Filosofia & Sociologia da Ciência: Uma Introdução

1. A Visão Recebida da Filosofia da Ciência

A chamada "visão recebida" (ou "ortodoxa") da natureza da ciência se formou a partir das diversas tentativas em definir as teorias científicas a partir da lógica. Como se sabe, a lógica simbólica teve um grande desenvolvimento nas primeiras décadas de nosso século, e não tardou para que ela fosse aplicada à descrição geral das teorias científicas.

Trabalhos dos austríacos Moritz Schlick (1918) e Rudolf Carnap (1923) e do inglês N.R. Campbell (1920) lançaram a visão de que uma teoria científica consiste de um sistema lógico (com termos primitivos, postulados, termos derivados e teoremas) que só adquire significado empírico através de regras de correspondência com sentenças observacionais. Carnap e Schlick estabeleceram um influente grupo de discussão, o "Círculo de Viena", que no final da década de 20 desenvolveu vários aspectos dessa visão da ciência, que unia os métodos da lógica com a postura empirista (o conhecimento se funda na observação, e não como querem os racionalistas clássicos, a partir do intelecto) e positivista (enfatizando a demarcação entre ciência e metafísica).

O ponto de partida deste positivismo lógico era o critério de significado das sentenças observacionais ou "protocolares". O significado de uma sentença observacional, segundo o positivismo lógico, são suas "condições de verificação". Ou seja, se uma sentença (como "tem uma mesa na sala vizinha") pode ser verificada (no caso, é só irmos olhar na sala vizinha), então ela tem significado (faz sentido), mesmo que seja falsa. Tal critério é interessante, tendo sido também explorado pelo "operacionalismo" do físico americano Percy Bridgman, mas ele apresenta alguns problemas, que não trataremos aqui. De qualquer maneira, tal critério de significado serviria de demarcação entre questões científicas e questões metafísicas. Estas últimas seriam "sem sentido", já que não há maneira de verificar se uma sentença metafísica é verdadeira ou falsa.

Uma distinção importante é feita entre sentenças observacionais e sentenças teóricas, e boa parte do esforço dos positivistas lógicos foi mostrar como estas se fundam naquelas. Nos anos 30 Carnap aceitou a posição de seu companheiro de círculo, Otto Neurath, segundo a qual as sentenças observacionais não precisam se referir a dados sensoriais, mas sim a objetos físicos, posição esta conhecida como "fisicalismo". No entanto, Carnap encontrou grande dificuldade em reduzir certos conceitos teóricos à base observacional (como os conceitos disposicionais: quebrável, etc.), e em 1936 passou a considerar que hipóteses científicas em geral não podem ser completamente verificadas, mas somente confirmadas até um certo grau (ele viria a formalizar a noção probabilista de grau de confirmação, em 1950).

Uma última característica do positivismo lógico a ser mencionada, desenvolvida após a Segunda Guerra, quando a maioria de seus simpatizantes se transferiram para os E.U.A. (Carnap foi para Chicago), é a concepção de unidade da ciência, no sentido de que todos os ramos da ciência devem compartilhar do mesmo método, podendo ser expressos de maneira fisicalista.

Voltando agora para Viena da década de 30, encontramos um dos críticos mais brilhantes do positivismo lógico, Karl Popper, que mais tarde iria se instalar em Londres e exercer uma enorme influência, ao mesmo tempo que criar inimigos, devido a sua personalidade forte. Sua concepção (em A Lógica da Descoberta Científica, 1935), que pode ser chamada de falseacionismo, enfatizava que na ciência não se deve procurar verificar sentenças básicas, mas sim procurar falseá-las. A ciência não progride por "generalização indutiva", observando fatos e derivando leis e teorias, mas sim pelo método hipotético-dedutivo: parte-se de uma conjectura (uma hipótese obtida de uma maneira qualquer) e de hipóteses auxiliares, deduzem-se suas conseqüências observacionais, e então comparam-se estas conseqüências com observações empíricas. Se houver uma discrepância grande, então a conjectura (ou talvez uma das hipóteses auxiliares, como salientaram Duhem e Quine) é falseada, e a ciência progride. Se não ocorrer falseamento, então diz-se que a conjectura (ou a teoria) foi "corroborada". Popper certamente não é um positivista, mas compartilha com o Círculo de Viena a valorização da lógica.

