Acerca da tese Kripkeana do Necessário a posteriori

A tese segundo a qual certas proposições necessárias só podem ser conhecidas empiricamente, argumentada por Kripke (1980; 1993: 162-191), contraria aquilo que foi defendido pela filosofia tradicional. A filosofia tradicional defendeu que se uma proposição é necessária não pode ser conhecida por meios empíricos, que todas as proposições necessárias conhecidas são conhecidas a priori.

Apesar da distinção de domínios das modalidades ser já evidente a partir do uso tradicional dos termos "necessário" e "a priori" aplicados a proposições verdadeiras, a maior parte dos autores da filosofia tradicional defendeu a co-extensionalidade necessidade-aprioridade.

Vou procurar argumentar a favor da plausibilidade da tese kripkeana e, consequentemente, da plausibilidade da sua refutação da tese tradicional. Na medida em que Kant é um explícito representante da tese tradicional, procurarei defender a plausibilidade da refutação Kripkeana da tese Kantiana.

1.

Começo por destacar as teses em conflito e suas possíveis versões.

Tese tradicional (TT): Se p é uma proposição necessária então p é conhecida a priori.
Tese Kripkeana (TK): Para alguns valores de p, p é uma proposição necessária e p só pode ser conhecida empiricamente.

A tese tradicional pode ser interpretada em sentido amplo e em sentido restrito. Em sentido amplo (se p é uma proposição necessária então p é a priori), afirma que é em virtude de uma verdade ser necessária que ela é a priori, que todas as proposições necessárias são a priori. Interpretada em sentido restrito, isto é, restringida a proposições conhecidas (se p é uma proposição necessária e se p é conhecida, então p é conhecida a priori), afirma que todas as verdades necessárias conhecidas são conhecidas a priori, que é por meios a priori que conhecemos proposições necessárias.

A tese tradicional é susceptível de três versões que poderão ser distinguidas, embora Kant, como se verá mais adiante, as pareça confundir:

Versão ( I ): Se p é necessária então sabemos a priori que p
Versão (II): Se p é necessária então sabemos a priori que p é necessariamente verdadeira.
Versão (III): Se p é necessária então sabemos a priori que p é necessária.

A versão (I) afirma que se uma proposição é necessária então conhecemos a priori o valor de verdade dessa proposição, isto é, sabemos a priori que é verdadeira. A versão (II) afirma que se uma proposição é necessária então conhecemos a priori o seu estatuto modal específico, isto é, sabemos a priori que é necessariamente verdadeira. A versão (III) afirma que se uma proposição é necessária então conhecemos a priori o seu estatuto modal geral, isto é, sabemos a priori que é necessária sem atender ao facto de ser ou não verdadeira.

A versão (II), que é a conjugação da versão (I) e (III), é a versão defendida por Kant que parece não distinguir o conhecimento do estatuto modal geral de uma proposição necessária do conhecimento do seu valor de verdade.

Estas versões da tese tradicional poderão ter as suas correspondentes restritas. A versão (III) restrita equivale à versão (II) restrita, porque se p é necessária e se p é conhecida, então saber que p é necessária é saber que p é necessáriamente verdadeira. A versão (II) restrita é a versão defendida por Kant para quem o conhecimento de uma proposição necessária p é o conhecimento de p não só como verdadeira mas como necessariamente verdadeira. Assim, se p é necessária e se p é conhecida, então sabemos a priori que p é necessariamente verdadeira.

(TK) é também susceptível de duas versões, ambas defendidas por Kripke:

Versão fraca (I´): Para alguns valores de p, p é necessária e sabemos só aposteriori que p
Versão forte (II´): Para alguns valores de p, p é necessária e sabemos só a posteriori que p é necessariamente verdadeira.

