Nota sobre a Fabricação Exegética Mítica na Condenação popperiana da Validação Clínica da Psicanálise

Alfred Grünbaum

Popper não parece levar em conta que o legado indutivista de Bacon e Mill jamais oferece sanção metodológica às "confirmações" universais advogadas pelos freudianos e adlerianos que ele conheceu por volta de 1919. Eles os descreve como pessoas que "encontravam instâncias confirmadores em toda parte: o mundo estava repleto de verificações da teoria. Qualquer que fosse o evento, ela o confirmava" (Popper 1962, pg. 35). De fato, Popper afirma que, por meio de padrões indutivos, as psicologias de Freud e Adler "eram sempre confirmadas" (idem). Ele então ataca esta suposta confirmação universal dessas teorias, aconteça o que acontecer, para não apenas opor-se a ambas, como também impugnar a metodologia indutivista que supostamente dá sustentação à credibilidade delas. Com isso em mente, ele afirma: "era exatamente tal fato - que as teorias estavam sempre corretas, que elas eram sempre confirmadas - que, aos olhos de seus admiradores, constituía o argumento mais forte a favor delas. Pouco a pouco cresceu em mim a sensação de que essa força aparente era, na verdade, a sua fraqueza" (idem). Ele então se viu autorizado a se opor ao indutivismo pela falta de valor probatório qua método científico de validação, e a propor o seu abandono enquanto critério de demarcação.

A recusa do indutivismo por parte de Popper fica ainda mais clara quando se considera o seu relato de como ele foi levado a enunciar o seu novo critério de demarcação em 1919-1920 (pg. 36). Lá ele formula as diferenças que ele observa entre o seu critério de falseabilidade e o de seu predecessor indutivista em um manifesto de sete teses, após explicar quais considerações o levaram a elas. A primeira dessas teses afirma que "é fácil obter confirmação, ou verificação, para quase toda teoria - se procuramos por confirmações" (pg. 36). No entanto, a mais enfática dessas considerações que claramente o levou aos princípios encontrados em seu manifesto foi a seguinte: enquanto a teoria gravitacional de Einsten é falseável, as teorias de Freud e Adlernão o são, porque "era praticamente impossível descrever qualquer comportamento humano que não pudesse ser considerado como uma verificação dessas teorias" (idem).

É irônico que Popper tenha utilizado a teoria psicanalítica como exemplo paradigmático de sua tese segundo a qual confirmações indutivamente obtidas podem ser encontradas em quase toda teoria, se nos dispusermos a procurá-las. Possuindo muitas hipóteses etiológicas e causais, a teoria de Freud é desafiada pelo indutivismo neo-baconiano a fornecer uma coleção de instâncias positivas de grupos experimentais e de controle, se deve haver exemplos indutivamente sustentados. Mas como se pode ver no caso do homem-rato, mesmo se tais instâncias existissem, seria extraordinariamente difícil, se não impossível, obtê-las através do método psicanalítico retrospectivo. Além disso, até hoje, os analistas ainda não apresentaram os tipos de instâncias de investigação controladas que são indutivamente exigidas para fornecer suporte legítimo às etiologias freudianas específicas das neuroses. Por isso, é precisamente a teoria freudiana que fornece evidência significativa de que Popper caricaturizou a tradição indutivista com sua tese de fácil confirmabilidade indutiva de toda teoria.