Outro filósofo da ciência proeminente nos anos 30 foi o alemão Hans Reichenbach, empirista que participava do "Grupo de Berlin" e propalava uma "filosofia científica". Dentre suas variadas contribuições, está a ênfase na probabilidade. Confirmação ou refutação teriam sempre um grau de probabilidade, e o "problema da indução" de Hume seria resolvido pragmaticamente usando a noção de probabilidade. Foi Reichenbach também que cunhou a distinção entre "contexto da justificação", que trata de como a ciência deve ser e que seria assunto da filosofia da ciência, e o "contexto da descoberta", que trataria de como a ciência é na realidade, sendo assunto da história, da sociologia ou da psicologia.

Após permanecer alguns anos na Turquia, durante a Guerra, Reichenbach se instalou em Los Angeles. Na década de 50, então, com a vinda de muitos empiristas para os E.U.A. (incluindo Hempel, Feigl, etc.), consolidou-se a visão recebida em filosofia da ciência. A unidade de análise em ciência é a teoria, que é uma estrutura lingüística expressa pela lógica. A teoria contém termos primitivos que só são definidos implicitamente através de postulados; a partir desses termos definem-se outros termos, e a partir dos postulados derivam-se teoremas. Este "cálculo puro" paira acima do mundo empírico, e seus termos só adquirem significado empírico através de "regras de correspondência", que ligam a linguagem teórica à linguagem observacional. A observação é considerada como sendo independente da teoria. Teorias progridem de acordo com critérios racionais: confirmação, falseamento, simplicidade, probabilidade. A filosofia da ciência era antes de tudonormativa (como a ciência deve ser), sendo pouco relevante a descrição de como a ciência de fato era feita.

2. A Sociologia da Ciência Funcionalista

Paralelamente à ascensão da "lógica da ciência" na década de 30 (Carnap, Reichenbach, Popper, etc.), o sociólogo norte-americano Robert Merton publicava em 1938 um importante trabalho de história da ciência, o livro Ciência, Tecnologia e Sociedade na Inglaterra do Século 17, que analisava a institucionalização da ciência neste período e o papel da ética puritana. Ele percebeu que certas normas de conduta puritanas favoreciam a produção científica, tanto que grande parte dos cientistas ingleses na época eram desta religião.

Esta descoberta levou Merton a concluir que na ciência em geral um certo conjunto de normas éticas se tornaram institucionalizadas para favorecer a produção de "conhecimento certificado". Em um artigo de 1942, Merton apontou quatro normas:

i) "universalismo", a aceitação ou rejeição de enunciados científicos não deve depender das circunstâncias pessoais ou sociais do cientista;

ii) "comunalidade", os avanços científicos são produtos de colaboração social e assim devem ser acessíveis a toda comunidade;

iii) "desinteresse", a atividade do cientista não deve visar ao interesse próprio, como acontece excepcionalmente em casos de fraude;

iv) "ceticismo organizado", o cientista deve suspender temporariamente suas opiniões e juízos de valores, e duvidar de tudo.

Outras normas tem sido adicionadas à lista: originalidade, humildade, independência, neutralidade emocional, imparcialidade. Para explicar o freqüente desvio destas normas praticados por cientistas, Merton sugeriu mais recentemente (1973) que existiria um conjunto de "contra-normas" que se contrabalançaria ao conjunto de normas. Estudando de um ponto de vista psicológico o discurso dos cientistas envolvidos no Projeto Apollo, que levou o homem à lua, Ian Mitroff (1984) mostrou que de fato ambos os conjuntos são usados por cientistas em seu discurso, o que de certa forma mina a intenção original de Merton.

O funcionalismo adotado por Merton tende a enfocar o institucional e não o psicológico. Não importam as motivações reais dos cientistas, importa como as instituições canalizam as várias motivações do cientista. A tradição mertoniana, concentrada na Universidade de Columbia em Nova Iorque, explorou entre as décadas de 50 e 70 como a comunidade acadêmica opera um sistema institucionalizado que é simultaneamente um sistema de comunicação, de recompensa e de alocação de verbas.