A versão fraca (I´) afirma que podemos conhecer apenas empiricamente o valor de verdade de certas proposições necessárias contrariando a versão (I) da tese tradicional restrita. A argumentação que está na base da versão fraca (I´), que discutirei mais adiante, mostra que o facto de uma proposição ser necessária nada tem a ver com o facto de ser conhecida ou com o modo de ser conhecida, e que o conhecimento do valor de verdade de uma proposição necessária não é equivalente ao conhecimento do seu estatuto modal geral. A refutação da versão (I) da tese tradicional ampla segue-se imediatamente: certas proposições necessárias, que se sabe serem necessárias, não são conhecidas de facto (os casos de proposições matemáticas indecidíveis); segue-se ainda, contrariando a versão restrita respectiva da tese tradicional, que certas proposições necessárias, que não se sabe serem necessárias, apenas empiricamente podem ser conhecidas (casos exemplificativos da versão fraca da tese kripkeana).

A versão forte (II´) afirma que podemos conhecer apenas empiricamente o estatuto modal específico de proposições necessárias, contrariando a versão (II) restrita da tese tradicional. A argumentação que está na base na versão forte (II´) parte da premissa de que só empiricamente podemos conhecer o valor de verdade de certas proposições necessárias (versão fraca), e da premissa de que conhecemos a priori o seu estatuto modal geral, concluindo que só empiricamente podemos conhecer o seu estatuto modal específico. Assim, refutando a versão (II) da tese tradicional ampla, mostra que certas proposições necessárias não são conhecidas como necessariamente verdadeiras, pois não são conhecidas de todo (nos casos atrás referidos de proposições matemáticas indecidíveis); contrariando a respectiva versão restrita, mostra que certas proposições necessárias apenas empiricamente podem ser conhecidas como tal (nos casos exemplificativos da versão forte). A tese kripkeana não tem uma versão (III´) pois esta equivale à versão forte: se sabemos apenas empiricamente o valor de verdade de certas proposições necessárias e se sabemos a priori que são necessárias então sabemos apenas empiricamente que são necessariamente verdadeiras. Embora Kripke não contrarie a ideia de que o estatuto modal geral de proposições necessárias conhecidas, é conhecido a priori, refuta a ideia de que é em virtude de uma proposição ser necessária que conhecemos a priori o seu estatuto modal geral, refuta a versão (III) da tese tradicional ampla. Na medida em que o facto de uma proposição ser necessária nada tem a ver com o facto de ser conhecida (como necessariamente verdadeira), e na medida em que o conhecimento do valor de verdade de uma proposição necessária não se confunde com o conhecimento do seu estatuto modal geral, podemos conhecer o valor de verdade de proposições necessárias sem que saibamos que são necessárias. Trata-se dos casos que exemplificam a versão fraca da tese kripkeana.

O aspecto preliminar da refutação Kripkeana da tese tradicional consiste em tomar a distinção de domínios das modalidades envolvidas, distinção que é já evidente a partir do uso tradicional das noções, e em mostrar que não é o caso que, por definição, aquela implicação se verifique: o facto de uma proposição ser necessária nada tem conceptualmente a ver com o facto de ser conhecida ou com o modo como é conhecida e, portanto, conceptualmente daí não se segue que seja a priori. A noção de apriori é uma noção epistémica, que caracteriza o modo como uma proposição é conhecida (o de ser conhecida independentemente da experiência), e a noção de necessidade é uma noção alética, que caracteriza o modo de uma proposição ser verdadeira (o de ser verdadeira em todos os mundos possíveis).

Kripke pretende assim evidenciar que a tese tradicional não é uma tese verdadeira por definição, pelo que a implicação que veicula exige argumentos substantivos.

2.

Kant defende explicitamente a tese tradicional, pelo menos no seu sentido restrito, ao declarar que a necessidade é o critério do conhecimento a priori: "se encontramos uma proposição que apenas se possa pensar como necessária estamos em presença de um juízo a priori" (1985: 38). A necessidade é assim vista por Kant como uma condição suficiente da aprioridade.

Trata-se então de saber se a tese Kantiana apresenta argumentos substantivos para defender que a necessidade é uma condição suficiente da aprioridade ou se ela se funda, como parece acontecer, na confusão entre a noção epistemológica e a noção alética de necessidade.

