O Inconsciente Freudiano

Güven Güzelbere

Na época de Freud, não havia nenhuma estrutura teórica adequada a partir da qual se pudesse rejeitar a idéia cartesiana de equacionar a mente com o que quer que se encontrasse no alcance da consciência. Em outras palavras, a consciência era geralmente considerada como "o ponto de divisão entre a mente e o que não é mental" (Baldwin 1901, pg. 216), i.e., a marca do mental.

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Todavia, a concepção corrente da transparência da mente em relação à consciência, encontrada em Descartes e Locke, possuía muitoscríticos.1 Particularmente, Leibniz, em sua réplica visionária a Locke nos Novos Ensaios, pode ser visto como precursor de alguns desdobramentos importantes na psicologia duzentos anos à frente de seu próprio tempo, especialmente com respeito à natureza e ao papel do inconsciente: "há milhares de indicações que nos levam a pensar que há em todos os momentos incontáveis percepções em nós, mas sem apercepção e sem reflexão... Numa palavra, percepções insensíveis [inconscientes] são de tão grande relevância na psicologia quanto os corpúsculos insensíveis o são na física, e é tão pouco razoável rejeitar as primeiras quanto as segundas, sob o pretexto de que estejam para além do alcance dos nossos sentidos" (Leibniz 1978, pgs. 11-14).

Contudo, considerar a consciência como marcando os limites da mente permaneceu sem dúvida alguma uma máxima influente na época de Freud. Por exemplo, o verbete "consciência", na edição de 1901 da Enciclopédia de Filosofia e Psicologia, diz: "[Consciência] é o caráter distintivo do que quer que possa ser chamado de vida mental" (Baldwin 1901, pg. 216). Nesse contexto, a convicção introspectiva daquela época - de que a psicologia é a "ciência do mental" - forneceu uma base especialmente forte para se rejeitar o inconsciente enquanto parte do mental, e por isso um tema para a psicologia. Titchener, por exemplo, foi resistente à idéia de inconsciente, a ponto de declará-lo umconstructo teoricamente perigoso para a psicologia: "o subconsciente pode ser definido como uma extensão do consciente para além dos limites da observação... O subconsciente não é uma parte do assunto próprio da psicologia... Em primeiro lugar, a construção de um subconsciente é desnecessária... Em segundo lugar, a introdução de um subconsciente é perigosa (Titchener 1915, pgs. 326-7).2

Nada disso, porém, deve nos levar a crer que o conceito de inconsciente enquanto parte ou aspecto do mental era completamente estranho. Em outras palavras, Freud não foi realmente o inventor (ou descobridor) do conceito de inconsciente de modo algum. Pelo contrário, a atmosfera intelectual geral da época, que imediatamente precedeu o surgimento de Freud, permitia uma abordagem da atividade mental de vários tipos que ocorria sem a consciência do sujeito, pelo menos num sentido direto. Por exemplo, era geralmente conhecida e usada a metáfora da mente como um iceberg, consistindo da consciência como a parte acima da superfície e um componente inconsciente na parte submersa, constituída por correntes escondidas mas, não obstante, atuantes na vida mental consciente,.

Em particular, no final do sec. XIX, a idéia da mente inconsciente tinha já era lugar comum para muitos cientistas, filósofos e literatos, em uma linha hereditária que remontava a Rousseau, até chegar em Goethe, Fichte e Nietzsche (Whyte 1960). Freud aparentemente levou isso em conta, tal como é relatado por Ernest Jones, um dos maiores especialistas em Freud, na seguinte declaração que fez na festa de seu aniversário: "os poetas e filósofos antes de mim descobriram o inconsciente. O que eu descobri foi o método científico pelo qual o inconsciente pode ser estudado" (citado em MacIntyre 1958, pg. 6). Também houve tentativas de se estudar o inconsciente empiricamente. Por exemplo, Henri Ellenberger reconhece que Gustav Fechener, um pioneiro da pesquisa psicofísica, como a primeira pessoa que tentou revelar a natureza do inconsciente por meio de método experimentais, embora o seu trabalho não fora bem sucedido (Ellengerber 1970,cap. 5).

