era capaz de expressar sentimentos com relação à figura dos pais - incluindo aqui, talvez, um sentido de rivalidade entre sua mãe e sua avó, e também uma divisão em sua representação das mulheres entre simples e extravagantes - em termos das suas brincadeiras com bonecas. Ao mesmo tempo, ele começou a transferência desses sentimentos à analista. Ele pedia a ela que tirasse a roupa como a sua avó fazia; e quando ele estava irritado, ele a atacava dizendo que eram os monstros que vinham em seus pesadelos que estavam fazendo aquilo. Em um desses pesadelos, uma lagosta metade mulher, metade alicate o perseguia e correia para dentro e para fora do nariz de sua mãe. Pode-se ver então que em sua mente um tipo importante de agressão era representado por pinças e alicates, e através de fantasias envolvendo figuras ou criaturas beliscantes. Tal agressão podia ser expressa num sonho, como relacionado a si mesmo ou à sua mãe, ou em seu comportamento, enquanto relacionado à analista; e ele estava inclinado a imaginar a analista como uma apavorante e beslicante figura também.

Depois, em seu processo de análise, na medida em que o menino começou a brincar de casamento com as duas Barbies, uma chamada Ken e a outra Barbie, o papel de tais figuras emergiu mais vividamente. Após o casamento, enquanto o menino representava coisas, Ken punha o seu pênis na vagina de Barbie; e então Barbie tirava o pênis, deixando Ken com uma vagina. O menino gritava 'Ken perdeu o seu pênis'. Com freqüência ele dizia 'se você se vestir e agir como uma menina, ninguém pensará que você tem um pênis. Daí você não precisará ficar preocupado que alguém o tire de você'. Com o devido tempo ele foi capaz de esclarecer melhor uma base desses receios. Ele falou sobre a sua analista como tendo um 'pênis escondido', e disse que era 'aquele que fora tirado de Ken - aquele que as mulheres pegam de volta'. Mulheres, ele dissse, 'roubam o pênis porque elas têm inveja dos homens... Mulheres chegam à noite e roubam os pênis dos homens. Elas têm alicates... as unhas afiadas são seus alicates...

Esse material pode ser visto à luz do método geral de Freud, ao mesmo tempo em que ilustra um número de afirmações particulares sobre o inconsciente, como mostrado acima. Podemos ver, por exemplo, como é possível que o desejo do menino de ser uma 'mamãe' que tinha seios (por si mesmo talvez a indicação de uma bissexualidade natural) emergia mesmo a partir dos dois anos na identificação da realização do desejo com o comportamento feminino, tal como esconder o peito depois do banho. Aparentemente, tais desejos foram depois organizados e representados como satisfeitos através da identificação com a sua 'extravagante avó', e foram expressos, elaborados e pacificados numa variedade de atividades representacionais, indo de sonhos imaginativos durante o dia às roupas, à gesticulação e ao comportamento em geral. Igualmente, podemos ver algumas das coisas que Freud descrevia como fantasias sexuais das crianças: e.g., aquela da mulher fálica, que tinha um pênis escondido; ou da cena originária da relação sexual dos pais como uma de violência e, nesse caso particular, como uma situação de perigo aos homens.

A vida de fantasia do menino, assim, parecia dominada por imagens - talvez formadas parcialmente pela projeção - de figuras apavorantes, evidentes tanto em seus pesadelos quanto em suas  correspondentes fantasias sobre as mulheres que emergia em sua análise. O material sugere que ele estava inclinado a se identificar com essas figuras fantasiosas, e que isso servia a duas funções conectadas, como especificadas pela teoria psicanalítica. Primeiro, tal material o capacitou a se representar espontaneamente como o tipo de mulher poderosa, encantadora e castradora que ele inconscientemente imaginou como sendo a sua avó, ou mesmo a sua analista. Segundo, ele serviu para projetar a masculinidade que era ameaçada pelas figuras do mesmo tipo - se ele se representava como tal mulher, ele poderia escapar da castração que tais mulheres faziam aos homens. Assim, parece, através da identificação projetiva, ou mesmo através da identificação com o agressor (fantasiado), o menino procurou não apenas receber, mas também escapar, de uma forma de agressão com a qual ele estava preocupado. Pareceria que tais fantasias profundamente projetivas e identificatórias foram constitutivas de sua vida mental inconsciente e, portanto, tanto do seu caráter quanto dos conflitos que ele sofria, até serem compreendidos e alterados através da análise.