Consideremos um exemplo da descrição funcionalista em sociologia da ciência. O sistema da ciência acadêmica repousa no julgamento de assessorias. Se um trabalho for aceito para publicação e se ele for citado, o cientista recebe a recompensa do "reconhecimento". Cientistas que recebem os prêmios máximos tendem a formar uma elite, recebendo ainda mais recursos, e passando a decidir sobre a própria alocação de verbas (o chamado "efeito Mateus", quando os cientistas de prestígio tendem a receber todo o mérito em trabalhos conjuntos com outros cientistas, ou no caso de descobertas simultâneas), gerando uma estratificação da comunidade acadêmica. Etc...

Um ponto importante a ser salientado é que a sociologia funcionalista se enquadra perfeitamente na tradição lógica da filosofia da ciência (a visão recebida). Essa velha sociologia da ciência não se ocupa com qualquer influência do meio social no conteúdo da ciência, mas apenas com as condições sociais que moldam a organização da ciência. Assim, ela não questiona se a visão recebida das teorias é sustentável ou não. A distinção entre contextos de justificação e descoberta não é violada por esta sociologia (como ela não explora os aspectos cognitivos da produção de conhecimento, não se pode dizer que ela estude o contexto da descoberta, apesar dela fazer uso de estudos empíricos para observar como a instituição cientifica se organiza).

3. A "Nova" Filosofia da Ciência

A distância existente entre o ideal lógico de ciência da visão recebida e a prática concreta da ciência levou no final da década de 50 ao surgimento de uma onda de críticas que viriam constituir uma "nova" filosofia da ciência, ou teorias globalistas da ciência, que não se concentravam apenas nos aspectos lógicos da ciência. Os antecedentes desta abordagem (pelo menos em nosso século) remontam ao filósofo da ciência francês Gaston Bachelard (O Novo Espírito Científico, 1934), e na década de 50 incluem autores como Michael Polanyi, Willard Quine, Paul Feyerabend, Norwood Hanson e Stephen Toulmin. No entanto, a obra que obteve a maior repercussão foi A Estrutura das Revoluções Científicas (1962) do historiador da ciência Thomas Kuhn.

Os principais pontos salientados pelos globalistas em oposição à visão recebida foram:

a) A distinção entre linguagem observacional e linguagem teórica deixou de ser clara. Uma das razões para isso é que qualquer observação é impregnada pela teoria do observador (Hanson), que interpreta sua percepção com base em uma teoria. Além disso, uma observação feita com um instrumento só pode ser corretamente interpretada conhecendo-se a teoria do funcionamento do instrumento.

b) A transição de uma teoria para outra não é mais vista como uma ampliação cumulativa de conhecimento, mas como uma ruptura (Bachelard). Mesmo os conceitos denominados pelo mesmo nome mudam de significado de uma teoria para outra, quando ocorre esta ruptura. Nesse sentido, essas teoria seriam "incomensuráveis".

c) Os méritos de uma teoria não se restringem meramente às suas conseqüências observacionais, avaliadas por procedimentos lógicos de confirmação ou falseamento. O contexto social e histórico tornam-se relevantes para entender porque uma teoria é preferida em relação a outra, inclusive porque os dados observacionais podem ser igualmente confirmados por duas ou mais teorias, o que é chamado de "sub-determinação das teorias pelos dados".

d) A distinção entre contexto da justificação e contexto da descoberta é apagada. Os detalhes de como um avanço científico foi obtido é relevante para a filosofia da ciência.

e) Rejeita-se o "fundacionalismo" do empirismo lógico, ou seja, a idéia de que uma teoria científica se assenta em bases sólidas fornecidas por "dados observacionais" ou "sentenças protocolares".

f) Deixa-se de valorizar a observação, passando-se a enfocar a teoria. Mesmo assim, tanto a visão recebida quanto os globalistas desprezam a prática experimental.

Todos essas novidades se encontram na obra de Kuhn, que salienta que a transição entre teorias se dá através de "revoluções", e que entre estes períodos de transição tem-se uma "ciência normal". Durante os períodos de ciência normal, uma comunidade científica trabalha dentro de um "paradigma", que fornece uma visão de mundo e um conjunto de problemas ("charadas") a serem resolvidas. Uma revolução começa quando uma teoria entra em "crise", devido ao surgimento de em um mar de "anomalias" ou problemas não resolvidos. O aparecimento de um novo paradigma que resolva as anomalias leva a uma rejeição completa do paradigma anterior. Muitas vezes, membros da comunidade educados dentro do paradigma anterior nunca aceitam por completo a nova teoria, mas com o passar do tempo e com a morte destes membros, o paradigma anterior deixa de ter defensores.

