A Gramática Lógica de Quine Em Philosophy of Logic

A. Introdução

Em Philosphy of Logic (1970) Quine expõe e problematiza alguns pontos essenciais concernentes à filosofia da lógica e da linguagem. Entre outros vemos nele abordados assuntos como por exemplo, a relação entre gramática e lógica, entre a teoria dos conjuntos e lógica, assim como a definibilidade de verdade, isto para referir apenas três aspectos desta sucinta mas vigorosa introdução à filosofia da lógica.

No capítulo que analisaremos – Cap. 2. Grammar - Quine começa por falar do papel do gramático em sentido geral, passando no segundo momento do capítulo(Logical Grammar, p. 22) a ocupar-se da gramática lógica em particular. Na exposição que faremos deste trecho de texto começaremos exactamente por explicar a relação entre o lógico e o gramático. Quais as características susceptíveis de destinguir um do outro se aparentemente, a tarefa de ambos reside num falar sobre a linguagem? Demonstraremos pois em que medida é que, ocupando-se ambos da linguagem, as suas vias divergem.

Depois de explicada a tarefa e ambições do lógico, introduziremos as suas 'ferramentas', i.e. os meios de que dispõe para operar, nomeadamente os juntores e a construção de orações. Ao expormos a gramática lógica de Quine identificaremos os pontos mais problemáticos dessa mesma gramática, ou melhor, das opções do seu autor. Sempre que possível tomaremos uma posição relativamente ao texto, não deixando nunca de distinguir as palavras de Quine das nossas.

B. O Lógico e o Truth Predicate

Conforme escrevemos na introdução, tanto o lógico como o gramático parecem ocupar-se de fenómenos do foro linguístico. Dissemos „parecem", pois na verdade ao passo que para o segundo a linguagem é de facto o alvo dos seus esforços, o lógico apenas fala de frases quando se vê impossibilitado de empreender generalizações num nível objectivo, como veremos adiante. O lógico de Quine é alguém essencialmente interessado no mundo real 'reallity is [...] the whole point.' (1). A tarefa do lógico, que consiste em determinar o valor de verdade de determinadas frases, não é nunca empreendida sem laços com a realidade empírica: 'No sentence is true but reality makes it so' (2). A nossa tarefa enquanto lógicos reside portanto na descoberta do valor de verdade de orações, através de um olhar atento para o mundo, e Quine diz que 'our eye is on the world' (3). No entanto há uma technical complication, que nos impede de, enquanto lógicos, falarmos directamente sobre o mundo. Isto pode conduzir a confusões, pois apesar de interessado no mundo, o lógico tem de falar sobre frases e é precisamente nesta fase do seu trabalho, que o poderíamos confundir com o gramático. O lógico porém fala apenas de frases por nem sempre ser possível empreender generalizações num nível objectivo (o nível dos indivíduos). Ao passo que por exemplo no caso de frases tipo 1:

(1) a. '7 é 7.'

b. 'Tom é Tom.',

que dizem tanto como: 'Todas as coisas são elas próprias' podemos efectuar generalizações sem problemas ('todas as coisas são elas próprias' é obviamente uma generalização de frases tipo 1), existem frases que não permitem tal procedimento. Atentemos por exemplo em frases tipo 2:

(2) a. 'Tom é mortal ou Tom não é mortal',

b. 'O Sporting é campeão ou o Sporting não é campeão',

que têm a estrutura lógica 'p ou não p' (4). Se quisermos empreender uma generalização relativamente a este tipo de frases, temos de ascender semanticamente, falando de verdade e de frases. Dizemos: 'Todas as frases com esta estrutura lógica são verdadeiras', ou: 'Toda a alternação de uma frase com a sua negação é verdadeira'. Neste caso, as instâncias acerca das quais generalizamos encontram-se numa posição oblíqua umas relativamente às outras, portanto somos levados a ascender semanticamente. Este semantic ascent reside num retiro temporário do mundo, e o motivo que nos leva a ascender semanticamente não reside, nem na natureza linguística das instâncias, nem numa particular (fosse ela qual fosse) relação nossa com a linguagem. A necessidade técnica de ascendermos semanticamente surge precisamente quando desejamos determinar o valor de verdade de frases tipo 2. Há no entanto algo, que nos permite enquanto lógicos, reestabelecer a referência objectiva do nosso discurso. A obliquidade das instâncias de frases tipo 2, reside no facto de estas serem de natureza linguística, não possuírem referência objectiva. Ao generalizarmos sobre elas dizendo, que toda a frase partilhando a mesma estrutura lógica é verdadeira, estamos a atribuir-lhe o predicado de verdade, ou o valor de verdade v. Reside nisto o restabelecimento da referência objectiva da nossa oração, e consequentemente a característica que destingue o gramático do lógico. O gramático não se preocupa com a determinação do valor de verdade das frases, mas apenas com a sua garamaticalide, i.e. investiga a correcta ou incorrecta construção gramatical do discurso.