No entanto, Popper concluiu que, porque elas são sempre confirmadas, aconteça o que acontecer, as duas teorias psicológicas "eram simplesmente não-testáveis, irrefutáveis" (pg. 37). Ele se apressa então em acrescentar: "isso não quer dizer que Freud eAdler não estivessem vendo as coisas corretamente... Mas quer dizer sim que essas 'observações clínicas', que os analistas ingenuamente consideram como confirmadoras de suas teorias, não podem desempenhar tal papel mais do que o podem os astrônomos com sua prática" (pgs. 37-8). Para explicar esta última sentença, Popper introduz uma nota de rodapé na qual ele tece considerações sobre as confirmaçoes clínicas afirmadas pelos analistas. Uma vez que eu pretendo examinar esse ponto de vista cuidadosamente, permita-me citá-lo in toto:

"'Observações clínicas', como todas as outras observações, são interpretações à luz de teorias; e é somente por essa razão que elas parecem sustentar essas teorias à luz da qual elas são interpretadas. Mas um suporte real só pode ser obtido a partir de observações consideradas como testes (por "refutações tentadas") e para esse propósito critérios de refutação devem ser apresentados de antemão: há que se concordar que situações observáveis, se realmente observadas, significam que a teoria é refutada. Mas que tipo de respostas clínicas refutariam, a ponto de o analista considerar satisfatória, não meramente um diagnóstico analítico particular mas a própria psicanálise? E será que tais critérios foram alguma vez discutidos ou aceitos pelos analistas? Não há, ao contrário, uma grande família de conceitos analíticos, tais como "ambivalência" (não sugiro que não haja tal coisa como ambivalência), que tornaria difícil, se não impossível, concordar com tais critérios? Além disso, quanto progressotem sido feito em investigar a questão da extensão a qual as expectativas e teorias (conscientes ou inconscientes) do analista influenciam as "respostas clínicas" do paciente? (sem falar nas tentativas conscientes de influenciar o paciente propondo interpretações a ele, etc.) Anos atrás eu introduzi o termo "efeito Édipo" para descrever a influência de uma teoria ou expectativa ou predição sobre o evento que ela prediz ou descreve: deve-se lembrar que a cadeia causal que leva ao parricídio de Édipo foi iniciada pela predição do oráculo desse evento. Este é um tema recorrente de tais mitos, mas um que parece ter falhado em atrair o interesse dos analistas, talvez não acidentalmente. (O problema dos sonhos confirmatórios sugeridos pelo analista é discutido por Freud, por exemplo, no Gesammelte Shriften, III, 1925, onde ele diz na pg. 314: "se alguém afirma que muitos dos sonhos que podem ser utilizados na análise devem a sua origem à sugestão (do analista), então nenhuma objeção pode ser feita do ponto de vista da teoria analítica. No entanto, não há nada nesse fato", ele acrescenta surpreendentemente, "que nos levaria a desconfiar da confiabilidade dos nossos resultados".) (pg. 83, n. 3)

Gostaria de fazer 4 comentários sobre essa citação.

1. Popper pergunta que tipo de respostas clínicas Freud consideraria adversas à sua teoria geral. (...) Posso também considerar agora a lição que Freud aprendeu do caso do homem-rato para confirmar sua retrodicção etiológica. Além do mais, precisamos apenas relembrar o tema do artigo de Freud intitulado Construções em Análise, a saber, como ele assegura a falseabilidade intraclínica daquelas reconstruções clínicas que são manifestamente o ponto epistêmico vital de toda a sua teoria! Quando Popper pergunta "que tipo de respostas clínicas o analista sancionaria e que ao mesmo tempo refutaria a própria psicanálise?", eu pergunto a ele: o que é 'a própria psicanálise'? Será que é a teoria das motivações inconscientes ou será que é o método de investigação psicanalítico? Quanto ao primeiro, Freud enfatiza a sua naturezaconjectural aceitando a visão de Poincaré de que os postulados da teoria são evidentemente criações imprecisas e livres da mente humana (S. E. 1914, 14: 77, 117). Quanto ao último, ele afirma explicitamente que, quando a etiologia da sedução com respeito à histeria entrou em colapso, ele considerou abandonar o próprio método psicanalítico de investigação como não confiável (S. E. 1914, 14: 17; 1925, 20: 34). As evidências textuais pertinentes estavam disponíveis a Popper na edição alemã dos escritos seletos de Freud, a partir dos quais ele citou a passagem acima. A deplorável omissão de Popper face aessa clara evidência textual resultou em uma fabricação exegética mitológica. De fato, o mito tem surgido até mesmo em livros introdutórios, onde é apresentado repetidamente sem as devidas ressalvas, como se fosse fruto de uma exegese bem documentada. Embora o seu funeral esteja bem atrasado, temo que ele tenha se tornado tão conhecido que os seus efeitos danosos continuarão a aparecer.