O termo "paradigma", central na concepção de Kuhn, é usada em duas acepções. De maneira mais geral, um paradigma é toda a constelação de crenças, valores, problemas, imagens, metas, etc. que é compartilhada por membros de uma dada comunidade. De uma maneira mais restrita, um "exemplo paradigmático" é um modelo que exemplifica as regras e critérios explícitos que guiam a atividade de resolução de charadas da ciência normal.

Para Kuhn, uma teoria científica é melhor não porque ela é uma representação mais fiel do mundo, mas porque ela é um instrumento melhor para formular e resolver charadas.

Vários outros autores apresentaram "metateorias" (teorias sobre teorias) globalistas que diferiam em alguns pontos em relação a Kuhn. Talvez a metateoria mais interessante seja a do húngaro Imre Lakatos, radicado em Londres, que uniu uma versão sofisticada do falseacionismo de Popper com idéias de Kuhn.

Uma primeira novidade em Lakatos foi tomar como unidade de análise não uma teoria científica, mas um programa de pesquisa, que consiste numa tradição de teorias que possuem um "núcleo duro" em comum. No falseacionismo ingênuo, uma conjectura (somada a hipóteses auxiliares) que levasse a uma conseqüência observacional falseada deveria ser rejeitada. No entanto, a conjectura poderia ser salva se alguma das hipóteses auxiliares fosse rejeitada. Analogamente, se um programa de pesquisa gera previsões erradas, então pode-se ajustar o "cinto protetor" de teses auxiliares do programa, e assim conservar o núcleo duro do programa.

Diversos programas de pesquisa diferentes podem existir ao mesmo tempo, sem que uma revolução determine a passagem completa de um programa para outro. Segundo Lakatos, o que determina que um programa seja "progressivo" e conte com a participação da maior parte dos cientistas é sua capacidade de fazer previsões novas. Se isto não ocorrer, o programa fica "degenerado", podendo ser suplantado por um outro programa progressivo, mesmo que este outro programa num dado momento não seja capaz de explicar mais fatos do que o primeiro programa. O fato de ele fazer novas previsões, e destas previsões serem de fato verificadas, faz com que a maioria dos cientistas adiram a ele.

A teoria da dinâmica científica do norte-americano Larry Laudan é próxima à de Lakatos, sendo que ele usa a expressão "tradição de pesquisa" ao invés de "programa de pesquisa". Uma diferença é que para Laudan a ciência é antes de tudo uma atividade de resolução de problemas (ponto também salientado por Kuhn). A ciência progride quando as teorias sucessivas resolvem mais problemas, problemas estes que não são apenas empíricos, mas também conceituais e até metafísicos.

Outro clássico da "nova" filosofia da ciência das décadas de 60-70 foi a abordagem de Paul Feyerabend, em seu livro Contra Método(1975). Se Kuhn usou uma analogia política ao descrever "revoluções" científicas, Feyerabend usou tal analogia para caracterizar a ciência como "anarquia". A ciência não seria um empreendimento racional, mas dependeria de fatores não-racionais como a persuasão, a retórica, a criatividade do cientista individual, etc. O progresso só é possível porque a seguinte máxima é valida: "Tudo vale!" A pluralidade de diferentes teorias e abordagens é essencial para o sucesso da ciência. Em mudanças de teorias, Feyerabend também estuda a alteração de significado tanto dos termos teóricos quanto dos termos observacionais.

O panorama da filosofia da ciência na década de 80 se caracteriza por uma pluralidade de abordagens, enraizadas tanto nos globalistas quanto na visão recebida. A Escola de Pittsburgh preserva a tradição lógica da visão recebida, sem ignorar a ênfase em historia da ciência dos globalistas. Um exemplo deste tipo de trabalho é a teoria da confirmação científica, marcada pelo trabalho de Carl Hempel (1945), que foi revitalizada com o estudo da confirmação probabilista (W. Salmon, 1967), e com a teoria confirmação "circular" de Clark Glymour (1980), entre outros. Uma abordagem lógica alternativa à visão recebida é a chamada "visão semântica" das teorias científicas (iniciada com o lógico P. Suppes, e hoje em dia muito popular na Alemanha). A discussão sobre o "realismo científico" foi revitalizada com os trabalhos anti-realistas de Bas van Fraassen (1980) e outros.