Explicadas ora, em certa medida, as ambições que o lógico deveria aos olhos de Quine possuir, passaremos à análise gramatical num contexto mais limitado: na aplicação às notações da lógica simbólica. Trata-se de uma notação artificial, que como veremos se revelará significativamente mais simples e parcimoniosa que as tradicionais gramáticas que todos conhecemos, ou deveríamos conhecer.

C. A Gramática Lógica

C.1. Léxico

Quine começa por dizer que necessitamos apenas de um léxico e de construções. O léxico encontra-se dividido em categorias, e Quine apresenta-nos justamente as categorias da gramática, da forma artificial de notação, que mais proeminentemente aparecem na teoria moderna da lógica. As categorias que nos são apresentadas são: a categoria dos predicados unários ou verbos intransitivos, a categoria dos predicados binários ou verbos transitivos, e eventualmente mais categorias para predicados trenários etc.. Depois temos a categoria das variáveis 'x', 'y', 'z', que apesar de ser constituída apenas por três elementos, se revelará como veremos infinita, que podemos representar como se segue 'x', 'y', 'z', 'x´', 'y´', 'z´', 'x´´', etc. , mas cujo significado explicitaremos depois de termos clarificado os acima distinguidos predicados, por meio de exemplos. Exemplos de predicados unários seriam: 'passeia', 'é branco', 'é belo' etc.. Predicados binários são por exemplo: 'ama', '<', 'é mais pesado que', sendo exemplo de um predicado trenário a expressão '... fica entre ... e ...'. Queríamos no entanto dizer algo acerca do carácter infinito da categoria das variáveis. O que acontece é que esta não é infinita per se, mas por meio de uma construção a que damos o nome de acentuação. Acrescentando um apóstrofo ou tracinho a uma variável, obtemos uma expressão gramaticalmente composta ex.: 'x´', e como facilmente se deduzirá, este acto de iteração pode ser empreendido ad infinitum. Obtemos assim uma categoria infinita, cuja importância reside no facto de podermos discursar acerca de um universo igualmente infinito, ou elaborar representações relativas ao universo dos números, que partilha do mesmo modo a característica da infinitude.

C.2.Contruções

Introduzimos acima a mais simples de todas as construções (acentuação), apenas a fim de compreendermos o carácter infinito do léxico. Agora ocupar-nos-emos porém de contruções mais significativas e também mais complexas. As construções permitem-nos compor orações. Começámos então com a construção da predicação.

C.2.a. Predicação

Em primeiro lugar temos a predicação de um predicado unário. Consiste ela na junção de um verbo, digamos 'passeia', a uma variável 'x', sendo o resultado a adivinhável construção: 'x passeia' (5). A variável 'x' não refere nesta situação, pois como veremos, só assumem valores, as variáveis que se encontrem no domínio de um quantificador. É por isto, que Quine se refere ao resultado da sua construção, como uma frase aberta. Frases abertas distinguem-se das restantes frases (frases lógicas em sentido geral, ou orações) pelo facto de não referirem. 'x passeia' não indica a existência de nenhum indivíduo, não possui referência objectiva, o que se passaria por exemplo, no caso de uma frase semelhante a esta precedida por um quantificador existencial, como veremos. O valor de verdade desta frase fica por assim dizer, por determinar. A frase é verdadeira para os valores da variável que passearem, e falsa para os valores da variável que o não fizerem.

Outra construção é a predicação de um predicado binário, que apesar de não diferir em muito da construção anteriormente explicada, é tratada como uma construção distinta. A única diferença, ou melhor, as únicas diferenças relativamente à predicação de um predicado unário são: em vez de um verbo intransitivo temos agora um verbo transitivo, e em vez de recorrer a uma, recorremos agora a duas variáveis. Uma frase susceptível de exemplificar o resultado da nossa construção, seria: 'x ama y'. Estamos novamente perante uma frase aberta, pois o carácter relacional da frase obtida não invalida o carácter não referencial da frase. Variáveis fora do domínio de quantificadores não possuem nunca referência objectiva!

