FALIBILISMO E CONTINGÊNCIA

É fácil, na morte de um filósofo, pressentir se a sua obra lhe sobrevive ou não. Isso tem a ver não com o coro de elogios e de lamentações que o seu desaparecimento suscita mas com outra coisa bem mais decisiva e discreta, que é o lastro que ele deixou na filosofia e na cultura do seu tempo e que se reconhece nos novos conceitos que inventou e nos novos problemas que formulou.
 

São estes que garantem a relativa imortalidade – «relativa» porque nem ela escapa às vicissitudes do tempo, apenas lhe resiste melhor – de uma obra, ao apontarem para a sua metamorfose numa herança. Há já alguns anos que o pensamento de Karl Popper (1902/1994) se transformou numa tal herança, que resultou do trabalho desenvolvido com enorme energia entre os anos trinta e os anos setenta e que marcou a filosofia contemporânea em duas áreas específicas: a da filosofia da ciência e a da filosofia política.
  

De origem austríaca, Popper foi fortemente influenciado pelo ambiente cultural da Viena das primeiras décadas do século, aí tendo estudado Matemática, Física e Filosofia no momento em que emergia uma corrente filosófica que viria a ter impacto mundial, o neopositivismo. Considerado desde o início a oposição «oficial» a este movimento, Popper travará uma interminável controvérsia com o positivismo, encetada ainda na Áustria com a publicação, em 1934, da sua Lógica da Descoberta e prolongada depois em Inglaterra (onde, a seguir a curto exílio na Nova Zelândia, se instalou a partir de 1945,  ensinando na prestigiada London School of Economics) com a publicação de várias obras, de que se destacam The Open Society and Its Enemies (1945), The Poverty of Historicism (1957), Conjectures and Refutations (1963) e Objective Knowledge (1972).
 

O positivismo foi, talvez, para Popper, mais do que uma filosofia precisa, a matriz dos dogmatismos e das ortodoxias que, em todos os domínios, ele procurou combater. No cerne dessa matriz, Popper descobriu uma concepção secular, a que identifica a ciência como uma actividade estritamente indutiva que, a partir de umas tantas observações e experiências, avança hipóteses e formula leis sobre fenómenos, procedendo depois à sua generalização e verificação. Foi esta concepção que a ingénua espistemologia da Modernidade consagrou como paradigmática no âmbito das ciências naturais e, depois, pretendeu exportar para o conjunto dos saberes e disciplinas.
  

O positivismo de Comte foi, no século XIX, um primeiro – e frustrado – lance desta ambição imperial, que o empirismo lógico do Círculo de Viena voltou, nos anos vinte e trinta do nosso século, a assumir, então através de uma perspectiva que, combinando os clássicos preceitos positivistas com a inspiração do modelo de análise lógica proposto por Russell, deveria permitir não só uma organizada unificação da ciência como a sua blindagem em relação às suas tentações metafísicas. É desta posição que decorrem as famosas distinções entre frases «com» e «sem» sentido, que propiciam um breve, mas intenso, momento de frenesim epistemológico nos anos trinta.
  

Para esta brevidade contribuiu decisivamente Popper, ao recuperar uma esquecida boa ideia de Hume para contestar a imagem da ciência que se encontrava na base das pretensões do positivismo e sustentar que a ciência não é de ordem indutiva mas conjecturale que, por isso, se deve trocar as exigências da verificabilidade pelas da falsificabilidade.

Tal como já fizera David Hume, Popper analisa os fundamentos lógicos do procedimento indutivo concluindo que, por maior que seja o número de observações particulares, não há justificação racional para a sua generalização a todos os casos.       Como diz Popper, mesmo que se tenham observado milhares de cisnes brancos, nada nos autoriza a afirmar que «todos os cisnes são brancos» e bastará uma única observação de um único cisne negro para refutar aquela proposição. As inferências indutivas não conferem ao conhecimento nem necessidade lógica nem validade universal, pelo que, para Popper, a ciência não é mais do que um conhecimento conjectural. Em vez de indução, Popper propõe que se fale em conjecturação e, em vez de verificação, em falsificabilidade.
  