Um fenômeno que se intensificou na década de 80 foi a restrição dos estudos de filosofia da ciência a campos específicos da ciência, como a física ou a biologia. Na filosofia das ciências sociais, por exemplo, uma discussão importante é em que sentido as ciências sociais são mesmo uma ciência. Uma introdução a esta questão pode ser encontrada no artigo de Merrilee Salmon citado na bibliografia.

Dentre as correntes que levaram adiante o programa de pesquisa globalista, duas merecem destaque. A primeira é a visão da ciência enquanto prática, a ênfase na parte experimental da ciência (Ian Hacking, 1983, etc.), em oposição à ênfase na teoria, compartilhada pela visão recebida e pelos globalistas. Argumenta-se nesta linha que a prática científica pode possuir uma dinâmica própria, independente da necessidade de testar teorias. Uma segunda corrente tem sido chamada de "epistemologia evolucionária", e procura entender a dinâmica científica a partir da teoria da evolução em biologia (D.T. Campbell, 1960; D. Hull, 1988). Grupos de pesquisa seriam análogos às espécies, e as idéias científicas funcionariam como traços genéticos, passando por um processo de seleção ao serem compartilhados por outros grupos de pesquisa. Teses semelhantes já foram sugeridas por Popper e por Kuhn.

4. As "Novas" Sociologias da Ciência

A área da sociologia do conhecimento, desenvolvida por marxistas como Karl Mannheim (1929), investiga em que sentido e até que ponto pode-se dizer que o conhecimento está enraizado no social. Esta área tradicionalmente investigou as fontes de erro e o papel da ideologia na produção do conheci­mento, ignorando o "conhecimento válido". Paralelamente, a crítica aos fins da ciência tem sido bastante enfocada pelos filósofos da tradição da Escola de Frankfurt, representada hoje em dia por Jürgen Habermas e Karl-Otto Apel.

A nova sociologia da ciência tende a seguir a tradição da sociologia do conhecimento, mas passou a enfocar também a produção de conhecimento consi­derado "válido", sem fazer necessariamente uma crítica pejorativa à ciência. As diversas abordagens metodológicas que configuram a nova sociologia da ciência podem ser caracterizadas por três pontos:

I) Inclusão do conteúdo técnico da ciência dentro do escopo da análise sociológica. A sociologia funcionalista não se preocupava com o conteúdo da ciência, que seria determinado exclusivamente pela realidade estudada (tese esta que era compartilhada pela visão recebida da filosofia da ciência). Esta velha sociologia da ciência se limitava a estudar como o conhecimento é comunicado, como o reconhecimento é atingido, etc. A nova sociologia rompe a distinção entre o social e o científico.

II) Valorização de uma metodologia internalista, que se concentra nas práticas internas da ciência. Isso leva a estudos "microscópicos" da prática científica, uma ênfase na descrição antes da explicação, e à análise de como o conteúdo da ciência é "construído". Esse internalismo, porém, não elimina a preocupação com os aspectos "externalistas" (influência do social).

III) Virada lingüística: uma valorização do estudo das "ações lingüísticas" na ciência. Isso inclui uma abordagem semiótica das "inscrições literárias" em um laboratório, uma análise das negociações de significados em conversas científicas, estratégias de persuasão, ou uma análise exclusiva do discurso (ignorando ações e crenças).

De um ponto de vista filosófico, pelo menos dois pontos destacados pela filosofia da ciência "globalista" fundamentam essa nova sociologia. O primeiro ponto é a dissolução da distinção entre linguagem teórica e linguagem observacional, decorrente do fato da observação ser impregnada de teoria. Isso sugere que as próprias observações são construídas pelo cientista, podendo depender do contexto social. O segundo ponto é a "subdeterminação" das teorias pelos dados empíricos: várias teorias diferentes podem explicar qualquer conjunto de observações, então o que determina a escolha entre as possíveis teorias pode incluir fatos circunstancias, externos ao conteúdo da ciência. Estes dois pontos abrem espaço para a negociação do consenso, a construção dos significados das teorias.