C.2.b. Construções de Frases a partir de Frases

Ao contrário da construção da predicação, que originava frases atómicas, o resultado das construções que de de seguida introduziremos, originam frases complexas (ou moleculares). Quine explica, que uma frase atómica é uma frase que não contém nenhuma frase subordinada. Assim a frase aberta 'x ama y' é atómica, pois não distinguimos nela mais nenhuma frase. Na construção de frases a partir de frases, como por exemplo no caso da negação, que prefixando uma frase com o símbolo 'Ø ' origina uma nova frase (composta), deparamos com resultados compostos, que na tradição lógica receberam o nome de moleculares. Outra construção é a conjunção, que consiste em juntar duas frases por meio da partícula (ou juntor) 'Ù ', produzindo também ela uma frase composta. Por fim temos a construção da quantificação existencial, (o quantificador existencial é um 'E' ao contrário '$ '). Prefixando uma das nossas frases abertas, por ex.: 'x passeia' com o quantificador existencial obtemos '$ x (x passeia)'. A frase resultante diz que há/existe algo que passeia, e distingue-se das demais frases complexas ou moleculares até aqui mencionadas, pelo facto de lhe podermos atribuir um valor de verdade. Já não estamos na presença de uma frase aberta. Mas, nas próximas páginas abordaremos mais pormenorizadamente este tipo de problemas. Para já contentemo-nos com o facto de termos conhecido todo oapartus da gramática Quineana. Não há mais nada a acrescentar, tirando algumas justificações e outros aspectos de que nos ocuparemos em seguida.

D. Redundant Devices

Quem for minimamente versado em matérias de lógica, deu certamente pela falta de coisas importantes como a disjunção 'Ú ', o condicional 'É ', o bicondicional 'Û ', o quantificador universal '" ', os nomes, os functores, as letras esquemáticas 'p', 'q' , 'r' da lógica preposicional, e as letras esquemáticas 'F', 'G', 'H', etc., que ocupam o lugar de predicados. Quem por seu turno não estiver familiarizado com estes termos, não precisa de se assustar, pois não tardará a ver explicado o seu significado e relevância para o discurso lógico.

O que se passa é que Quine escolheu a mais parcimoniosa possibilidade de formular a sua gramática lógica, e esta parcimónia é algo bem característico seu. Quine não quer no entanto, negar a importância de aprendermos, que existe uma contrução que dá pelo nome de disjunção e que se escreve 'Ú ' (ou). Ele não nega também a sua utilidade na prática. O motivo da ausência desta construção na gramática que há pouco apresentámos é a possibilidade de a parafrasearmos via conjunção e negação. Podemos assim parafrasear 'p ou q' da seguinte forma: 'Ø (Ø p Ù Ø q)'. As letras 'p' e 'q' são letras esquemáticas, e ocupam, como acima mencionámos, o lugar de frases. E o condicional? Podemos também eliminá-lo recorrendo apenas à nossa parcimoniosa gramática? Na verdade Quine refere duas possibilidades de paráfrase do condicional 'Se um animal possuir coração, possui rins' (p É q):

  1. 'Ø $ x (x é um animal Ù x possui coração Ù Ø (x possui rins) )'
  2. 'Ø (p Ù Ø q).'

Qual a diferença entre elas? Ao passo que no primeiro caso recorremos à quantificação existencial, à negação e à conjunção, no segundo recorremos apenas à negação e à conjunção. Estamos perante duas possíveis formas de formular o condicional 'p É q', que na tradição lógica recebeu o nome de condicional material. A alínea 1 lê-se: não existe nenhum x, que satisfaça simultaneamente as condições de: ser um animal, possuir coração e não possuir rins. A alínea b lê-se: não é o caso, que p e não q i.e. não acontece termos simultaneamente p e não q. Não será difícil reconhecermos em ambas as frase a ideia de um condicional (se tivermos p, temos de ter q; se a for um animal e possuir um coração, tem de possuir rins). A um condicional material (p É q) não podemos atribuir o valor de verdade v, apenas no caso de p ser v e q ser f. Em todos os outros casos o condicional é verdadeiro; para obtermos um condicional verdadeiro basta termos um antecedente falso, ou um consequente verdadeiro (no caso ideal um antecedente falso e um consequente verdadeiro).

