Dennett e a IA

Sofia Miguens

Dada a sua concepção funcionalista do mental, segundo a qual o facto de um sistema físico ter mente consiste na realização por esse sistema físico de uma determinada organização funcional, Dennett considera que não existe nenhuma diferença essencial entre a inteligência natural e a inteligência artificial. O campo disciplinar da IA pode por isso servir como fonte de vários esclarecimentos em filosofia da mente e as experimentações possíveis em IA via a criação de programas e robôs devem ser consideradas como contribuições importantes para a compreensão das mentes naturais.

Pondo em prática esta convicção, Dennett tem-se servido ao longo da sua obra de exemplos de criações da IA para desafiar e ilustrar pontos na teoria da mente. Fê-lo já com o General Problem Solver de Newell, Simon e Shaw (um programa capaz do tipo de raciocínio heurístico chamado análise meios/fins) nos anos 60, continua hoje a fazê-lo com os robôs móveis autónomos de Rodney Brooks (cf. http://www.ai.mit.edu/people/brooks/brooks.html)e de Maja Mataric ( cf. http://www.ai.mit.edu/people/maja/maja.html ) capazes de comportamentos cognitivos no mundo e mesmo de estratégias de cooperação em grupo, e fá-lo, finalmente, mantendo uma proximidade prática com o campo, através da sua participação como "filósofo residente" no projecto da criação de Cog, o robot humanóide do Laboratório de Inteligência Artificial do MIT, dirigido por Rodney Brooks, (cf. http://www.ai.mit.edu/people/maja/maja.html).

Estes programas e robôs são para Dennett experiências mentais reais ou realizadas, mesmo se são experimentações sobre o "mental-possível" que não simulam ou explicam imediatamente o "mental-natural". São experiências mentais no duplo sentido de partirem da imaginação sobre o que poderia acontecer em determinadas circunstâncias e de serem acerca a mente, e são reais na medida em que conduzem à criação de programas e máquinas, uma vez que a IA é um campo afim da engenharia.

Mas a IA é para Dennett mais do que uma fonte de exemplos e experiências mentais. Dennett entende a IA como uma maneira de fazer filosofia, mesmo se não é isso que estes cientistas pensam que estão a fazer (cf. Dennett, Cog as a Thought Experiment). Essa actividade, fazer filosofia, é entendida por Dennett à maneira de Kant como uma investigação das condições de possibilidade da cognição em geral. Isto quer dizer que a epistemologia pura dos filósofos é para Dennett apenas o caso limite num continuum que envolve também as criações da IA. As questões da filosofia e da IA são identicamente abstractas e gerais e visam a emergência no mundo físico de percepção, acção, inteligência e consciência. A IA partilha ainda com a filosofia o método das experiências mentais. Aliás, segundo Dennett, os métodos da IA são um paraíso para filósofos, precisamente porque todo o campo consiste em experiências mentais. Esta afirmação parace falhar o alvo em relação a um domínio de engenharia, no entanto aquilo que Dennett pretende pôr em relevo é o possível desprendimento da questão do mental em relação ao mental biologicamente baseado actual: este não tem privilégios por princípio, ou só os teria como consequência de um essencialismo acerca das origens que para Dennett é indefensável. Os fenómenos mentais biologicamente baseados e actuais situam-se por isso conjuntamente com outras formas possiveis de mentes num mesmo espaço do design.

Mas estas experiências mentais da IA têm uma vantagem em relação às da filosofia pura: como são experiências mentais controladas via "próteses" (os computadores) as hipóteses podem ser refutadas em concreto, no sentido próprio daquilo que acontece numa experimentação, enquanto que nas experiências mentais dos filósofos nada pode nunca correr mal, pois não existindo o constrangimento que representa o facto de se ter que construir o modelo que se imagina, não há lugar para as surpresas com que se aprende. A Inteligência Artificial e Vida Artificial têm, na sua maneira de colocar a questão de Kant, uma vantagem não apenas em relação à filosofia pura mas também em relação às investigações cognitivas a que Dennett chama "abstémias", por exemplo aquelas que são estritamente neurobiológicas e procedem "neurónio a neurónio". Essa vantagem é a seguinte: é mais facil deduzir competências comportamentais dos mecanismos que se contruiu do que elaborar hipóteses acerca de mecanismos internos de caixas negras cujo comportamento se observou (o que é a posição do cientista "abstémio", por exemplo do neurocientista, por comparação com o teórico da IA).

Este louvor das vantagens da passagem à acção que a tentativa de constituição de uma IA representa por contraposição à investigação de uma inteligência "natural" tem ligações com uma ideia directriz de Dennett quanto à investigação da mente: para Dennett as Ciências Cognitivas enquanto ciências da inteligência "natural" ganharão se se assumirem como uma prática de Engenharia Invertida (reverse engineering).

