INSTINTO

Um guia natural da conduta animal e humana não é adquirido, não é escolhido e é pouco modificável. O
I. distingue-se da tendência (v.) pelo caráter
biológico, porquanto se destina à conservação
do indivíduo e da espécie e vincula-se a
uma estrutura orgânica.determinada; distingue-
se do impulso por seu caráter estável. Existem
duas concepções fundamentais de I.: Xa
metafísica, segundo a qual o I. é a força que
assegura a concordância entre a conduta animal
e a ordem do mundo; 2- a científica,
segundo a qual o I. é um tipo de disposição
biológica.

A teoria metafísica dos I. foi fundada pelos
estóicos. Para eles, a ordem providencial do
inundo, que todos os seres estão destinados a
manter, dirige a conduta animal por meio do instinto.
Crisipo diz: "O I. primário do animal, por
ser este desde o princípio dirigido pela natureza,
é de cuidar de si mesmo {.Dos fins, Livro I).
Diz também que o que está no mais íntimo de
cada animal é a sua própria constituição e a
consciência dessa constituição. Não é verossímil
que o animal se alheie de si ou que de
algum modo aja de tal forma que se alheie de
si ou não cuide de si mesmo. É preciso, pois,
que a própria natureza o constitua de tal modo
que ele cuide de si, fugindo às coisas nocivas e
perseguindo as favoráveis. Donde se evidencia
como falso o que dizem alguns, de o prazer ser
o I. primário dos animais" (DIÓG. L, VII, 85).
Através do I. a natureza leva o animal a cuidar
de si e a conservar-se, contribuindo para manter
a ordem do todo. Cícero exprimia o concei to estóico nos seguintes termos: "Para conservar-
se, para conservar sua vida e seu corpo,
toda espécie animal evita por natureza tudo o
que parece nocivo, deseja e trata de arranjar
tudo o que é necessário à vida, como alimento,
abrigo e todo o resto. Também é comum a todos
os seres animais o I. sexual com vistas à
procriação e certo cuidado para com suas crias"
(Tusc, I, 4, 11; De/in., III, 7, 23; De off, I, 28,
101). Algumas vezes o direito natural foi equiparado
ao instinto assim entendido, por ser
comum não só aos homens mas também aos
animais. No séc. III, Ulpiano fazia a distinção
entre o direito das gentes, que é só dos homens,
e o direito natural, que "a natureza ensinou
a todos os animais e por isso pertence não
só ao gênero humano, mas é comum a todos
os animais que vivem na terra, no mar e no céu.
Desse direito decorrem o casamento, a procriação
e a educação dos filhos, coisas estas de que
os animais também têm experiência" (Dig., I, 1,
1-4). Essa concepção sempre ligada esteve ao
pressuposto metafísico da existência de uma
ordem providencial cuja manifestação nos animais
e nos homens seria o I. S. Tomás aduzia
como prova dessa tese que a providência se
ocupa também das coisas individuais contingentes,
o I. natural de que os animais são dotados
e que se manifesta nas abelhas e em muitos
outros animais (Contra Gent., III, 75). "Em
nós semeado e infundido pelo princípio da
nossa geração, nasce um rebento, que os gregos
chamavam de homem e que é o apetite
natural do espírito (...). E assim parece que é,
pois todo animal, assim que nasce, seja ele
racional ou bruto, ama-se a si mesmo e teme e
evita as coisas que lhe são contrárias e que ele
detesta" (Conv., IV, 22; cf. Par., 1,112-14). Kant
ainda falava do I. como da "voz de Deus à
qual todos os animais obedecem" e que "na
origem deve ter guiado os primeiros tempos
do homem primitivo" (Mutmasslicher Anfang
der Menschengeschichte, 1786).