No entanto, não havia sido bem formulada nenhuma dessas idéias sobre processos mentais em uma mente que não está consciente deles: não havia uma abordagem coerente para explicar a estrutura, o papel funcional, ou a operação do inconsciente, ou mesmo a modalidade de sua relação com a consciência no esquema geral da vida mental de um indivíduo. Não havia consenso na comunidade intelectual nem com respeito à natureza do inconsciente, nem com respeito ao

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seu lugar em relação à consciência. Freud trouxe uma estrutura teórica equilibrada e promissora a essa situação na qual, pela primeira vez, tornou-se possível a construção de hipóteses para responder a cada uma dessas questões. Este é o sentido no qual se pode dizer que Freud é o pioneiro do inconsciente.3

Na teoria freudiana, o inconsciente propriamente dito consiste de processos reprimidos, exercendo pressão no componente consciente da mente do sujeito e modelando a sua vida cotidiana de modo substancial. Em contraste com isso, há o pré-consciente, que inclui esses processos que somente contingencialmente se encontram fora da consciência. O que é pré-consciente pode facilmente tornar-se consciente sem técnicas especiais ou esforço; o que é inconsciente, porém, tem de ser "trazido à tona" através da técnica psicanalítica com a ajuda de um analista.

O inconsciente freudiano não é o mesmo que, embora esteja relacionado a, inconsciência empregada na pesquisa em psicologia cognitiva atual em relação a processos inconscientes - o "inconsciente cognitivo". Processos inconscientes de ambos os tipos são opacos à introspecção, mas há uma diferença entre eles. O inconsciente freudiano existe por causa de eventos passados, explicáveis por meio de mecanismos de repressão e coisas a eles associados, e não é em princípio inacessível. O inconsciente cognitivo, por outro lado, existe em virtude do modo como o nosso sistema perceptual cognitivo é constituído e se encontra em princípio fora do nosso alcance. Os mecanismos que subvertem a percepção profunda, por exemplo, são tomados como inerentes a nós; eles não estão lá devido à repressão, e jamais pode se tornar conscientes através de qualquer método, psicanalítico ou não. O reconhecimento e o estudo do inconsciente cognitivo começou muito antes de Freud, com o trabalho de von Helmholtz sobre a constância perceptual, e chega até a tese da "inferência perceptual inconsciente" de Rock (1983). Apesar de tais diferenças, porém, a abordagem freudiana do inconsciente foi muito moderna e precedeu a "revolução cognitiva".

Uma abordagem geral do inconsciente freudiano incluindo a sua estrutura e dinâmica, é feita por Erdelyi (1985). Ele também é um defensor da idéia de que a psicologia freudiana está realmente muito próxima, em essência, da psicologia cognitiva do nosso tempo - especialmente em termos de sua tentativa de compreender os fenômenos mentais e a metodologia da pesquisa. Ele segue reconstruindo os esquemas freudianos da estrutura da consciência, de um modo muito plausível, num estilo bastante atual. Neisser (1976) também se refere aos diagramas de Freud, mostrando a estrutura da divisão tripartite do consciente, pré-consciente e inconsciente como "esquemas de fluxos" (Freud 1950, pg. 394).4 É verdade não apenas que Freud antecipou alguns dos desenvolvimentos na psicologia cognitiva mas também que o inconsciente freudiano, mesmo se sob nomes diferentes, desempenhou um papel significativo como um constructo influente na psicologia cognitiva.