Kant parece simplesmente tomar como garantido e evidente que as proposições gerais da Matemática e da Física são necessariamente verdadeiras, usando o conceito de necessidade para construir o critério da aprioridade. A argumentação de Kant para justificar o carácter a priori das proposições e princípios da Matemática e da Física, é a de que temos de usar estes princípios e proposições para ter experiência, pelo que não os podemos adquirir da experiência. Ora, se este é o único modo de Kant argumentar a favor do carácter necessariamente verdadeiro daquelas proposições e princípios, então poder-se-á afirmar que o filósofo adopta um sentido peculiar de "necessidade" enquanto condição necessária da experiência, isto é, enquanto condição transcendental: alguma coisa é necessária se é verdadeira em todos os mundos de que podemos ter experiência pois é sua condição de possibilidade. Assim, admitindo que certas proposições gerais são conhecidas a priori dado serem imprescindíveis para obter experiência, segue-se que certas proposições são epistemicamente necessárias mas não se segue que sejam metafisicamente necessárias, que aquilo que descrevem não possa ser de outro modo. A argumentação de Kant apenas suporta a ideia de que se o estado de coisas fosse de outro modo nada poderia ser conhecido, o que é completamente diferente de dizer que não poderia ser de outro modo ou que tem necessariamente de ser como é.

Se assim for, se Kant usa a noção de necessidade no sentido transcendental de condição necessária da experiência, e não no seu sentido tradicional, alético, então (TT) apenas defende a trivialidade de que todas as proposições que são indispensáveis para ter experiência não podem provir da experiência, que tudo o que é transcendental é a priori. Neste caso o conflito Kant-Kripke seria meramente terminológico: contrariamente a Kripke, Kant não usaria a noção de necessidade no seu sentido tradicional de modo de uma proposição ser verdadeira. Admitindo não ser legitima esta trivialização de (TT), admitindo que Kant usa a noção de necessidade no seu sentido tradicional, alético, passo a analisar a plausibilidade das duas versões de (TK) e da sua refutação de (TT).

3.

A ideia chave de Kant que é comum aos empiristas e que parece constituir a razão pela qual (TT) é tradicionalmente defendida, é a de que o conhecimento da necessidade não pode provir da experiência. Daqui conclui não só que o conhecimento de proposições necessárias é a priori (tese tradicional restrita), como parece ainda concluir que se uma proposição é necessária então é a priori, que é em virtude de uma proposição ser necessária que ela é a priori (tese tradicional ampla).

Ora, a conclusão de que é em virtude de uma proposição ser necessária que ela é a priori (tese tradicional ampla) não pode ser retirada da premissa de que o conhecimento da necessidade não pode provir da experiência. Não pode ser retirada porque o facto de uma proposição ser necessária não implica que saibamos nem que é necessária nem que é verdadeira. Por outro lado, a conclusão de que o conhecimento de proposições necessárias é a priori (tese tradicional restrita) também não pode ser retirada da premissa de que o conhecimento da necessidade não pode provir da experiência. Não pode ser retirada porque, admitindo que o estatuto modal geral de proposições necessárias não pode ser conhecido por meios empíricos, não se segue que o seu valor de verdade e, consequentemente, o seu estatuto modal específico, não possa ser conhecido empiricamente.

Kant parece não só confundir o estatuto modal e o epistémico de uma proposição ( ao fazer depender o conhecimento e o modo de conhecimento de uma proposição necessária do facto de ela ser necessária), como confunde também o conhecimento do valor de verdade com o conhecimento do estatuto modal geral de uma proposição necessária ( ao identificar o conhecimento de uma verdade necessária com o conhecimento da sua necessidade).

Partindo da delimitação do conhecimento genuíno como conhecimento dos princípios e proposições gerais da Matemática e da Física, Kant parece estabelecer que só temos conhecimento genuíno quando sabemos não só que uma proposição necessária é verdadeira mas que é necessária, isto é, quando conhecemos o estatuto modal específico de uma proposição necessária. Assim sendo, o filósofo reduz a tese tradicional à sua versão (II). Esta redução tem como consequências quer a impossibilidade de se conhecer o valor de verdade de proposições necessárias sem se saber que são necessárias, quer a de saber que são necessárias sem se conhecer o seu valor de verdade. Ora, a tese kripkeana mostra que aquelas situações são possíveis, e, consequentemente, que o conhecimento do valor de verdade de uma proposição necessária se não deve confundir com o conhecimento do seu estatuto modal geral.