A ideia é que a ciência, como conhecimento em geral, é uma actividade que se caracteriza sobretudo pela ousadia imaginativa das suas hipóteses e que estas se devem sempre formular de modo a exporem-se à experiência, que tanto as pode afastar, falsificando-as, como confirmar, corroborando-as. Deste modo, quanto mais uma hipótese afirmar sobre o mundo (isto é, quanto maior for o seu conteúdo empírico) mais se arrisca a ser falsificada; pelo que, se não o for, os seus poderes heurísticos ficam bastante robustecidos.
  

E a conjugação desta exigência de falsificabilidade com a valorização da actividade de conjecturação permite ainda bloquear a ambição positivista de instituir critérios de sentido que excluam ou marginalizam quaisquer domínios de saber, uma vez que o sentido aparece sempre, para Popper, solidário da problematicidade que germina, sem excepção, por todas as áreas do conhecimento e da acção dos homens.
  

Esta perspectiva contém apreciáveis consequências num domínio geralmente negligenciado pelos filósofos da ciência, o da política. Foi, sem dúvida, a situação política dos anos trinta que impôs a Popper uma particular atenção a este campo, levando-o a reagir, primeiro ao triunfo do nazismo, depois à irradiação do comunismo. Popper identifica nestas formas de totalitarismo uma concepção claustral da sociedade, que teria tido em Platão, Hegel e Marx os seus ideólogos e no historicismo a sua justificação fundamental. Não um historicismo que, na linha, por exemplo, de Manheim, aponte para a compreensão contextual dos acontecimentos, mas um historicismo cientista que sustenta previsões a partir de supostas leis da História, com base no pressuposto de que a História tem um sentido e que ele se encontra no seu próprio progresso.

Popper criticou imenso esta pretensão – na qual via a outra face do que designou por «utopismo» - , sobretudo por ela procurar fazer ciência do que, sendo singular e não recorrente, não pode ser tratado a nível científico. Um exemplo particularmente óbvio dos limites e da «miséria» de um tal historicismo apontou-o Popper (então ao arrepio do «ar dos tempos») no marxismo, salientando o gritante contraste entre o sentido último que o materialismo histórico pretendia evidenciar na História e a linha de acontecimentos que irrompiam na História real.
  

O historicismo cientista contamina a política com dois pressupostos nefastos: o de que a evolução histórica pode ser pensada em termos biológicos e o de que a compreensão dessa evolução se pode fazer em termos indutivistas. São eles que balizam a concepção claustral da sociedade contra a qual Popper tematizou a ideia de uma sociedade aberta. Tomando esta posição de Bergson, mas despojando-a do seu carácter religioso, Popper caracterizou a sociedade fechada por ser mágica (isto é, incapaz de distinguir as leis humanas das naturais) autoritária, estática e tribal, e definiu a sociedade aberta por ser laica (isto é, capaz de distinguir entre o que é e o que não é de ordem convencional ou institucional) crítica, evolutiva e individualista. Mais do que traços factuais, trata-se sobretudo de elementos de dois «tipos-ideais» que permitem configurar não só dois modelos alternativos de sociedade mas também duas orientações bem distintas da acção política.
  

O liberalismo de Popper traduziu-se na aposta sem ambiguidades na superioridade do modelo que a sociedade aberta propõe e que se exibe bem na compreensão que ela viabiliza das patologias totalitárias. Elas decorrem, para Popper – que via nos casos do fascismo e do comunismo exemplos vivos desta tese – , dos conflitos e dos impasses, do desamparo e dos traumas que os complexos processos de diferenciação das sociedades modernas impõem e que suscitam uma intensa nostalgia de uma «totalidade» em que os indivíduos se sintam mais integrados e protegidos.
  

Sobre o fundo de uma concepção evolucionista do conhecimento que situa no vigor da imaginação e na obstinação da crítica o principal traço da racionalidade humana – e, como escreveu um dia, a principal diferença entre a amiba e Einstein - , foi contra os obscuros defeitos desta forma de nostalgia que Popper sempre defendeu a ideia, o projecto, de uma sociedade aberta, que se pode ver como emblema reformista em que procurou sintetizar os seus dois temas mais constantes: o do falibilismo do conhecimento e o da contingência da acção.

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