Metapsicologia

No trabalho clínico, Freud descreve o inconsciente nos termos do senso comum, como incluindo desejos, crenças, memórias, e assim por diante. Mas ele também procurou integrar suas descobertas clínicas com conceitos teóricos mais abstratos, assim como com a pesquisa fisiológica de seu tempo, a qual começava a focalizar os neurônios que compõem o cérebro.

Em seu Projeto para uma Psicologia Científica, Freud formulou a hipótese de que o funcionamento do cérebro podia ser entendido como a passagem entre neurônios de alguma forma de excitação, ou investimento, através de conexões que ele chamou de 'barreiras de contato'. A informação, de acordo com tal hipótese, estaria armazenada no cérebro em forma de alterações - facilitadores ou inibidores - dessas conexões, e seria processada pela passagem através desses neurônios interconectados. Assim, Freud pensara, 'a aquisição psíquica geralmente', incluindo a memória, podia ser 'representada pelas diferenças nos facilitadores de conexões neurais'. Freud, assim, antecipou a afirmação contemporânea de que o cérebro pode ser entendido como um aparelho computacional cujo 'conhecimento está nas conexões' entre unidades neurais processadoras, e também a decorrente visão dos processos mentais enquanto formas de ativação neural, e estados mentais como disposições destas formas, ou estruturas que as determinam. Ele concebeu um modelo representando suas primeiras descobertas clínicas nesses termos, e aparentemente enquadrou suas discussões posteriores de modo a torná-las consistentes com ele.

No primeiro modelo fisiológico freudiano, a sinalização de uma necessidade corporal, instinto, ou pulsão - por exemplo, a fome do bebê - causa um desequilíbrio na excitação neural. Isso, à primeira vista, resulta no choro e nos movimentos corporais não coordenados, que têm, quando muito, uma tendência fugidia de estabilizá-lo. Um equilíbrio melhor e mais duradouro requer satisfação, por exemplo, por intermédio da alimentação; e isso causa a facilitação das conexões neurais envolvidas nos eventos que as satisfazem. O cérebro então estabelece registros neurais, ou protótipos, das seqüências de percepções, mudanças internas, movimentos corporais, e assim por diante, envolvidas na restauração do equilíbrio pela satisfação. Então, quando o desequilíbrio ocorre novamente - e.g. quanto o bebê está com fome de novo - os sinais de entrada retomam caminhos previamente facilitados, de modo que as memórias satisfações relevantes experimentadas são naturalmente reativados. Isso, Freud pensou, constitui a  realização primitiva do desejo.

Freud identificou a pacificação realizante do proto-desejo infantil com o que pode ser considerado uma forma de ativação prototípica neural. Ele supôs que isso forneceria mais estabilidade ao desequilíbrio do que as enervações caóticas que substituía, e também que servia para organizar as respostas do bebê, por exemplo, para comer, reproduzindo aquelas respostas previamente associadas com a satisfação. Então, na medida em que o bebê continuava a estabelecer ativações prototípicas, as estabilizações realizantes originais evoluíam em direção a um sistema de pensamento enquanto também vindo a governar uma gama crescente de comportamento, coordenada crescentemente com a garantia da satisfação. Isso, porém, requeria do cérebro que aprendesse a atrasar o comportamento neural governado pela realização do desejo associada à satisfação passada, até que as presentes circunstâncias fossem perceptivelmente apropriadas - isto é, até que o cérebro se submetesse pouco a pouco ao que Freud chamou de princípio de realidade.

Essa capacidade de atraso dependia da tolerância da frustração, e da ausência do objeto realizante, que permitia o teste da realidade, e assim a reunião das conexões neurais envolvidas na garantia da satisfação da informação perceptiva sobre o objeto e, depois, ao pensamento racional. Por meio disso, o que Freud considerou um processo primário que leva à realização precipitada do desejo era progressivamente sufocado e inibido por um processo secundário, que fornecia a garantia da satisfação em condições realísticas. Esse desenvolvimento benigno podia, porém, ser arruinado, se a frustração (ou a tolerância a ela) levasse demais a uma ativação exagerada de protótipos inadequados, e isso a uma frustração maior. Tal processo podia tornar a mente/cérebro mais e mais vulnerável ao desequilíbrio e à desilusão e, portanto, mais e mais dependente de maneiras prévias e mais realizadoras de desejos de estabilização, num círculo vicioso constitutivo do distúrbio e da doença mental.