Notas

1 Notemos, porém, que uma curiosa passagem nas Paixões da Alma de Descartes sugere um compromisso teórico com algo muito semelhante ao inconsciente de Freud, que não se encaixa com o seu compromisso sobre a transparência da mente: "As estranhas aversões de certas pessoas, que as tornam incapazes de suportar o cheiro das rosas, a presença de um gato, e assim por diante, podem ser imediatamente reconhecidas como resultando simplesmente do fato de as mesmas terem tido experiências traumáticas com objetos desse tipo nos primeiros anos de suas vidas... E o cheiro das rosas pode Ter causado uma enxaqueca na criança quando ela ainda se encontrava no berço, ou um gato pode tê-la amedrontado sem que ninguém notasse e sem que nenhuma memória permanecesse depois; e, contudo, a idéia de uma aversão que a criança tenha sentido por rosas ou por gatos permanecerá impressa em seu cérebro até o fim de sua vida." (Paixões da Alma, II, parag. 136, AT 429). Infelizmente, não fui capaz de encontrar nenhuma elaboração mais detalhada dessa idéia nos escritos de Descartes, o que sem dúvida seria de grande relevância para aprimorar a compreensão da natureza do que parece ser uma tensão teórica manifesta.

2 A controvérsia sobre o estatuto dos estados mentais inconscientes é multifacetada. Outro forte crítico do inconsciente, embora por razões diferentes das deTitchener (que tem a ver com a sua atitude contra as visões panpsíquicas da consciência), é William James (1950). Ele salienta impacientemente: "a distinção... entre o ser inconsciente e o ser consciente de um estado mental... é o meio soberano para se acreditar no que se espera em psicologia, e transformar aquilo que pode se tornar ciência em um palco para fantasias" (pg. 163). Uma linha de objeção diferente é também elaborada, de um modo um tanto cartesiano, por Searle (1992) e por Strawson (1994). Notemos que em Titchener, o debate sobre o inconsciente tornou-se um debate sobre o subconsciente, mas não há razão suficiente para se pensar que nada teoricamente significativo HANGS ON essa substituição implícita. Essa variação terminológica se origina do fato de que Freud e seu contemporâneo, Pierre Janet, teve uma discordância inicial que os deixaram com dois termos diferentes (inconsciente e subconsciente) e cada um adotou e perpetuamente possuiu o seu próprio termo como vingança. Mas isso correu mais em virtude de disputas pessoais entre duas personalidades do que em função de uma dissonância teórica sobre a natureza e estrutura daquilo que não é consciente. E até que eu saiba, não há evidência de que o uso deTitchener do termo de Janet, subconsciente, e não o do inconsciente de Freud, seja o resultado de uma "decisão consciente" e de um compromisso teórico. Para uma abordagem significativa da relação entre Freud e Janet, ver Perry & Laurence (1984).

3 Para uma discussão interessante da questão sobre se o inconsciente freudiano é um "constructo teórico" tal como as entidades teóricas científicas, verDilman (1972).

4 Notemos que, através do tempo, Freud ficou insatisfeito com a sua estrutura tripartite e eventualmente introduziu os novos elementos id, ego e superego em sua concepção: "No desenrolar do trabalho analítico, porém, essas distinções (i.e., consciente, pré-consciente e inconsciente) se revelaram inadequadas e, por razões práticas, insuficiente. Isto se torna claro em inúmeras ocasiões; mas o momento decisivo foi o seguinte. Formamos a idéia de que em cada indivíduo há uma organização coerente de processos mentais; e a chamamos de ego" (Freud 1962, pg. 7). Mais tarde, Freud (1964) oferece uma representação esquemática da estrutura da consciência, com o id, o ego e o superego sendo "superimpostos" na divisão tripartite clássica consciente, pré-consciente e inconsciente.

Bibliografia

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Searle, J. (1992): The Rediscovery of the Mind, Cambridge: the MIT Press.

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Titchener, E. B. (1915): A Beginner's Psyhcology, New York: MacMillan.

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James, W. (1950): The Principles of Psychology, vol. 1, New York: Dover.

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