4.

A tese tradicional parece ser argumentada desta maneira:

Uma verdade necessária é verdadeira em todos os mundos possíveis e não só no mundo actual; ora, se essa verdade fosse conhecida apenas por meios empíricos, então dependeria de aspectos do mundo actual, pois empiricamente só podemos conhecer factos acerca do mundo actual, e, portanto, não seria uma verdade necessária; logo, o conhecimento de uma verdade necessária não pode depender da contingência do conhecimento limitado ao mundo actual, uma verdade necessária é a priori.

No argumento acima conclui-se que se uma verdade é necessária então é a priori, através de um raciocínio por redução ao absurdo: se uma verdade necessária fosse conhecida por meios empíricos, aquela verdade dependeria da contingência do mundo actual; ora, uma verdade que depende de aspectos do mundo actual não é uma verdade necessária.

Este raciocínio, ao concluir que uma verdade conhecida por meios empíricos não pode ser uma verdade necessária, confunde o estatuto modal de uma proposição necessária com o modo como o seu valor de verdade é conhecido. Ora, o facto do conhecimento do valor de verdade de uma proposição necessária depender de aspectos do mundo actual, ser conhecido empiricamente, não implica que essa verdade não seja necessária : uma coisa é o estatuto modal de uma proposição, neste caso o ser necessária, outra é o seu estatuto epistémico, isto é, o modo como é conhecida.

Ao concluir que o conhecimento de uma verdade necessária não pode depender da contingência do conhecimento limitado ao mundo actual, o argumento confunde ainda o conhecimento do valor de verdade de uma proposição necessária com o conhecimento do seu estatuto modal geral. Ora, não só podemos conhecer o valor de verdade de proposições necessárias sem sabermos que são necessárias, como podemos saber que são necessárias e não sabermos o seu valor de verdade: uma coisa é sabermos que uma proposição é verdadeira e outra é sabermos que é necessária, e só quando temos ambos os conhecimentos é que sabemos que a proposição é necessariamente verdadeira.

Assim, a conclusão de que se uma proposição é necessária então é conhecida a priori (tese tradicional ampla) não só resulta da confusão assinalada entre o estatuto modal e o epistémico de uma proposição, como tem a consequência, imediatamente refutável, de que todas as proposições necessárias são conhecidas. Digo imediatamente refutável porque certas proposições matemáticas, como é o caso da Conjectura de Goldbach, embora sejam necessárias e saibamos a priori que o são, não são conhecidas de todo, isto é, sendo indecidíveis, não se sabe se são verdadeiras ou falsas. Por outro lado, a conclusão de que se uma proposição necessária é conhecida então é conhecida a priori (tese tradicional restrita), também não só resulta da indistinção entre o conhecimento do valor de verdade de uma proposição necessária e o conhecimento do seu estatuto modal geral, como pode ser imediatamente contrariada. Pode ser contrariada porque podemos conhecer só empiricamente não só o valor de verdade de uma proposição necessária (versão fraca de (TK)) como o seu estatuto modal específico (versão forte de (TK)).

Sintetizando, a contestação kripkeana do argumento que parece estar na base da tese tradicional mostra que, do facto de o valor de verdade de uma proposição necessária p só poder ser conhecido empiricamente e, portanto, depender de aspectos do mundo actual, não se segue a impossibilidade de p ser necessária. Não se segue porque a necessidade de uma proposição nada tem a ver com o modo como o seu valor de verdade é conhecido ou se é ou não conhecido, sendo possíveis casos de proposições necessárias cujo valor de verdade só empiricamente pode ser conhecido (versão (I´) de (TK) que contraria a versão correspondente de (TT) restrita), e de proposições necessárias cujo valor de verdade não é conhecido de todo (como a conjectura de Goldbach referida acima, que refuta a versão (I) ampla de (TT)).