Segundo Dennett, as ciências cognitivas, enquanto ciências da mente-cérebro, investigam soluções de design biológico, soluções já realizadas e frequentemente imperfeitas, muito distantes da melhor solução possível, inclusive porque partem da necessidade de aproveitar o material pré-existente na evolução biológica, nunca partindo obviamente do zero. Ao sublinhar esta imperfeição e oportunismo das soluções biológicas de design, Dennett pretende combater aquele que considera ser um defeito característico de filósofos e outros cientistas cognitivos, a tendência a considerar que, em relação ao estudo da mente e na exclusão do dualismo, restam a física e a matemática, ocultando a perspectiva teoricamente menos pura da biologia-como-engenharia (e por isso parente da IA...) como chave para o estudo da mente.

A maneira de trabalhar da IA é segundo Dennett - e isto é um louvor - ambiciosa e "saltadora de etapas": é uma abordagem top-down que nos fará avançar mais rapidamente na compreensão da cognição do que as descrições bottom-up, nomeadamente as neurobiológicas.

Por tudo isto, Dennett nunca deixa de recomendar aos filósofos a familiaridade com os problemas de implementação relacionados com os seus problemas mais abstractos acerca da mente. Por exemplo aconselha sempre a familiaridade com o Jogo da Vida de John Horton Conway, baseado na teoria dos autómatos celulares e antecessor das investigações no campo da Vida Artificial, (cf.http://www.%20yahoo.com/Science/Artificial_Life/Conway_s_Game_of_Life/index.html) como uma maneira prática de considerar problemas relevantes para a filosofia da mente como a identidade através do tempo, a causação, os níveis de explicação, (cf. Dennett, Real Patterns,http://www.tufts.ed/as/cogstud/publist.htm) Correlativamente, aos cientistas que trabalham em IA, Dennett recomenda algumas leituras filosóficas (como Hume, Ryle, Wittgenstein, Millikan...) oferecendo a possibilidade de pela consciência histórica serem capazes de discernir as más ideias perenes no tratamento da cognição que certamente os perseguirão.

Como foi dito, a fundamentação da posição de Dennett em relação à IA é o facto de não admitir a possibilidade de uma distinção de essência entre Inteligência "natural" e inteligência não natural. Na medida em que a caracterização dos fenómenos mentais é funcional, a discriminação entre os substractos que os realizam não está justificada. A IA pode não ser natural por não ser resultado da evolução biológica mas, se a definição de mental como funcional é legítima, ela é genuina e pode-nos fazer aprender muito sobre os problemas especificos dos sistemas de representação de conhecimento dos quais a nossa mente/cérebro é um caso particular.

No entanto para alguém como Fodor (cf. Baumgartner e Payr, 1995 Speaking Minds, Interviews with 20 Eminent Cognitive Scientists), esta fascinação de Dennett pela IA como "maneira de investigar a mente" está completamente mal dirigida: segundo Fodor, a ciência da mente deve ser psicologia cognitiva e não IA. A IA é engenharia, construção de máquinas e como tal tem interesse científico por si, mas não é o bom caminho para o estudo da mente. Uma coisa é tentar entender o pensamento, outra é construir máquinas inteligentes: como Fodor diz, também não se faz física simulando o universo. Essa seria uma ideia muito pouco razoável, porque os fenómenos que observamos no mundo são efeitos de complicadíssimas interacções nos mecanismos subjacentes e na prática impossíveis de reconstituir e isto também se aplica à física da cognição. Fodor pensa que fazer ciência é simplificar para compreender e não simular, e assim deve fazer-se também a ciência da mente. Mas Dennett quer andar depressa e a IA parece-lhe o atalho ideal.

O diferendo entre as posições de Fodor e Dennett quanto à IA é recondutível à questão de saber se há ou não casos em que a simulação é replicação. Para quem defende uma teoria funcionalista da natureza de alguma coisa, nomeadamente do mental, é difícil resistir à conclusão de que há casos em que a simulação é replicação.

Além do mais é preciso decidir até que escala uma simulação teria que fazer-se para obter propriedades mentais. No caso de as propriedades mentais serem funcionais e de nível mais elevado do que a estrutura física da matéria que Fodor considera irreprodutível, a sua objecção poderia não ser eficaz.

Bibliografia:


BAUMGARTNER, PAYR, Speaking Minds, Princeton University Press
DENNETT, 1978, Brainstorms, MIT Press
DENNETT, 1998, Brainchildren, Penguin
DENNETT, Real Patterns,
http://www.tufts.ed/as/cogstud/publist.htm
DENNETT, Cog as a Thought Experiment, http://www.tufts.ed/as/cogstud/publist.htm
DENNETT, Things about things, http://www.tufts.ed/as/cogstud/publist.htm
HAUGELAND, 1985, Artificial Inteligence, The Very Idea, MIT Press

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