Freud delegou a tarefa de incentivar o sentido de realidade, e assim de fornecer a satisfação da pacificação baseada na realidade do desejo, a uma estrutura neural hipotética, ou parte funcional da mente, que ele chamou de ego. Em trabalhos posteriores, Freud ampliou sua abordagem do ego de modo a incluir, entre outras coisas, a maneira pela qual ele se desenvolvia através da identificação com outras pessoas. Como indicado acima, o ego da criança era parcialmente formado pela sua identificação com os pais em seus papéis de agentes, ou realizadores de seus próprios desejos. Mas a criança também realizava uma auto-regulação estabelecendo imagens dos pais como outros na relação com o eu, isto é, em seus papéis de realizadores, ou ainda, frustradores ou controladores de seus próprios impulsos e desejos corporais, e particularmente os impulsos primitivos relacionados à alimentação, defecação e coisas assim. A criança então introjetavafiguras que ajudavam ou controlavam, e internalizava as relações com elas, enquanto isso era registrado na perspectiva da experiência primitiva, distorcida tanto pela projeção quanto pelos extremos da emoção infantil. As imagens distorcidas e controladores formavam a base de uma parte distinta, autocrítica do ego, que Freud chamou de superego. Essa faculdade tendia a ser bem mais agressiva, ameaçadora e punitiva do que os pais reais, e assim podia ser uma fonte de grande ansiedade ou culpa, e mesmo, ao extremo, de suicídio.

Freud também relacionou o desenvolvimento do ego e do pensamento consciente com a linguagem. Os protótipos mais primitivos, ele supôs, diziam respeito a necessidades e ações relacionadas a objetos no ambiente imediato, e assim àquilo que ele chamou de representação de coisa. Uma relação limitada de simbolismo pode ocorrer entre representações de coisa, no sentido de que uma dessas representações podia se tornar ativada por, ou no lugar de, outra. Ao aprender a linguagem, porém, o cérebro estabelecia um conjunto subseqüente de facilitações, constituindo uma rede de representações de coisa, incluindo 'imagens de som', 'imagens de palavra' e um sistema de 'associações da fala' que ligava esses protótipos lingüísticos uns com os outros e com as coisas e situações associadas a palavras e sentenças. Esse sistema, Freud supôs, era responsável pela 'cognição' e pelo 'pensamento observante consciente'. A cognição podia  ser parcialmente entendida em termos da ativação de conexões que eram mediadas por protótipos lingüísticos e que, portanto, podiam ser lógicas ou racionais. A consciência do pensamento podia ser vista como resultante da interativação de representações lingüísticas eobjetuais; e, em conseqüência disso, o inconsciente podia ser entendido como aquilo que não estava propriamente ligado a, ou estava de algum modo separado do, sistema de conexões facilitantes de pensamentos estabelecido com a aquisição da linguagem.

Freud elaborou essas idéias sobre o simbolismo, a linguagem e o inconsciente em trabalhos posteriores. Ele também tentou explicar como os motivos infantis agressivos e sexuais podiam se submeter à sublimação, e assim serem redirecionados a fins que eram benignos, ou socialmente válidos. Pesquisas psicanalíticas subseqüentes, particularmente com pacientes esquizofrênicos, sugerem que tanto a capacidade de desenvolvimento emocional quanto aquela para o pensamento e o sentimento racionalmente integrados dependem de certa habilidade em formar e usar símbolos; e que essas habilidades, por sua vez, dependem de uma capacidade de tolerar frustração, e em particular de suportar a ausência, a distinção e a separação do objeto realizante, nas maneiras relacionadas às suposições originais de Freud.

Conclusão

Como mostrado acima, os primeiros trabalhos clínicos de Freud começaram de uma extensão sistemática e potencialmente coerente da psicologia popular, fornecendo explicações mais profundas para os sonhos, os sintomas, e também muitos aspectos do pensamento, do sentimento e da ação diários, por meio da relação com motivos inconscientes. Isso forneceu a base para uma abordagem mais geral e teórica do funcionamento e do desenvolvimento normal e patológico que tem sido revisado e estendido mediante a relação com dados obtidos da análise tanto de crianças quanto de pacientes psicóticos. Muitas dessas abordagens podem ser analisadas em termos do conceito de fantasia inconsciente e processos a ele associados, tais como a projeção e a identificação; e muitas das hipóteses constituintes foram forjadas de acordo com a concepção do trabalho do cérebro, que recentemente se tornou um foco independente de pesquisa. As hipóteses psicanalíticas sobre o inconsciente, assim, fornecem uma abordagem explanatória e unificante de uma gama de fenômenos mentais e comportamentais, muitos dos quais são clínica e comumente observáveis, e que não são estudados por nenhuma outra teoria. Uma vez que essas hipóteses são presumivelmente coerentes, e baseadas em dados reunidos por muitos pesquisadores através de anos de observação sistemática, eles merecem minuciosa atenção filosófica.

Bibliografia

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