Basta a versão fraca da tese kripkeana para refutar o argumento que está na base da tese tradicional: o conhecimento do valor de verdade de proposições necessárias não depende do facto de serem necessárias nem do facto de se saber que são necessárias, pelo que é perfeitamente plausível que só empiricamente possamos saber que certas proposições necessárias são verdadeiras, estando este conhecimento limitado a aspectos do mundo actual, sem sabermos que são necessárias. É claro que a exemplificação da versão fraca da tese kripkeana, embora não exija que a pessoa em questão conheça o estatuto modal geral das proposições necessárias conhecidas apenas empiricamente, exige que alguém estabeleça que essas proposições são de facto necessárias. O cumprimento desta exigência permite a versão forte da tese kripkeana.

Mostrei que a versão (II) da tese tradicional, parece ser a versão adoptada por Kant ao não distinguir a versão (I) e (III). Ora, esta indistinção é imediatamente refutada pela versão fraca da tese Kripkeana que mostra que podemos conhecer o valor de verdade de certas proposições necessárias sem que saibamos que são necessárias.

5.

A versão forte da tese Kripkeana acrescenta argumentos que permitem contrariar a versão (II) da tese tradicional restrita que é, como se viu atrás, a versão adoptada por Kant dada a indistinção da versão (I) e (III).

A premissa central da argumentação de Kripke em defesa da versão forte da sua tese, da existência de verdades necessárias que só empiricamente podem ser conhecidas como tal, é a de que certas proposições que não são matemáticas têm uma característica que é própria das proposições matemáticas, a de que sabemos a priori que se são verdadeiras são necessariamente verdadeiras: "a análise filosófica diz-nos que não podem ser contingentemente verdadeiras, pelo que qualquer conhecimento empírico da sua verdade é automaticamente um conhecimento empírico de que são necessárias" (1980: 159). O argumento pode ser assim expresso:

(1) Sabemos a priori que se p então necessáriamente p / Sabemos por "análise filosófica" que certas proposições verdadeiras são necessariamente verdadeiras
(2) Sabemos só aposteriori que p / Só podemos saber por meios empíricos que aquelas proposições são verdadeiras
(3) Sabemos só a posteriori que necessariamente p /Só empiricamente podemos saber que aquelas proposições são necessáriamente verdadeiras.

A premissa (1) afirma que conhecemos a priori o estatuto modal geral de certas proposições, que sabemos a priori que certas proposições são necessárias nada dizendo acerca do seu real valor de verdade.

A premissa (2) afirma que só empiricamente podemos conhecer o seu valor de verdade , que só empiricamente sabemos que são verdadeiras.

Em (3) conclui-se que só empiricamente podemos conhecer aquelas proposições como necessariamente verdadeiras.

A conclusão (3), a versão forte de (TK), exige aquilo cuja possibilidade já tinha sido demonstrada na versão fraca: que o valor de verdade de certas proposições necessárias só pode ser conhecido por meios empíricos (premissa (2)). Exige ainda que saibamos a priori que essas proposições são necessárias (premissa (1)).

Na maior parte dos casos, nos casos não triviais do Necessário a posteriori, a premissa (1) não pode ser demonstrada fazendo apelo apenas à tese semântica da Designação Rígida, a alguma lógica modal elementar e a certos princípios lógicos incontroversos. É exigido, para a sua demonstração, a admissão do Essencialismo substantivo, isto é, de certos princípios essencialistas não triviais. Utilizarei aqui três exemplificações correspondentes a três tipos de casos kripkeanos do Necessário a posteriori, sendo as duas últimas exemplificações correspondentes a casos não triviais do Necessário a posteriori:

1º- Sabemos a priori, por meio da tese semântica da Designação Rígida, de alguma lógica modal elementar e do princípio lógico da Necessidade da Identidade, que:
Se Véspero (se existe) é idêntico a Fósforo então necessariamente Véspero é idêntico a Fósforo.
Ora, só por meios empíricos podemos saber que:
Véspero é idêntico a Fósforo.
Então só empiricamente podemos saber que:
Necessáriamente Véspero (se existe) é idêntico a Fósforo.

