ACIDENTE

Podem-se distinguir três significados
fundamentais desse termo, quais sejam:

1 uma determinação ou qualidade casual
ou fortuita que pode pertencer ou não a determinado
sujeito, sendo completamente estranha
à essência necessária (ou substância) deste;

2 uma determinação ou qualidade que, embora
não pertencendo à essência necessária
(ou substância) de determinado sujeito e estando,
portanto, fora de sua definição, está vinculada
à sua essência e deriva necessariamente
da sua definição;

3 uma determinação ou qualidade qualquer
de um sujeito, que pertença ou não à sua essência
necessária.

Os dois primeiros significados do termo foram
elaborados por Aristóteles. "Acidente", diz
ele (Top., I, 5, 102 b 3), "não é nem a definição
nem o caráter nem o gênero, mas, apesar disso,
pertence ao objeto; ou também, é o que
pode pertencer e não pertencer a um só e mesmo
objeto, qualquer que seja ele." Como essa
definição exprime a essência necessária de
uma realidade, isto é, a substância (v. DEFINIÇÃO),
o acidente está fora da essência necessária
e, portanto, pode pertencer ou não ao objeto
a que se refere. Todavia, o acidente pode
ter uma relação mais ou menos estreita com o
objeto a que se refere, conforme a causa dessa
relação; por isso, Aristóteles distingue dois significados,
ambos empregados no Organon e
A metafísica: 1- o acidente pode ser casual na
medida em que a sua causa é indeterminada:
p. ex., um músico pode ser branco, mas como isso não acontece por necessidade ou na maior
parte dos casos, ser branco, para um músico,
será um "acidente". Da mesma forma, para alguém
que cave um buraco a fim de colocar
uma planta, encontrar um tesouro é acidental,
já que a encontrar um tesouro não se segue necessariamente
o ato de cavar um buraco, nem
acontece habitualmente em semelhante circunstância.
Nesse significado (Mel, V, 30,1.025
a 14), portanto, acidente é tudo o que acontece
por acaso, isto é, pela inter-relaçâo e o entrelaçamento
de várias causas, mas sem uma causa
determinada que assegure a sua ocorrência
constante ou, pelo menos, relativamente freqüente.
Mas há também: 2a o acidente não casual,
ou acidente por si, isto é, aquele caráter
que, embora não pertença à substância, estando,
pois, fora da definição, pertence ao objeto
em virtude daquilo que o próprio objeto é. P.
ex., ter ângulos internos iguais a dois retos não
pertence à essência necessária do triângulo, tal
qual é expressa pela definição; por isso, é um
acidente. Mas é um acidente que pertence
ao triângulo por acaso, isto é, por uma causa
indeterminável, mas por causa do próprio
triângulo, quer dizer, por aquilo que o triângulo
é; e é por isso um acidente eterno (Met., V,
30, 1.025 a 31 ss.). Aristóteles ilustra a diferença
do seguinte modo (An.post, 4, 73 b 12 ss.): "Se
relampeja enquanto alguém caminha, isso é
um acidente, já que o relâmpago não é causado
pelo caminhar... Se, porém, um animal morre
degolado, em virtude de um ferimento, diremos
que ele morreu porque foi degolado, e
não que lhe ocorreu, acidentalmente, morrer
degolado". Em outros termos, o acidente por si
está vinculado causalmente (e não casualmente)
às determinações necessárias da substância,
embora não faça parte delas. E embora
não haja ciência do acidente casual, porque a
ciência é só do que é sempre ou habitualmente
(Met., X, 8, 1.065 a 4) e porque ela investiga a
causa, ao passo que a causa do acidente é indefinida
(Fís., II, 4, 196 b 28), o acidente por si
entra no âmbito da ciência, como é indicado
pelo próprio exemplo geométrico de que se
valeu Aristóteles em Met., V, 30, e em numerosos
textos dos Tópicos.