2. Será que o emprego psicanalítico do conceito de ambivalência de Eugen Bleuler epitomiza uma família de noções teóricas que servem como elementos de faseabilidade? Aqui eu remeto o leitor ao capítulo 1, seção B, onde argumentei que essa queixa de Popper se volta contra si mesma.

3. Popper caracteriza o efeito sugestivo do analista nas respostas clínicas do paciente como sendo uma questão da "influência de uma teoria ou expectativa ou predição sobre o evento que ele prediz ou descreve". Nesse sentido, Popper faz a alegação incrivelmente desinformada e profundamente injusta de que tal auto-realização de predições via mecanismos similares à sugestão "parece ter falhado em atrair o interesse dos analistas, talvez não acidentalmente". Ele relata, em compensação, que foi ele que anos antes reconhecera o perigo epistêmico da validação ilusória de dados espúrios quando ele cunhou o termo genérico 'efeito Édipo'. Assim, ele condenou os freudianos por não estarem a par, como ele estava, da moral relevante da lenda de Édipo. Contra isso, devo salientar, para começar, que desde 1888 - 14 anos antes de Popper nascer - Freud apresentou uma abordagem sofisticada e incisiva de diversos tipos de sugestão e de seus efeitos (S. E. 1888,1: 75-85). Naquele ano, ele publicou um longo prefácio à sua tradução para o alemão do livro de H. Bernheim sobre o uso terapêutico da sugestão. Lá Freud chamou a atenção para o caos epistêmico que pode ser causado em psiquiatria pela intervenção sugestiva do médico, se ele falhar em permitir a produção sugestiva potencial de sintomas espúrios que não são característicos da síndrome sob investigação. Bernheim condenou exatamente esse erro no relato de Charcot de um complexo sintoma intitulado 'hipnose profunda'. Charcot afirmou que, diferentemente dos sujeitos hipnotizados normais, os pacientes histéricos exibem três estágios de hipnose, cada um dos quais distinto por sintomas físicos característicos altamente notáveis. No entanto, como Freud explica, se a sintomatologia da histeria sob hipnose fosse primeiramente ocasionada por mera sugestão, então aqueles estudantes da histeria que pensavam estar investigando uma síndrome objetiva teriam se enganado da seguinte forma:

"Todas as observações feitas em Salpêtrière são inúteis; de fato, elas são erros de observação. A hipnose de pacientes histéricos não teria nenhuma característica própria.,.. Não devemos aprender do estudo da hipnose profunda quais alterações na excitabilidade se sucedem no sistema nervoso dos pacientes histéricos em resposta a certos tipos de intervenção; devemos apenas aprender quais intenções Charcot sugeriu (de uma maneira da qual ele mesmo estava inconsciente) aos sujeitos de seus experimentos - uma coisa inteiramente irrelevante para o nosso entendimento tanto da hipnose quanto da histeria. É fácil ver as implicações posteriores dessa visão e qual explicação conveniente ela pode prometer da sintomatologia da histeria em geral. Se a sugestão, pelo médico, tem falsificado os fenômenos da hipnose histérica, é bem possível que ela possa também ter interferido na observação do resto da sintomatologia histérica; ela pode ter estabelecido leis que governam ataques, paralisias, contrações histéricas etc. que só estão em conexão com a neurose através da sugestão e que conseqüentemente perdem a sua validade assim que um outro médico em outro lugar faz um exame em pacientes histéricos. Aqui deveríamos ter um esplêndido exemplo de como a omissão do fator psíquico da sugestão enganou um grande observador na criação falsa e artificial de um tipo clínico como resultado do capricho e da fácil maleabilidade de uma neurose" [S.E. 1888, 1: 77-8].