2º- Admitindo a premissa essencialista de que a actual composição química da substância que designamos rigidamente por "água" é uma propriedade essencial da água, uma propriedade que a água possui necessariamente em todos os mundos possíveis em que existe, sabemos a priori que:
Se a água tem a composição química H2O então necessariamente a água tem a composição química H2O.
Ora, só empiricamente sabemos que:
A água tem a composição química H2O
Então só empiricamente sabemos que:
Necessariamente a água tem a composição química H2O.

3º - Admitindo a premissa essencialista de que ter os progenitores que se tem no mundo actual é uma propriedade essencial da pessoa em questão, sabemos a priori que:
Se Édipo é filho de Jocasta necessariamente Édipo é filho de Jocasta.
É apenas empiricamente que sabemos que
Édipo é filho de Jocasta.
Então só empiricamente sabemos que:
Necessáriamente Édipo é filho de Jocasta.

Casulo (1987: 161-169 ) discute os casos do Necessário a posteriori de Kripke que envolvem a admissão de propriedades essenciais não triviais (2º e 3º casos), e considera que a reivindicação de que, admitindo a existência de propriedades essenciais, existem proposições necessárias que são conhecidas apenas a posteriori, é ambigua. A tese-conclusão segundo a qual sabemos só a posteriori que p é necessária (sendo p uma proposição acerca de uma propriedade essencial de um objecto), pode ser interpretada como significando que:

(A) sabe-se a posteriori que p é necessária
(B) sabe-se a posteriori que p é necessariamente verdadeira.


Ora, argumenta Casulo, admitindo a existência de propriedades essenciais, segue-se que o valor de verdade de uma proposição que atribua uma propriedade essencial a um objecto pode ser apenas conhecido a posteriori, mas não se segue que que o seu estatuto modal geral possa apenas ser conhecido a posteriori.

O argumento de Casulo não contraria o de Kripke. A interpretação kripkeana da tese-conclusão não é (A), a de que conhecemos só a posteriori o estatuto modal geral de p, mas sim (B) a de que só a posteriori conhecemos o seu estatuto modal específico. (B) é a versão forte da tese do Necessário a posteriori. A reivindicação de Kripke de que necessariamente p é conhecível apenas a posteriori, é uma reivindicação acerca do estatuto modal específico de uma proposição, baseada no facto de p ser uma proposição acerca de um objecto possuindo uma propriedade essencial, e de o valor de verdade de p ser conhecível apenas a posteriori. Kripke não defende que o estatuto modal geral de proposições acerca de propriedades essenciais de um objecto é a posteriori. Pelo contrário, argumenta que sabemos por análise filosófica, a priori, que se uma frase de identidade ou de atribuições de essência é verdadeira, então é necessariamente verdadeira.

A tese kripkeana defende ser possível conhecer a posteriori o valor de verdade de proposições necessárias (versão fraca), bem como o seu estatuto modal específico (versão forte). No entanto não nega que o reconhecimento do estatuto modal geral de certas proposições, nomeadamente se são necessárias independentemente do facto de se saber se são verdadeiras ou falsas, seja a priori.

De facto todos casos do Necessário a posteriori envolvem uma premissa a priori acerca do estatuto modal geral de uma frase de identidade ou de atribuição de essência, que é uma condicional da forma éP®ÿPù : sabemos só a posteriori que necessariamente Véspero é Fósforo, a partir do nosso conhecimento a priori da premissa "Se Véspero é Fósforo então necessariamente Véspero é Fósforo" (e do conhecimento da premissa a posteriori "Véspero é Fósforo"); sabemos só a posteriori que necessariamente a água é H2O, a partir do nosso conhecimento a priori da premissa "se a água é H2O então necessariamente a água é H2O" (e do conhecimento da premissa a posteriori "Água é H2O"); sabemos só a posteriori que necessariamente Édipo é filho de Jocasta, a partir do nosso conhecimento a priori da premissa "Se Édipo é filho de Jocasta, necessáriamente Édipo é filho de Jocasta" (e do conhecimento da premissa a posteriori"Édipo é filho de Jocasta").