Segundo essa concepção, as características
do I. são as seguintes: 1°Ia providencialidade, 2°
infalibilidade, que deriva do caráter anterior e
graças à qual o I. estaria sempre apto a garantir
a vida do animal e a continuação da espécie; 3°
imutabilidade, que deriva das duas características
precedentes e que consiste na imperfectibilidade
do I.; 4° cegueira, no sentido de que o
I. foge ao controle do animal e o guia sem nenhuma
iniciativa direta de sua parte. Algumas
dessas características por vezes foram pressupostas  e mantidas na concepção científica do I.
Contudo, são típicas da concepção metafísica,
sendo caracteres presumidos, deduzidos da
função atribuída ao I. no cosmo, todos em
oposição aos dados da observação. Essas características
também são admitidas e defendidas
habitualmente pelos filósofos que têm uma
concepção provídencialista do mundo biológico,
como p. ex. os espiritualistas. Hegel também
falou de um "I. da razão" (Phánom. des
Geistes, I, cap. V, "A observação da natureza";
trad. it., I, pp. 222, 225, etc), atribuindo a esse
I. as características gerais mencionadas antes.

Também é metafísica a teoria freudiana do
I., especialmente do modo como é formulada
em seus últimos textos. Os instintos são "a última
causa de toda atividade e sua natureza é
conservadora: de cada estado atingido por um
ser surge a tendência a restabelecer esse estado
quando ele foi abandonado."


Os I. podem ser múltiplos, podem mudar de
alvo e uns podem substituir os outros, mas
em última análise é possível reconhecer dois
instintos fundamentais em luta: Eros, ou I.
de vida, e Thanatos, ou I. de destruição
(Abriss der Psychoanalyse, 1940, cap. II). Ver
PSICANÁLISE.

2- As teorias científicas do I. são de duas
espécies: A) explicativas; B) descritivas.
A) Existem três teorias explicativas fundamentais,
que recorrem respectivamente: a) à
ação reflexa; b) ao intelecto; c) ao sentimento
(simpatia).

a) A doutrina que explica o I. recorrendo à
ação reflexa é a mais antiga. Foi defendida por
SPENCER em Princípios de psicologia (1855):
"Enquanto nas formas primitivas da ação reflexa
uma única impressão é seguida por uma
única contração, e enquanto nas formas mais
desenvolvidas da ação reflexa uma única impressão
é seguida por uma combinação de contrações,
nesta, que distinguimos como I., uma combinação
de impressões é seguida por uma
combinação de contrações; e quanto mais superior
for o I., tanto mais complexas serão as
coordenações de direção e de execução" (Princ.
of Psychology, § 194). Essa tese foi substancialmente
aceita por Darwin, que a modificou no
sentido de que o desenvolvimento dos I. seria
devido à seleção natural dos atos reflexos que
constituem os I. mais simples. Darwin diz: "A
maior parte dos I. mais complexos parece ter
sido adquirida mediante a seleção natural das
variações de atos mais simples. Tais variações parecem resultar das mesmas causas desconhecidas
que ocasionam as variações ligeiras
ou as diferenças individuais nas outras partes
do corpo, que agem sobre a organização cerebral
e determinam mudanças que, na nossa
ignorância, consideramos espontâneas" (Descent
ofMan, 1871, I, cap. 3; trad. fr., p. 69). Essa
explicação do I. foi aceita não só por darwinistas
e neodarwinistas, mas também pelos que elaboraram
a teoria dos reflexos condicionados,
que consideraram o I. como um reflexo condicionado
complexo (cf. PAVLOV, OS reflexos condicionados;
trad. it., p. 273). O defeito dessa
teoria é que as variações casuais dificilmente
poderiam explicar a formação de I. tão aperfeiçoados
e complexos como os dos insetos.


b) A segunda teoria explicativa tem em vista
justamente a formação desses I. mais complexos
e considera o I. como inteligência degradada
ou mecanizada. Essa doutrina, apresentada
por Romanes {Mental Evolution in Animais,
1883), foi amplamente aceita pela psicologia do
fim do século passado. Eqüivale a ver o I. como
um hábito que se formou e se aprefeiçoou através
do desenvolvimento de uma espécie animal.
Wundt, especialmente, contribuiu para a
difusão dessa doutrina. Diz: "Os I. são movimentos
oriundos de atos de vontade simples ou
compostos que depois, durante a vida individual
ou ao longo de um desenvolvimento geral,
acabam mecanizados no todo ou em parte"
(Grundzüge derphysiologischen Psych., 4a ed.,
1893, II, pp. 510 ss.; cf. System derPhil., 2a ed.,
1897, p. 590). Essa concepção algumas vezes
foi utilizada pelos filósofos, com vistas a uma
metafísica espiritualista (cf., p. ex., RENOUVIER,
Nouvelle monadologie, 1899, p. 83), mas contra
ela existe o fato bem verificado de que os
hábitos adquiridos não são transmissíveis por
herança (v. HEREDITARIEDADE), constatando-se
ademais que, para explicar a formação de I.
aperfeiçoados, não basta a hereditariedade da
disposição para contrair hábitos mais facilmente,
que parece provada em alguns casos (Mac-
Dougall).