Para além do condicional existe ainda o bicondicional 'Û ', que se lê 'se e somente se', e no português se abrevia por 'sss'. A ideia subjacente ao bicondicional 'p Û q'é a de que, se tivermos p, temos necessariamente q, daí, podemos expressá-lo recorrendo apenas à conjunção e ao condicional: 'p É q Ù q É p'. Atendendo ao facto de que o condicional não consta na nossa gramática, e já sabemos como parafraseá-lo, obtemos: 'Ø (pÙ Ø q) Ù Ø (qÙ Ø p)', ao que por convenção se chama bicondicional material, e de que 'p Û q' é uma abreviação.

Os valores de verdade das nossas construções, são determinados relativamente aos valores de verdade das frases suas constituintes. Assim, por exemplo no caso da negação '$ x Ø (x passeia)', temos que: se a frase for verdadeira, a negação é falsa e se a frase for falsa, a negação assume obviamente o valor de verdade v. Existem uma série de regras para a determinação dos valos de verdade de conjunções, alternações, condicionais e bicondicionais, que nos permitem, a partir do conhecimento dos valores de verdade dos constituintes, determinar o valor de verdade das construções em questão. É por isto que chamamos a este tipo de expressões, funções de verdade. O que Quine nos mostra, é que podemos parafrasear todas as funções de verdade recorrendo apenas à conjunção e à negação.

Qual a vantagem porém de formular tudo apenas com recurso a 'Ø ' e a 'Ù '? Qual o interesse de Quine em ser tão parcimonioso, se a final de contas continua a servir-se de construções ausentes da sua gramática lógica (da sua linguagem objectual) para explicar essa mesma gramática lógica e para operar? O que acontece é que Quine distingue a linguagem objectual da metalinguagem, e diz que a vantagem de ser poupado na linguagem objectual consiste em facilitar o discurso sobre essa mesma linguagem. A metalinguagem é a linguagem na qual discutimos a linguagem objectual (no nosso caso o português), e nela surgem todas as construções e fenómenos ausentes da nossa gramática lógica (e também os presentes, pois a metalinguagem contém praticamente tudo). Outra das vantagens da nossa gramática, e portanto de admitirmos tão poucas construções no seu seio, é a determinação dos valores de verdade. A determinação dos valores de verdade torna-se mais fácil numa linguagem simples e poupada, do que numa gramática contendo um grande número de construções. No entanto, há outro aspecto importante, que é o aspecto prático. Na prática recorremos, como vimos, a letras esquemáticas para representar frases 'p', 'q', 'r', etc., assim como para representar predicados: 'F', 'G', etc.. O uso das primeiras foi já exemplificado aquando da demonstração das possibilidades de paráfrase de determinadas construções, atentemos no seguinte exemplo para as segundas: a frase aberta 'x passeia', equivale ao esquema 'Fx'. Estamos na presença de uma predicação, que por não ser precedida por nenhum quantificador, constitui uma frase aberta. No entanto podemos empregar esta letra esquemática na presença de um quantificador e produzir um esquema '$ x Fx' da frase '$ x (x passeia)'. Ao passo que o esquema pertence por assim dizer à metalinguagem, podemos incluir a frase na nossa linguagem objectual.

Depois de ter justificado a ausência da disjunção, do condicional e do bicondicional da sua lista de construções, Quine dedica alguma atenção à quantificação universal '" x Fx', que, apesar de ser "proeminent in logical practice" é supérflua na teoria, pois '" xFx' equivale a 'Ø $ xØ Fx'. Ao colocarmos a frase aberta 'Fx' no domínio do quantificador universal '" ', estamos a dizer que 'Fx é satisfeita por todo o objecto x'. Ao dizermos que não há nenhum x tal, que não satisfaça a condição F, estamos obviamente perante uma oração com a mesma informação objectiva, i.e. equivalente.