6.

Em reforço da legitimidade da conclusão (3) do argumento (1)-(3), que corresponde à versão forte de (TK), Kripke (1993:180) parece propor um princípio adicional que pode ser assim formulado: se uma verdade é uma consequência lógica de duas verdades e se uma delas é a posteriori, então aquela é a posteriori. Retirado do contexto epistémico, o argumento (1)-(3) é válido, isto é, a conclusão é uma consequência lógica das premissas. Veja-se a seguinte exemplificação do argumento:

(4) Se água é H20 então necessariamente água é H20
(5) Água é H20
(6)\Necessariamente água é H20

Das premissas (4) e (5) segue-se logicamente, por modus ponens, a conclusão (6). A justificação para (6) ser conhecida a posteriori está no facto de uma das premissas nas quais se baseia ser a posteriori. Assim, (4) é a priori: sabemos por "análise filosófica" que se a constituição química actual da água é H20 então a água é H20 em todos os mundos possíveis; (5) é a posteriori dado ser uma descoberta científica; (6) é a posteriori pois é uma consequência lógica de (4) e (5).

É possível encontrar contra-exemplos ao princípio segundo o qual se uma verdade é uma consequência lógica de duas premissas em que uma delas é a posteriori, essa verdade é a posteriori . Nesses contra-exemplos, no entanto, as premissas condicionais são epistemicamente irrelevantes. Veja-se um contra-exemplo cuja condicional tem como consequente o caso típico do contingente a priori de Kripke:

(7) Se a água é H2O então um metro é o comprimento de S em t0
(8) A água é H2O
(9) \Um metro é o comprimento de S em t0

A premissa condicional (7) é a priori pois a sua consequente é a priori. Embora seja epistemicamente não relevante, contrariamente aos casos exemplificativos do Necessário a posteriori dados por Kripke, a conclusão não deixa de ser uma consequência lógica das premissas. A conclusão (9) é a priori embora seja uma consequência lógica de (7) e (8) sendo (8) a posteriori.

O contra-exemplo (e semelhantes) parece-me só poder ser refutado se ao princípio de Kripke se acrescentar a exigência de relevância epistémica. Na medida em que estamos a lidar com contextos epistémicos o carácter epistemicamente irrelevante da premissa condicional tem uma importância capital. Numa condicional epistemicamente irrelevante o conhecimento do valor de verdade da consequente não deriva do conhecimento do valor de verdade da antecedente e, portanto, o modo de conhecer a consequente não deriva do modo de conhecer a antecedente. É a ausência dessa relevância que produz o contra-exemplo: a conclusão (9) é uma verdade a priori porque constitui a consequente não relevante da premissa condicional (7), pelo que mesmo que só a posteriori se possa conhecer a antecedente, a premissa (8), não se segue que só a posteriori se possa conhecer a consequente, a conclusão (9). O modo de conhecer a antecedente da condiconal, a premissa (8), é independente do modo de conhecer a consequente da condicional, a premissa (9) e, sendo esta a priori, pode ser conhecida a priori.

Ora, é porque a premissa condicional, nos casos do Necessário a posteriori, não é epistemicamente irrelevante, que o modo de conhecer a antecedente determina o modo de conhecer a consequente: dado que a premissa condicional (4) estabelece uma relevância epistémica da sua antecedente para a sua consequente, (6) só pode ser conhecida a posteriori porque (5) só pode ser conhecida a posteriori.

Do que ficou dito parece-me poder concluir que o princípio adicional do argumento de Kripke, para poder ser mantido, exige a seguinte reformulação: se uma verdade é consequência lógica e epistemicamente relevante de duas premissas, uma delas a posteriori, essa verdade é a posteriori.

Referências Bibliográficas

  • Casulo, A.(1987). "Kripke on the a priori and the Necessary", in Moser (ed), a priori Knowledge. Oxford: Oxford University Press, 161-169.
  • Kant, E. (1985). Crítica da Razão Pura. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
  • Kripke, S. (1980). Naming and Necessity. Osford: Basil Blackwell.

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