O primeiro trabalho que pode ser enquadrado nesta "nova" sociologia da ciência foi um trabalho realizado em 1935 pelo alemão Ludwick Fleck, e apenas redescoberto nas décadas de 60-70, sendo que um dos primeiros a ser influenciado por sua obra foi Kuhn. Em seu livroGênese e Desenvolvimento de um Fato Científico, Fleck considerou a emergência e aceitação de um conjunto de doutrinas científicas e técnicas na área médica.

Nos anos 60, aliado à sociologia funcionalista de Merton e de seus seguidores, Derek Price e outros estudiosos da ciência e tecnologia desenvolveram a "cienciometria", que estuda a instituição científica através de estatísticas numéricas obtidas por exemplo do "Índice de Citação Científica" (uma lista imensa, editada mensalmente, com todos os cientistas citados em trabalhos publicados no mês).

Fora da tradição mertoniana, alguns outros autores anteciparam questões debatidas pela nova sociologia da ciência. Warren Hagstrom (1965), na Cali­fórnia, enfocou aspectos psicológicos da interação entre cientistas, colocando como o princípio organizador da ciência o oferecimento de "presentes" (por exemplo: um artigo submetido a uma revista é um presente, já que não se recebe dinheiro em troca). Pierre Bourdieu (1975), na França, estudou a ciência enquanto um sistema econômico capitalista, com trocas que envolvem antes de tudo um "capital simbólico", e com cientistas querendo maximizar este capital.

O ponto de partida da nova sociologia da ciência (em torno de 1971) foi a retomada da discussão sobre a sociologia do conhecimento (Mannheim, etc.) à luz dos resultados da história da ciência e da filosofia "globalista" da ciência (Kuhn, etc.). Já apresentamos as principais teses desta nova sociologia; a seguir destacamos algumas de suas principais abordagens metodológicas:

1) Programa Relativista e o Estudo de Controvérsias (Escola de Bath, Inglaterra; H.M. Collins, T. Pinch, talvez A. Pickering) O "relativismo epistêmico" afirma que todas as formas de conhecimento estão enraizadas em um meio social e cultural, e assim o que conta como "verdade" depende do lugar e da época considerados. Ao contrário da definição dos filósofos, o "conheci­mento" não seria uma "crença verdadeira justificada", mas o que a comunidade de pessoas informadas considera de maneira consensual que o seja. A tese relativista é comum a todas as abordagens da nova sociologia da ciência, mas o programa de Collins elabora um método para se realizar pesquisas sociológicas empíricas. Parte-se do estudo de uma controvérsia científica, examina-se o quão flexível é a interpretação das experiências dos cientistas, como que é decidido que os debates sobre a controvérsia devem terminar e como a verdade é negociada.

2) Programa Forte e a Teoria do Interesse (Escola de Edinburgo, Escócia; D. Bloor, B. Barnes) O programa "forte" é uma posição radical dentro da sociologia da ciência que leva o relativismo até para os teoremas da matemática pura. David Bloor inicialmente se concentrou na noção de "causação social", derivada de Mannheim, de maneira que a cognição humana sempre refletiria a ordem social. Não se poderia separar a natureza da sociedade, e os fatos seriam "produzidos socialmente". Mais tarde Bloor se interessou pelos "jogos de linguagem" do filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein, desenvolvendo a noção de "linguagem social". Barry Barnes usou a noção de interesse como princípio explicativo no estudo da ciência. Não seria a natureza que restringe nossas crenças sobre a natureza, mas o interesse de grupos em competição.

3) Programa Fraco e a Meta-Análise (S. Restivo, D. Chubin) Esta abordagem procura unir pontos favoráveis de diversas escolas, como o programa forte, os estudos etnográficos no laboratório, e a cienciometria. A "meta-análise" é uma tentativa de aplicar os resultados relativistas para o próprio programa. Isso leva ao reconhecimento que o próprio programa fraco não pode pretender alcançar verdades finais sobre a ciência. Alia-se assim ao ponto de vista da "epistemologia evolucionária".