Com esse segundo significado aristotélico
da palavra pode-se relacionar o terceiro significado,
segundo o qual ela designa, em geral, as
qualidades ou os caracteres de uma realidade
(substância) que não podem ficar sem ela, porque
o seu modo de ser é o de "inerir" (ínesse) à própria realidade. Talvez esse uso tenha sido
iniciado por Porfírio, que define o acidente
(Isag., V, 4 a, 24): "O que pode ser gerado
ou desaparecer sem que o sujeito seja
destruído". Essa definição, obviamente, referese
à definição aristotélica do acidente como "o
que pode pertencer e não pertencer a um só e
mesmo objeto". S. Tomás anota corretamente
(Met., V, 1.143) que, no segundo dos dois significados
aristotélicos, o acidente se contrapõe à
substância. Em virtude dessa contraposição, o
acidente é "o que está em outra coisa" (S. Th.,
III, q. 77, a. 2 ad le), isto é, em um sujeito ou
substrato sem o qual ele, no curso ordinário da
natureza (isto é, prescindindo da ordem da graça
que se manifesta no sacramento do altar)
não pode subsistir (ibid., III, q. 76, a. 1 ad\-).
Nesse significado, em que o acidente se contrapõe
à substância, porquanto o seu modo de ser
é inerir (inesse) a algum sujeito, em oposição
ao subsistir da substância que não tem necessidade
de apoiar-se em outra coisa para existir, o
termo acidente torna-se coextensivo ao de qualidade
em geral, sem referência a seu caráter
casual e gratuito, que Aristóteles tinha ilustrado.
A terminologia dos escolásticos adere habitualmente
a este último significado, que destes
passa para os escritores modernos, na medida
em que se valem da linguagem escolástica. Todavia,
mais próxima da definição aristotélica
que do uso escolástico encontra-se a definição
de Stuart Mill, para quem os acidentes são todos
os atributos de uma coisa que não estão
compreendidos no significado do nome e não
têm vínculo necessário com os atributos
indivisíveis dessa mesma coisa (Logic, I, 7, § 8).

Locke e os empiristas ingleses, o mais das vezes,
usam no lugar da palavra acidente, a palavra
qualidade (v.). Mas a sua insistência na
inseparabilidade das qualidades em relação à
substância, que sem elas se esvai no nada, influi
no uso posterior da palavra em questão: uso
que tende a reduzir ou a anular a oposição entre
acidente e substância e a considerar os acidentes
como a própria manifestação da substância.
Na verdade esse uso também pode ser
encontrado em Spinoza, se, porém, se admitir
que a palavra "modo" que ele emprega é
sinônimo de acidente; essa sinonímia parece
ser sugerida pela definição que ele dá de
"modo" (Et., I, def. 5) como o que está em outra
coisa e é concebido por meio dessa outra coisa.
De qualquer forma, a mudança de significado é
claramente verificável em Kant e Hegel. Kant diz (Crít. R. Pura, Analítica dos princípios, Primeira
Analogia): "As determinações de uma
substância, que não são senão modos especiais
do seu existir, chamam-se acidentes. Eles são
sempre reais, porque dizem respeito à existência
da substância. Ora, se a esse real que está na
substância (p. ex., ao movimento como acidente
da matéria) se atribui uma existência especial,
essa existência é chamada de inerência, para
distingui-la da existência da substância, que se
chama subsistência". Essa passagem retoma a
terminologia escolástica com um significado totalmente
diferente, pois os acidentes são considerados
"modos especiais de existir" da própria
substância. Noção análoga encontra-se em
Hegel, que diz (Ene, § 151): "A substância é a
totalidade dos acidentes nos quais ela se revela
como a absoluta negatividade deles, isto é,
como potência absoluta e, ao mesmo tempo, como
a riqueza de cada conteúdo". O que significa
que os acidentes, na sua totalidade, são
a revelação ou a própria manifestação da substância.
Fichte exprimira, por outro lado, um
conceito análogo, afirmando, na esteira de
Kant, que "Nenhuma substância é pensável senão
com referência a um A. ... Nenhum A. é
pensável sem substância" (Wíssenschaftslehre,
1794, § 4 D, 14). O uso desse termo sofreu, assim,
ao longo da sua história, uma evolução paradoxal:
começou significando as qualidades ou
determinações menos estreitamente ligadas à
natureza da realidade, ou até mesmo gratuitas
ou fortuitas, e acabou por significar todas as determinações
da realidade e, assim, a própria realidade
em sua inteireza.

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