Como nota Freud, a condenação de Bernheim do caráter espúrio da 'hipnose profunda' de Charcot tem o efeito salutar de que "em toda futura investigação da histeria e hipnotismo a necessidade de excluir o elemento de sugestão será mais conscientemente levado em conta" (pg. 78). Mas Freud observa que, nesse caso, o caráter espúrio da sintomatologia havia sido descartado pela evidência textual que Charcot tinha reunido, pois essa evidência mostra que "pontos principais da sintomatologia da histeria estão isentos da suspeita de ter se originado da sugestão pelo médico" (pog. 79). Como se pode ver, desde 1888, Freud já possuía uma concepção sofisticada acerca do problema epistêmico dos dados espúrios enquanto apresentados pela suscetibilidade do paciente à influência do terapeuta. Por causa disso, em 1901, Freud acabou com a sua longa amizade com Wilhelm Fliess quando este objetou que a técnica psicanalítica da associação livre estava viciada por sua inabilidade em prevenir a produção de falsas descobertas. (...) Freud permanecera atento a tal desafio nesse meio tempo ao lidar com ele em seu relato do caso do pequeno Hans em 1909. Desse modo, no momento em que Popper apareceu no cenário filosófico em 1919, os escritos de Freud tinham já há muito tempo respondido à acusação de Popper de que os analistas não estão a par do problema da contaminação. Depois disso, os escritos de outros analistas renomados como Glover (1931) continuaram a minar as bases de tal acusação.

4. Popper comenta a explicação de Freud sobre o conteúdo sugestivamente induzido do sonho não confirmar de maneira espúria as interpretações analíticas. Infelizmente, a citação que Popper faz de Freud beira a pura caricatura. Popper cita apenas um excerto da passagem freudiana em sua própria tradução do texto alemão no Gesammelte Schriften de Freud (1925, vol. 3: 134). A passagem completa é dada na S. E. 1923, 19: 117. Ao comparar o excerto de Popper com o original alemão, ou com a tradução na S. E., fica evidente que Popper simplesmente cortou a sentença crucial de Freud de uma maneira altamente enganadora sem qualquer indicação dessa omissão. Freud estava respondendo à crítica de que muitos sonhos que são interpretados no curso de uma análise são sonhos complacentes cuja ocorrência fora induzida pela expectativa do analista, e sua resposta é como se segue: "Assim, eu preciso apenas me referir à discussão em minhas 'LiçõesIntrodutórias`, onde a relação entre transferência é sugerida e abordada, e é mostrado quão pouco reconhecimento do efeito da sugestão em nosso sentido prejudica a confirmabilidade dos nossos resultados". Expressando surpresa, Popper pretende estar colocando essa sentença nos seguintes termos? "Contudo, não há nada nesse fato [dos sonhos complacentes] que prejudicaria a confirmabilidade dos nossos resultados". Assim, apenas na parte inicial da sentença que Popper omite misteriosamente, Freud se refere ao seu Argumento da Correspondência para afirmar que o papel da sugestão em sonhos e análises complacentes não é, de modo geral, epistemicamente confuso. Não tendo dado nenhuma pista de que Freud defendeu essa conclusão, embora tivesse sido mal sucedido, Popper o representa mal como tendo oferecido uma mera ipse dixit. Sobre isso, Popper se declara surpreso com a afirmação supostamente irrefletida de Freud. Todavia, requerer-se-ia caridade para atribuir essa pesada omissão aos embaraços impostos a Popper por escrever dentro dos limites de uma nota de rodapé.

In Grünbaum, A. (1985): The Foundations of Psychoanalysis, Berkeley: University of California Press, pgs. 273-285

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