E. Nomes

No discurso lógico distingue-se entre variáveis e nomes. Ao passo que as variáveis possuem a característica de podermos quantificar sobre elas, os nomes não podem figurar no domínio de um quantificador. Ao passo que as primeiras podem assumir valores, os nomes identificam indivíduos e são, segundo Quine, redundâncias, pois se pensarmos no nome 'a' e numa frase 'Fa' contendo esse mesmo nome, ocorre-nos imediatamente uma maneira de parafrasear essa oração: '$ x (a = x Ù Fx)'. Dizemos que 'a' é igual a 'x', e podemos colocar a oração no domínio do quantificador sem problemas de maior, através da conjunção de 'a = x' e 'Fx'. Note-se que o gramaticalmente inexplicado sinal de igual '=' é susceptível de ser substituído por um predicado simples da linguagem. Quine diz que 'a' não precisa assim de ocorrer mais a não ser no contexto 'a ='. É óbvio que este procedimento pode ser criticado, pois no fundo o nome continua sempre a aparecer. Se 'a' não precisa de aparecer, excepto no contexto 'a =' não eliminámos realmente os nomes! Quine aponta outra forma de eliminação: transformando 'a =' num predicado simples 'A', abandonamos o nome 'a'. 'Fa' fica '$ x (Ax Ù Fx)' sendo 'A' um predicado que é apenas verdadeiro relativamente ao objecto a. Também aqui não nos sentimos convencidos pela argumentação de Quine. Pensamos que os nomes são elementos importantes de uma gramática lógica, e que não se trata de todo de redundâncias. A nosso ver não estamos perante uma paráfrase adequada, pois mesmo o acrescento que Quine faz a esta paráfrase para mostrar que o predicado 'A' pode muito bem garantir univocidade (característica por excelência dos nomes) deixa algo a desejar. Vamos introduzir esta sob forma de nota, pois não nos parece muito importante (6).

Quine não quer desenvolver uma teoria referencial de nomes, como o notou entre outros Kripke (7). Trata-se apenas de uma reforma da linguagem, que nos traz determinadas vantagens, nomeadamente o facto de se tornar mais fácil o discurso sobre essa linguagem, e de ser mais fácil determinar os valores de verdade das orações. Esta austeridade faz apenas sentir-se na linguagem objectual, pois na metalinguagem na qual a linguagem objectual é discutida encontramos entre muitas outras coisas, nomes.

F. Tempo e Acontecimentos

Agora algo acerca da forma como Quine aborda os problemas de tempo e dos acontecimentos. A nossa gramática lógica não tem de responder aos problemas relacionados com o tempo, pois tratamos os verbos como atemporais. Os verbos pertencem, como vimos, à categoria dos predicados, e verbos que expressem a ideia de temporalidade, como por exemplo: ' é anterior a' não são destinguidos dos demais predicados do nosso léxico.

Se entendermos um objecto físico como o conteúdo material quatrodimensional de uma determinada parte do espaço-tempo, então cada objecto físico possui coordenadas espácio-temporais distintas. Se procurarmos aplicar isto aos acontecimentos, deparamos com dificuldades, pois pode dar-se o caso de se encontrarem dois actos contidos num acontecimento espácio-temporal; dois actos podem ser exteriormente idênticos. Se por exemplo Maria abrir a janela da sala para arejar um pouco, e se dentro da sala se encontrar alguém com uma pneumonia tão forte, que uma brisasinha bastaria para por termo à sua vida, então podem distinguir-se dois actos no 'abrir a janela' de Maria: um arejar e um matar.

Se quisermos entender acontecimentos de outro modo e levarmos em conta a intenção de quem age, a motivação do sujeito da acção, então temos de nos ocupar da questão: 'como é que distinguimos os acontecimentos?' Em The Individuation of Events (8), Davidson diz, que dois acontecimentos são idênticos, se e somente se, possuírem as mesmas causas e efeitos. Mais tarde abandona este critério para concordar com o seu professor Quine, que diz, que acontecimentos são idênticos, se e somente se possuírem a mesma localização no espaço e no tempo. Será certamente fácil de reparar, que Quine pode ser caracterizado como alguém extremamente cauteloso no que respeita ao conferir existência aos fenómenos. Como veremos adiante, Quine recusa-se a aceitar crenças e intenções na sua gramática lógica, atitudes preposicionais. Se levássemos em conta a motivação do sujeito da acção, no nosso caso, de Maria, deixaríamos de poder quantificar sobre acontecimentos, e como para Quine 'To be is to be the value of a variable', acontecimentos deixariam de possuir existência. Passemos porém ao último momento do nosso texto, no qual será explicada a recusa Quineana de admitir atitudes preposicionais e modalidades aléticas na sua gramática lógica.