c) A terceira teoria explicativa é a que relaciona
o I. com os sentimentos, em particular
com a simpatia. "I. é simpatia", diz Bergson.
"Nos fenômenos do sentimento, nas simpatias
e antipatias irrefletidas, sentimos em nós mesmos,
de forma bem mais vaga e ainda demasiado
penetrada de inteligência, algo do que deve
acontecer na consciência de um inseto que age
por instinto. Para desenvolvê-los em profundidade,
a evolução distanciou elementos que na
origem se interpenetravam" (Évol. créatr, 1911,
8° ed., pp. 190-9D- A evolução vital distanciou
a inteligência do I., especializando o I. na tarefa
de utilizar ou mesmo de construir instrumentos
organizados, e a inteligência, na de fabricar
e utilizar instrumentos inorganizados (Jbid.,
p. 152). Segundo Bergson, a especialização do
I. depende do fato de o I. ser utilização de um
instrumento determinado para um fim determinado:
de um instrumento que, além do mais,
é de enorme complexidade de detalhes, embora
de funcionamento simplíssimo. Os instrumentos
fabricados pela inteligência, ao contrário,
são muito menos perfeitos, mas podem
mudar continuamente de forma e adaptar-se às
novas circunstâncias. Isso explica também por
que o I. não é consciente ou o é minimamente:
a consciência mede a distância entre a representação
e a ação (entre as diversas possibilidades
de agir e a ação efetiva); no I. essa distância
é mínima porque é mínima a parte passível
de escolha (Ibid., p. 157). Scheler, fazendo referência
a essa doutrina de Bergson, como capaz
de explicar os I. mais complicados (p. ex.,
o dos himenópteros, que paralisam, mas não
matam escaravelhos ou aranhas para pôr seus
ovos, cf. FABRE, Souvenirs entomologiques, I, 3S
ed., 1894, pp. 93 ss.), declara considerar provável
que "nos atos instintivos dessa espécie, que
nos põem em presença de uma concatenaçào
finalista, lógica, das fases de atividade de muitos
seres, estejamos apenas diante de um exagero
anormal daquilo que é a verdadeira fusão
afetiva na esfera da atividade humana" (Sympathie,
cap. I; trad. fr., p. 50). Essa é uma
aceitação substancial do ponto de vista de
Bergson, mas corrigindo aquilo que Bergson
chama de simpatia para fusão afetiva (quanto
à diferença entre as duas, v. SIMPATIA). A
doutrina de Bergson foi amplamente aceita
pelos filósofos, mas encontrou pouca acolhida
junto aos fisiologistas e psicólogos. Continua
sendo uma das alternativas possíveis
para uma explicação do instinto. Este, com
efeito, pode ser relacionado com qualquer uma
das duas atividades que supostamente dirigirem
a conduta humana: a inteligência e o sentimento.
A interpretação (b) procura vincular
o I. à inteligência; a interpretação (c), ao
sentimento.