4) Etnografia e o Construtivismo Social (Antropologia da Ciência I; Karin Knorr-Cetina, Bruno Latour) A tese de que a ciência é "construída" pelos homens, e não dada pela natureza, tem levado a estudos nos quais os cientistas sociais vão ao laboratório de outro cientista observar como o conhecimento é construído. Aqui a descrição é mais importante do que a explicação, ao contrário dos casos anteriores. Dentre as teses construti­vistas apresentadas por Knorr-Cetina estão: i) A realidade é um artefato com o qual o cientista opera; ii) Operações cientificas estão impregnadas de decisões; iii) Seleção dos tópicos de pesquisa depende do contexto.

5) Etnometodologia (Antropologia da Ciência II; M. Lynch, H. Garfinkel, S. Woolgar) Tal abordagem estuda de maneira detalhada as práticas que compõem a produção de fatos sociais ordinários, enfatizando como essas práticas se ordenam (por exemplo, temporalmente).

Latour & Woolgar escreveram o primeiro clássico da antropologia da ciência contemporânea: Laboratory Life (1979). Nesta obra, os autores examinam os vários tipos de práticas lingüísticas que ocorrem em um labora­tório de pesquisa científica, que além da comunicação oral e da geração de textos escritos envolvem "dispositivos de inscrição". Este último termo se refere a qualquer instrumento que forneça um registro simbólico, que pode ser um número, um gráfico, uma posição de ponteiro em uma escala, etc. O laboratório é o local de "organização da persuasão através da inscrição literária". A realidade (como por exemplo a síntese de uma substância) é construída com ajuda dos dispositivos de inscrição, e todo fato científico é concebido como sendo uma "construção social".

6) Análise de Discurso (M. Mulkay, G.N. Gilbert) O método usual para se investigar as ações e as crenças dos cientistas são o estudo de seus textos e a realização de entrevistas. No entanto, o discurso formal do cientista é feito dentro de um único "contexto interpretativo", que tende a omitir os diferentes níveis de discurso e contextos sociais envolvidos na construção da ciência. Para remediar esta situação é necessário desenvolver técnicas de análise de discurso que revelem as diferentes maneiras em que os cientistas usam a linguagem, conforme o contexto social. É isto que esta abordagem pretende fazer.

7) Administração Social dos Fatos (S. Shapin, S. Schaffer) Em seu estudo histórico sobre a ciência do século 17, estes autores concebem a ciência como um "padrão de atividade" que envolve uma organização dos homens tendo em vista certos fins. Esse padrão de atividade se estende ao contexto social, e assim qualquer abordagem a um problema científico (como a construção de uma bomba de ar, por Boyle) tem uma contrapartida no contexto social (como a construção de uma teoria do Estado, por Hobbes). Ciência e contexto são dois lados da mesma moeda, e são construídos como artefatos "convencionais" (ou seja, poderiam ter sido construídos de maneira diferente, conforme a convenção adotada).

Bibliografia Básica

Barnes, B. & Edge, D.: Science in Context - Readings in the Sociology of Science, The Open Univ. Press, Milton Keynes (Inglaterra), 1982. [Bibl. DPCT-IG]

Feigl, H.: "The 'Orthodox' View of Theories: Remarks in Defense as well as Critique", in Minnesota Studies in the Philosophy of Science IV, 1970, pgs. 3-16. [Bibl. CLE]

Knorr-Cetina, K.D. & Mulkay, M.: Science Observed - Perspectives on the Social Study of Science, Sage Publications, Londres, 1983. [Bibl. DPCT-IG]

McGuire, J.E.: "Scientific Change: Perspectives and Proposals", in Salmon, M.H. et al. (orgs.): Introduction to the Philosophy of Science, Prentice-Hall, Englewood Cliffs (EUA), 1992, pgs. 132-178. [Bibl. CLE]

Merton, R.K.: The Sociology of Science, Univ. of Chicago Press, 1973. [Bibl. IFCH]

Salmon, M.H.: "Philosophy of the Social Sciences", in Salmon, M.H. et al. (orgs.): Introduction to the Philosophy of Science, Prentice-Hall, Englewood Cliffs (EUA), 1992, pgs. 404-425. [Bibl. CLE]

Suppe, F. (org.): The Structure of Scientific Theories, Univ. of Illinois Press, Urbana (EUA), 1974. [Bibls. IFCH, CLE]

Ziman, J.: An Introduction to Science Studies, Cambridge Univ. Press, Cambridge (Inglaterra), 1984. [Bibl. DPCT-IG]

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