G. Atitudes e Modalidade

Quais então os motivos, que levam Quine a excluir atitudes preposicionais (ou construções doxásticas), e modalidades (construções aléticas) da sua gramática? I.e. expressões como por exemplo 'acha que' para o caso das primeiras, e 'é necessário que' para o caso das segundas. Também conhecidas como atitudes preposicionais, as construções doxásticas possuem a desagradável característica, de as frases em que aparecem, por exemplo 'x acha que p', não poderem constituir funções de verdade nem orações quantificadas. Quine enumera três possíveis maneiras de lidar com estas expressões, mas coerentemente com o que afirma no capítulo primeiro deste livro, conclui, que na verdade, admitir tais construções seria admitir a existência de objectos preposicionais, e isso vai contra o slogan Quineano 'No entity without identity', quer dizer, se quisermos quantificar sobre um objecto, admitir a sua existência, temos de ser capazes de fornecer os critérios de identidade para esse mesmo objecto. Temos de ser capazes de dizer quando é que dois objectos são idênticos entre si. É óbvio, que só muito dificilmente determinaremos as condições de identidade de duas crenças. É difícil dizer, quando é que dois sujeitos possuem a mesma crença. É esta portanto uma das razões que leva Quine a não admitir tais construções na sua gramática lógica.O exemplo de Quine, que ilustra os problemas relativos a atitudes preposicionais é o seguinte:

'Tom acha que x escreveu a Ars Magna'.

A determinação do valor de verdade desta frase é obviamente problemática. Ela é verdadeira relativamente a uma pessoa x, se nos referirmos a ela com um dos seus nomes e falsa por exemplo, se em vez de 'Cícero' usarmos 'Túlio' (Cícero e Túlio são dois nomes da mesma pessoa). Se o sujeito da crença não souber que Cícero = Túlio, a frase assume o valor de verdade v apenas no caso de substituirmos x por Cícero. Isto é uma ameaça à coerência do discurso lógico, pois se o autor da Ars Magna possuir estes dois nomes, o uso tanto de um como do outro deveria ser equivalente em todas as situações possíveis, o que não acontece neste caso. Por isto Quine resolve excluir este tipo de construções do seu discurso lógico. Uma frase aberta deixa de fazer sentido se empregarmos um outro nome (igualmente válido) do indivíduo em questão, e isto desagrada a Quine. O que acontece neste caso é que não existe transparência contextual, estamos perante um contexto opaco, e o problema reside no facto de o sujeito da crença não ter acesso a toda a informação.

Que dizer das modalidades 'é necessário que' e 'é possível que', quer dizer, das construções aléticas? Também as frases em que elas ocorrem não podem fazer parte das funções de verdade e quantificações. Quine diz, em conformidade com a sua simpatia relativa a gramáticas parcimoniosas, que podemos resumir as duas modalidades aléticas a apenas uma, dado ser 'possível', equivalente a 'não necessariamente não'. A sua recusa de admitir tais construções na sua gramática pode ser explicada pelo facto de nos conduzirem a afirmações menos sólidas, pois verdades necessárias podem ser vagas e para além disso conduzem a filosofias essencialistas, que Quine enquanto filósofo do real rejeita por completo. Não desenvolveremos porém esta problemática aqui. Contentemo-nos com o facto de termos tomado conhecimento da posição de Quine e passemos à conclusão onde será ainda dito algo relativo à atitude do filósofo para com as construções aléticas.

H. Conclusão

Uma das preocupações centrais de Quine (não apenas em Philosophy of Logic) é tratar a Filosofia 'side by side' com a ciência. Neste último capítulo sobressai a sua preocupação de excluir discursos vazios da sua filosofia. Quine refere no final deste capítulo, que existem outros meios de atingir os resultados da lógica modal. Possivelmente terá em mente sistemas de axiomas, dentro dos quais podemos necessariamente provar a verdade de uma oração. Quine recusa-se a abandonar o campo da lógica de predicados de primeira ordem, e recorrendo a sistemas de axiomas poderia de facto ter uma verdade necessária sem ter de ir para os campos da lógica modal (que não se fica pela lógica de predicados de primeira ordem).