B) Na psicologia contemporânea, a influência
do gestaltismo, em sua concepção de abandono
definitivo da teoria dos reflexos que tendia a resolver o I. em atividades elementares
(as ações reflexas), favoreceu também o abandono
de qualquer teoria explicativa e o recurso
a teorias descritivas, fundadas em ampla base
de observações. Desse ponto de vista, a descrição
do I. mais comumente adotada é a de G. E.
Müller, que modificou oportunamente uma definição
de MacDougall: "O I. é uma disposição
psicofísica, dependente da hereditariedade,
muitas vezes completamente formada logo depois
do nascimento, outras vezes só depois de
certo período de desenvolvimento, que orienta
o animal a dar atenção especial a objetos de
certa espécie ou de certo modo, e a sentir,
depois de perceber esses objetos, um impulso
para determinada atividade, em conexão com
eles" (cf. D. KATZ, Mensch und Tier, 1948;
trad. in., p. 1 71). Definições desse tipo tornam
inútil até mesmo o nome I., que, de
fato, alguns psicólogos tendem a substituir por
outros termos, menos comprometidos pelo uso
secular (propensão, tendência). Às vezes, insiste-
se no caráter totalitário da disposição instintiva,
considerando-a como um "esquema unitário"
que cresce e diminui como um todo (cf. R.
B. CATTFXL, Personality, Nova York, 1950, p.
195). A etologia comparada distingue no I.
aquilo que Konrad Lorenz chamou de mecanismo
desencadeante, conjunto de condições
que servem de estímulo para a conduta instintiva,
e o ato consumador, constituído por um
esquema ou plano de movimentos, hierarquicamente
organizado, que é o comportamento
instintivo propriamente dito. Essa organização
hierárquica do comportamento instintivo tornase
menos flexível à medida que nos aproximamos
da conduta em ato. Para Tinbergen, essa
flexibilidade depende das mudanças no mundo
externo {TheStudy oflnstinct, 1951, p. 110).
Para Lorenz, o desencadeamento da conduta
instintiva também pode ser provocado por um
acúmulo de energia endógena (de natureza
predominantemente físico-química) que, tanto
no animal quanto no homem, constitui um /. de
agressão, este instinto, se entregue a si mesmo,
leva os homens à destruição recíproca,
mas pode ser disciplinado e canalizado para
alvos que não ponham em risco a convivência
humana. A descarga da agressão sobre
objetos constituídos seria o privilégio do homem,
que pode mudar a direção de seu impulso
instintivo {Das sogenannte Bõse, 1963,
cap. XII).

Essa doutrina continua atribuindo ao I. o papel
principal na determinação do comportamento
humano e animal, mas, por outro lado,
chegou-se a duvidar que, para explicar esse
comportamento, fosse possível utilizar o conceito
de I. (cf. o simpósio sobre esse assunto
no British Journal of Educational Psychol.,
nov. 1941). Também se propõe uma concepção
"estatística" do I., segundo a qual ele é apenas
"o fator de um grupo inato e conativo"
(BURT, "The Case for Human Instincts" na Rev.,
cit., 3a parte; cf. J. FLUGEL, Studies in Feeling
andDesire, Londres, 1955). Essa negação do I.
diz respeito sobretudo ao homem. Katz dissera:
"No homem, os I. determinam apenas a
força de um impulso à ação e seu esquema
geral. Esse esquema é indefinido e varia segundo
a ocasião e o indivíduo. P. ex., em todas as
crianças o I. lúdico desenvolve-se e floresce
em certo período e depois morre. Mas o modo
como as crianças realmente brincam varia muito.
Além isso, é na infância que o homem está
mais sujeito à influência dos instintos. Mais tarde,
a conduta de vida é tão controlada pelas
forças externas que é difícil distinguir sua base
instintiva. Ao contrário dos animais, ele não
passa a vida dentro da segurança dos I., mas
tem a capacidade de formá-los" {Animais and
Men, cit., p. 173). Em sociologia, às vezes se
fala em I. como fator dominante da cultura ou
dos seus aspectos fundamentais. Ao I. Pareto
atribuía as ações "não lógicas" {Sociologia
generale, 1923, § 157). Thorstein Veblen, em
suas explicações sociológicas, freqüentemente
recorria ao L: I. de eficiência, ao I. animista, etc.
(cf. The Instinct of Workmanship and the State
of Business Enterprise, 1904). Hoje em dia esse
ponto de vista é freqüentemente contestado.
"A cultura não é instintiva sob nenhum aspecto:
ela é exclusivamente aprendida. A partir
da publicação de /., de Bernard, em 1924, foi
impossível aceitar qualquer teoria do I. como a
explicação do esquema cultural universal ou
como a solução de certos problemas culturais"
(G. P. MURDOCK, em R. LINTON, The Science
of Man in the World Crisis, Nova York, T
ed., 1952, pp. 126-27).


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