A nosso ver a sua excessiva preocupação com o carácter objectivo da filosofia limita um pouco as possibilidades da mesma. Por outro lado encontramo-nos perante uma solução genial para determinados problemas não só lógicos, mas também ontológicos. Reconhecendo apenas existência a valores de variáveis, Quine oferece um excelente meio de tratarmos os problemas da ontologia. Se não conseguirmos conferir critérios de identidade para determinado objecto, não lhe conferimos existência. A lógica encontra-se deste modo em estreita relação com a ontologia, e o predicado de verdade, que na altura em que Quine escreveu este livro, se encontrava ameaçado, recupera estatuto e importância. Nos capítulos que se seguem Quine desenvolve a concepção de verdade lógica baseada na gramática (algo exclusivamente linguístico) e verdade, que não partilha este carácter linguístico. Mostra, como recorrendo a determinados meios, podemos lidar com problemas centrais da lógica e da filosofia da linguagem (antinomia de Russell, paradoxo de Greeling). Não constitui porém objectivo nosso, a exposição dessa argumentação. O nosso objectivo resumiu-se apenas a expor alguns aspectos do capítulo 2. desta interessante introdução à filosofia da lógica e portanto damo-lo por atingido.

Notas

1) Quine, Philosophy of Logic, Harvard 1970, p. 11.

2) Ibid., p. 10.

3) Ibid., p. 12.

4) No caso de 'p ou não p', trata-se de uma verdade básica da lógica clássica, que simbolicamente se escreve 'pÚ Ø p' , e que na escolástica recebeu o nome deTertium Non Datur, i.e. ou uma oração é verdadeira ou é falsa, pois a lógica clássica assume apenas estes dois valores de verdade. Isto apenas como curiosidade, pois o que nos interessa aqui é perceber a necessidade manifestada pelo lógico de recorrer à linguagem. Interessa-nos perceber que a verdade para Quine não é um fenómeno linguístico, mas que necessitamos de falar sobre frases precisamente no caso em questão.

5) Predicados surgem no discurso lógico geralmente representados por letras maiúsculas 'F', 'G', 'H' às quais se costuma juntar variáveis 'x', 'y', 'z'. Quine no entanto preserva as expressões originais, pois o seu objectivo é apresentar-nos uma notação que cubra as necessidades do discurso natural. Frequentemente juntam-se às letras maiúsculas que ocupam o lugar de predicados as letras 'a','b', 'c', que não funcionam como variáveis, mas que têm o estatuto de constantes de indivíduos. Não nos deixemos no entanto confundir por esta distinção, pois foi introduzida como mera curiosidade. O significado de variáveis individuais e o estatuto a elas atribuído por Quine, será versado adiante, quando discutirmos a ausência de nomes na sua gramática lógica.

6) O que Quine quer mostrar, é que esta paráfrase não implica uma violação da característica essencial dos nomes: o facto de identificarem, denotarem apenas um indivíduo. Assim podemos estipular por meio de uma nova frase a unicidade de 'A': $ xAx, Ø $ x$ y (AxÙ Ay)Ù Ø (x=y)), donde ficamos a saber, que A é verdadeiro relativamente a um único Objecto. A fórmula lê-se: se existir pelo menos um x, que possua a característica de ser A, então não existe um x e um y tais, que: x possui a característica A e y possui a característica A, não sendo o caso, que x e y sejam idênticos. Quine consegue de facto garantir a unicidade de 'A', mas não deixa de ter recorrer ao nome próprio, ainda que apenas sob a forma de 'a ='. Apesar de 'a' não aparecer nesta expressão, continuamos a fazer uso dele indirectamente. Ele figura entre os valores das variáveis quantificadas.

7) Kripke, S. Naming and Necessity, Boston 1972. Trad Alemã: Ursula Wolf, Name und Notwendigkeit, Frankfurt am Main 1993, p.39.

8) Davidson, Donald, The Individuation of Events, Dodrecht 1969. Trad. Alemã: Kuno Lorenz und Reinold Schmid: Die Individuation von Ereignissen, in: Identität und Individuation, Bd. 2, Stuttgart 1982, p. 152.

Bibliografia

Davidson, Donald, The Individuation of Events, Dodrecht 1969. Trad. Alemã: Kuno Lorenz und Reinold Schmid, Die Individuation von Ereignissen, in: Identität und Individuation, Bd. 2, Stuttgart 1982, p. 152.

Kripke, Saul, Naming and Necessity, Boston 1972. Trad. Alemã: Ursula Wolf, Name und Notwendigkeit, Frankfurt am Main 1993.

Quine, Willard Van Orman Philosophy of Logic, Harvard 1970.

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